Favela Modelo: mudanças entre as edições
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Edição das 15h55min de 6 de agosto de 2019
Autoria: Palloma Menezes
A construção da “favela “modelo”
O Morro Santa Marta localiza-se em uma encosta íngreme no bairro de Botafogo na divisa com Laranjeiras, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. A favela, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança (Seseg), tem uma área de 54.692 m2, onde vivem cerca de 6 mil moradores. O território do Santa Marta atualmente é delimitado do lado direito por um plano inclinado (inaugurado em maio de 2008 com cinco estações) e do lado esquerdo por um grande muro de concreto, construído em 2009.
A história do Santa Marta teve início na primeira metade do século XX. Moradores narram que a favela começou a se formar no final dos anos 30 e apontam que uma grande parcela dos primeiros habitantes do morro eram oriundos das regiões Norte e Nordeste do país e também do interior do Estado do Rio de Janeiro (CUNHA; MELLO, 2011). A favela tem uma longa história de organização política e vida associativa. Itamar Silva, uma importante liderança do Santa Marta, narra que as primeiras lutas na favela foram pela auto-organização dos moradores, pela água e, posteriormente, pela luz. Depois, os moradores tiveram que enfrentar as ameaças de remoção que a favela sofreu devido à sua localização privilegiada. A população da favela, contudo, resistiu e lutou para que ela fosse urbanizada.
Entre as décadas de 1980 e 1990, os moradores do Santa Marta tiveram que lidar com um outro problema que passou a fazer parte do cotidiano da favela: a violência. Tal problema passou a preocupar não só a população da favela, mas também a do “asfalto” quando intensificaram-se os tiroteios no morro. No fim da década de 1980, o Santa Marta ganhou um grande destaque na mídia em razão das “guerras” ocorridas no morro. E alguns inusitados episódios contribuíram para a favela ganhar notoriedade, como o fato de ter sido escolhida por Michael Jackson para a gravação do videoclipe “They Don’t Care about Us”, em 1996. Posteriormente, a favela ganhou ainda mais fama nacionalmente com o lançamento do documentário Notícias de uma Guerra Particular – produzido por João Moreira Salles e Kátia Lund em 1999 – e do livro O Abusado – lançado em 2003, por Caco Barcellos.
Nos anos 2000, ganharam destaque na mídia as operações realizadas pela polícia no Santa Marta. As notícias destacavam a grande quantidade de drogas e armas encontradas por policiais no morro da Zona Sul e as mortes ocorridas nas ações policiais na favela. Além disso, elas relatavam ainda que os tiroteios na favela atrapalhavam o trânsito de Botafogo, espalhavam pânico entre a população do bairro e interrompiam constantemente o fluxo cotidiano da vida dos moradores do morro que não podiam, por exemplo, nem mesmo deixar crianças em uma creche localizada no alto do morro, pois ali havia constante trocas de tiros entre PMs e traficantes. Beltrame narra o caso dessa creche que teve um papel fundamental para escolha do Santa Marta para receber um projeto-piloto de “policiamento comunitário” que estava sendo debatido por ele e outros gestores na secretaria de Segurança. Segundo o secretário, o projeto ainda estava sendo elaborado, mas “uma janela de oportunidade se abriu antes de tudo ficar pronto” (BELTRAME, 2014, p.107) quando Cabral informou que queria visitar a tal creche do Santa Marta:
Pouco antes de eu assumir a Secretária de Segurança, foi inaugurada a creche (...). Por se situar em local estratégico, os traficantes foram contra a utilização do prédio como aparato do Estado. Tanto é que, 18 meses depois de aberta, a creche ainda não funcionava. Apenas 30 crianças haviam sido matriculadas nas 150 vagas disponíveis. A questão se tornou ponto de honra para o governador Sérgio Cabral, que queria visitá-la e fora avisado dos riscos que envolviam sua segurança. Em 19 de novembro de 2008, cerca de 100 PMs, com o apoio do Bope ocuparam, então, o Dona Marta. (...) No dia em que foi tomada a decisão de não sair, chovia sem parar. Era preciso preparar uma logística, levar comida para a tropa no morro, providenciar abrