Mapeamento no Preventório: mudanças entre as edições
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Lembramos da primeira vez que o Fornazin (o Marcelo, nosso amigo, professor e membro da equipe do Dicionário de Favelas Mariele Franco) explicou pra gente a proposta do Dicionário e o que seria um verbete: “verbete é uma forma da gente construir conhecimento juntos. A gente começa escrevendo uma versão e depois vai convidando mais gente para escrever, ou seja, ele fica disponível pro cara comentar, sugerir edições, colaborar mesmo. Por isso, o conhecimento fica vivo”. Essa ideia de ser ou estar vivo nos atrai muito, porque nos leva a imaginar algo que se modifica com o tempo, algo que se adapta às mudanças, algo dinâmico, algo que aprende com a vida. E isso tem tudo a ver com nosso trabalho no Morro do Preventório, pois vamos modificando nossas ações conforme os aprendizados, as restrições, as conexões e outras coisas que a vida nos traz. | Lembramos da primeira vez que o Fornazin (o Marcelo, nosso amigo, professor e membro da equipe do Dicionário de Favelas Mariele Franco) explicou pra gente a proposta do Dicionário e o que seria um verbete: “verbete é uma forma da gente construir conhecimento juntos. A gente começa escrevendo uma versão e depois vai convidando mais gente para escrever, ou seja, ele fica disponível pro cara comentar, sugerir edições, colaborar mesmo. Por isso, o conhecimento fica vivo”. Essa ideia de ser ou estar vivo nos atrai muito, porque nos leva a imaginar algo que se modifica com o tempo, algo que se adapta às mudanças, algo dinâmico, algo que aprende com a vida. E isso tem tudo a ver com nosso trabalho no Morro do Preventório, pois vamos modificando nossas ações conforme os aprendizados, as restrições, as conexões e outras coisas que a vida nos traz. | ||
Só que em vez de escrever verbetes em favelas e periferias, nosso trabalho é fazer cartografias em favelas, ou seja, nosso trabalho é desenhar ou melhor redesenhar mapas nesses territórios. E em vez de “guardar” os conhecimentos produzidos numa Wiki Favelas, guardamos num Mapa Aberto de Ruas (Openstreetmaps). Repositórios diferentes, tecnologias digitais diferentes, contudo um desejo em comum: produzir coletivamente conhecimentos em favelas. Desse desejo de construir com, nós, membros da equipe do projeto Urbelatam, fomos elaborando essa ideia de que verbete se faz convidando pessoas, ou seja, de que o ponto de partida para se produzir algo com alguém pode ser um convite, ou talvez, seja um convite. Exemplo vivo disso é este próprio verbete que nasceu de um convite. | Só que em vez de escrever verbetes em favelas e periferias, nosso trabalho é fazer cartografias em favelas, ou seja, nosso trabalho é desenhar ou melhor redesenhar mapas nesses territórios. E em vez de “guardar” os conhecimentos produzidos numa Wiki Favelas, guardamos num Mapa Aberto de Ruas (Openstreetmaps). Repositórios diferentes, tecnologias digitais diferentes, contudo um desejo em comum: produzir coletivamente conhecimentos em favelas. Desse desejo de construir com, nós, membros da equipe do projeto Urbelatam, fomos elaborando essa ideia de que verbete se faz convidando pessoas, ou seja, de que o ponto de partida para se produzir algo com alguém pode ser um convite, ou talvez, seja um convite. Exemplo vivo disso é este próprio verbete que nasceu de um convite. | ||
== Verbete se faz colaborando == | |||
Fornazin nos convidou para escrevermos um verbete sobre o mapeamento colaborativo que estamos fazendo no Morro do Preventório. Pera aí, mapeamento colaborativo? Num primeiro momento a gente estranhou esse adjetivo para caracterizar o que fazemos no Preventório. Preferimos o termo mapeamento comunitário justamente para nos diferenciar dos coletivos não-favelados (por exemplo, os [https://www.youthmappers.org/ youthmappers]) em sua maioria estrangeiros que se reconhecem como praticantes de um conceito chamado de [https://pt.wikipedia.org/wiki/Ci%C3%AAncia_cidad%C3%A3 Ciência Cidadã]. Apesar dos “fazedores” de mapas cidadãos produzirem mapas abertos de forma colaborativa e voluntária, algo de grande valor, eles são adeptos de uma visão de mundo mais alinhado com a crença que as ciências e tecnologias são neutras e positivas, enquanto nós acreditamos que os efeitos positivos, negativos ou nulos das ciências e das tecnologias dependem de onde, de quando e por quem elas são desenvolvidas. | |||
== As Quatro Dimensões == | == As Quatro Dimensões == | ||
Após quase dois anos de projeto, formalizamos uma metodologia de trabalho a partir de uma oficina. Ela foi ministrada a pedido do Projeto Tamo Junto, do Dicionário de Favelas Marielle Franco, em 2021. A metodologia conta com quatro dimensões a serem levadas em consideração no ato de mapear: Legitimidade; Planejamento Comunitário; Mapeamento e Ações Locais; e Tecnologias. Elas estão interligadas, de modo que, ao tratarmos de uma dimensão, é impossível não tratarmos das outras ao mesmo tempo. | Após quase dois anos de projeto, formalizamos uma metodologia de trabalho a partir de uma oficina. Ela foi ministrada a pedido do Projeto Tamo Junto, do Dicionário de Favelas Marielle Franco, em 2021. A metodologia conta com quatro dimensões a serem levadas em consideração no ato de mapear: Legitimidade; Planejamento Comunitário; Mapeamento e Ações Locais; e Tecnologias. Elas estão interligadas, de modo que, ao tratarmos de uma dimensão, é impossível não tratarmos das outras ao mesmo tempo. |
Edição das 13h03min de 10 de julho de 2022
Verbete se faz convidando as pessoas
Lembramos da primeira vez que o Fornazin (o Marcelo, nosso amigo, professor e membro da equipe do Dicionário de Favelas Mariele Franco) explicou pra gente a proposta do Dicionário e o que seria um verbete: “verbete é uma forma da gente construir conhecimento juntos. A gente começa escrevendo uma versão e depois vai convidando mais gente para escrever, ou seja, ele fica disponível pro cara comentar, sugerir edições, colaborar mesmo. Por isso, o conhecimento fica vivo”. Essa ideia de ser ou estar vivo nos atrai muito, porque nos leva a imaginar algo que se modifica com o tempo, algo que se adapta às mudanças, algo dinâmico, algo que aprende com a vida. E isso tem tudo a ver com nosso trabalho no Morro do Preventório, pois vamos modificando nossas ações conforme os aprendizados, as restrições, as conexões e outras coisas que a vida nos traz. Só que em vez de escrever verbetes em favelas e periferias, nosso trabalho é fazer cartografias em favelas, ou seja, nosso trabalho é desenhar ou melhor redesenhar mapas nesses territórios. E em vez de “guardar” os conhecimentos produzidos numa Wiki Favelas, guardamos num Mapa Aberto de Ruas (Openstreetmaps). Repositórios diferentes, tecnologias digitais diferentes, contudo um desejo em comum: produzir coletivamente conhecimentos em favelas. Desse desejo de construir com, nós, membros da equipe do projeto Urbelatam, fomos elaborando essa ideia de que verbete se faz convidando pessoas, ou seja, de que o ponto de partida para se produzir algo com alguém pode ser um convite, ou talvez, seja um convite. Exemplo vivo disso é este próprio verbete que nasceu de um convite.
Verbete se faz colaborando
Fornazin nos convidou para escrevermos um verbete sobre o mapeamento colaborativo que estamos fazendo no Morro do Preventório. Pera aí, mapeamento colaborativo? Num primeiro momento a gente estranhou esse adjetivo para caracterizar o que fazemos no Preventório. Preferimos o termo mapeamento comunitário justamente para nos diferenciar dos coletivos não-favelados (por exemplo, os youthmappers) em sua maioria estrangeiros que se reconhecem como praticantes de um conceito chamado de Ciência Cidadã. Apesar dos “fazedores” de mapas cidadãos produzirem mapas abertos de forma colaborativa e voluntária, algo de grande valor, eles são adeptos de uma visão de mundo mais alinhado com a crença que as ciências e tecnologias são neutras e positivas, enquanto nós acreditamos que os efeitos positivos, negativos ou nulos das ciências e das tecnologias dependem de onde, de quando e por quem elas são desenvolvidas.
As Quatro Dimensões
Após quase dois anos de projeto, formalizamos uma metodologia de trabalho a partir de uma oficina. Ela foi ministrada a pedido do Projeto Tamo Junto, do Dicionário de Favelas Marielle Franco, em 2021. A metodologia conta com quatro dimensões a serem levadas em consideração no ato de mapear: Legitimidade; Planejamento Comunitário; Mapeamento e Ações Locais; e Tecnologias. Elas estão interligadas, de modo que, ao tratarmos de uma dimensão, é impossível não tratarmos das outras ao mesmo tempo.
Tomamos como Legitimidade o reconhecimento, pelo território, do trabalho de líderes comunitários. Desta forma, a legitimidade nasce na confiança entre as pessoas do Morro do Preventório e quem realizou o mapeamento — que contou com o protagonismo de líderes comunitários, tal como Marcos Rodrigo, Neném e Wanderson. Essa relação de confiança é fruto de trabalho de base e, principalmente, um olhar atento e cuidadoso às pessoas e suas necessidades.
A legitimidade é importante para o processo do mapeamento porque ela é uma dimensão que valida o nosso trabalho, desde a sua concepção até seu fim, de maneira que ele seja reconhecido por aqueles que vivem o território.
É bom destacar que o verbo “viver”, neste caso, adquire sentido mais amplo. Não está restrito apenas a moradores, mas a qualquer um que esteja dentro do território, que se considere parte dele ou que interaja com ele. Vivenciar o território, portanto, é interagir com ele, em maior ou menor grau.
Assim, o mapeamento ganha sentido tanto para quem o realiza quanto para aqueles que usufruem dele, já que não parte de um agente totalmente externo da comunidade. Este seria o caso se o projeto atuasse sem nenhum morador ou líder comunitário dentro de sua equipe e se não fosse capitaneado por algum desses agentes.
Já a dimensão do Planejamento Comunitário diz respeito ao trabalho no dia a dia da equipe, na qual a prioridade ao atendimento de necessidades do território é maior perante a própria realização do mapeamento em si. Isto porque as urgências da comunidade são diferentes da universidade e, por se tratar de uma equipe que é formada por líderes comunitários, a necessidade de seus colegas, amigos, vizinhos, etc., é mais importante que seguir um cronograma totalmente estático.
Durante certo tempo, a mudança diária no planejamento gerou desconforto, em especial, nos acadêmicos e estrangeiros que participaram do Urbelatam. A dinâmica do Preventório — assim como a de tantas outras favelas — não é a mesma que a dinâmica mais cartesiana da universidade. No entanto, ao invés de nos adequarmos a essas expectativas, entendemos que este é o modus operandi do nosso trabalho.
Diante da premissa de que o que importa é cuidar das pessoas da comunidade, replanejar as atividades do projeto em função do atendimento a essas urgências não é mais do que fortalecer a dimensão da Legitimidade e, por conseguinte, a validação do mapeamento. Afinal, não haveria sentido na sua produção se aqueles que usufruíssem dela fossem colocados em segundo plano.
Planejamento Comunitário (ou Errático) é o nome que demos ao tipo de planejamento que é adequado ao cotidiano do mapeamento, em contraposição com o planejamento tradicional ou ortodoxo, que pressupõe o cumprimento de tarefas baseado em datas de entrega e num cronograma preestabelecido, sem muita margem para flexibilidade. Esta dimensão, portanto, conversa intimamente com a Legitimidade, pois acontece em função dela e, ao mesmo tempo, é também seu resultado direto.
A dimensão do Mapeamento e Ações Locais destaca a relevância de prezar pelo bem estar dos moradores e frequentadores do território. Essa dimensão resgata ensinamentos de uma líder comunitária já falecida, Dona Graça, uma das fundadoras do Banco do Preventório. Nas palavras de Marcos Rodrigo:
Dona Graça foi uma líder comunitária importante dentro do Preventório. Fundou a primeira associação de mulheres em 1987, participou de movimentos, na época, (...) fazendo trabalho comunitário. Era uma pessoa que estava sempre muito de bom humor, criou uma geração lá (...). E quando ela veio a falecer, eu fui visitar ela na última semana no Hospital do Fundão, e ela disse isso: "faz tudo devagar e cuida das pessoas, que é o mais importante". Então ela estava bem ruim mesmo quando eu fui visitar ela, ela fez um tratamento no hospital e ela morreu de coração grande. Ela tinha um coração grande e ela morreu disso. Uma pessoa que ajuda muito a entender a forma como é o trabalho comunitário. E, realmente, esse atropelo não é bom (...). Então, ela fala essa coisa de andar devagar, é dar continuidade, que é mais importante do que a pressa. É mais importante do que o prazo, vamos dizer assim. (...) É o que eu costumo dizer: as pessoas têm tempos diferentes, né? E quando a gente vai para a universidade, aprende que isso é antologia. Mas a gente não quer respeitar o tempo do outro, a gente quer que as coisas sejam no nosso tempo e realmente não vão ser, né?
Considerando que o Banco Comunitário faz parte do projeto e é um dos seus principais engajadores, as palavras de Dona Graça apontam para o caminho do modo de se fazer do mapeamento: devagar e cuidando das pessoas. Ela ilustra o cuidado, atenção, delicadeza, estima e responsabilidade que os líderes comunitários têm com os moradores do Morro do Preventório. Novamente, dimensão muito ligada à Legitimidade.
Por último, a dimensão Tecnologias aborda as adaptações feitas a partir das ausências — de políticas públicas ou serviços públicos e privados, derivados da marginalização de territórios como esse. A falta de dados oficiais do Preventório é um exemplo, mas há vários outros, como a carência dos serviços mais básicos: coleta de lixo e esgoto, distribuição de água, rede de drenagem, etc.
O Urbelatam tem um olhar otimista em relação às ausências, de forma a transformar uma falta em uma possibilidade. Falamos então em potências que se criam a partir das ausências. Assim, a própria elaboração do mapa é visto como uma potência, que surgiu da ausência dele, em primeiro lugar.
Isso não quer dizer, no entanto, que sugerimos uma romantização da precarização e da vulnerabilidade desse território. Na verdade, a ideia de trabalhar com potências vem de uma reafirmação de um discurso mais positivo diante de uma comunidade, geralmente retratada pela mídia e no senso comum apenas pela perspectiva de um local marginalizado. Não queremos, aqui, insinuar que a falta de saneamento básico, por exemplo, tem “seu lado bom” – ou que qualquer outra ausência tenha. Acreditamos que as políticas públicas ainda continuam sendo responsabilidade do Estado e que sua negligência é sintomática.
Ainda sobre as Tecnologias, fizemos uma antropofagia – que referencia o Movimento Antropofágico ocorrido no Brasil, no início do século XX – a partir da metodologia estrangeira, que apontava ferramentas não brasileiras para a realização do mapeamento. Inicialmente, essas diferenças culturais e linguísticas foram uma barreira a ser contornada, até acharmos nosso jeitinho brasileiro. É bom destacar que não utilizamos a expressão com caráter pejorativo, muito pelo contrário. Pensamos que, além de improvisos, o jeitinho brasileiro a que nos referimos também diz respeito ao seu caráter nacional (e, claro, local), já que o projeto teve que lidar com diferenças culturais ao longo dos seus três anos de existência.
Nosso primeiro propósito foi mapear o Morro do Preventório através da plataforma Open Street Maps (OSM). O mapeamento online foi realizado de forma bastante rápida, por um dos membros da equipe, Kayky. No entanto, para o refinamento dele e, mais tarde, a validação dos dados, foi necessário ir a campo. Neste sentido, reproduzimos, de forma “ao vivo” um método de uma segunda plataforma, o HOT Tasking Manager, que acontece de maneira virtual.
Esta plataforma funciona como um gerenciador, a fim de que vários mapeadores possam cobrir o mapeamento de um determinado território ao mesmo tempo. Ele utiliza os dados do OSM e, ao trabalhar no HOT, estamos também colaborando diretamente com a plataforma OSM. A vantagem é, então, que o trabalho não é duplicado e há a facilidade na divisão de tarefas. Ao acessar a plataforma, encontrávamos o território dividido como mostra a figura abaixo.
Usamos a ideia de divisão do território em pedaços — quadrados ou retângulos — para imprimir partes da ortofoto fornecida pela Prefeitura de Niterói e, desta forma, conseguir validar os dados ou acrescentar novos ao trabalho já feito.
Neste processo, utilizamos uma terceira ferramenta, o Kobo. Sua maior vantagem é funcionar de forma offline, já que a cobertura telefônica no morro não é homogênea. É possível georreferenciar pontos específicos e acrescentar, nesses pontos, informações a partir de um formulário customizável pelo usuário.
Então, a antropofagia dessas tecnologias apresentadas resultou na criação de uma nova tecnologia, uma que fizesse sentido para o território e para o nosso trabalho dentro dele.
As quatro dimensões do mapeamento compõem uma metodologia criada a partir do fazer diário, das adversidades e das urgências da comunidade, com os choques culturais, políticos e ideológicos dentro do projeto. Ela mesma é, então, uma tecnologia, adaptada de um modo de fazer estrangeiro.
Queremos apontar aqui, em especial, a diversidade de modos de se fazer que cada território pode apresentar. A maior descoberta que fizemos ao longo da aventura de mapear o Morro do Preventório foi perceber a potencialidade que a produção de um mapa pode trazer a um território. Além disso, incentivamos enormemente que cada comunidade encontre o seu próprio jeito de fazer seu mapa, já que consideramos que esse processo é, além de único, rico e poderoso.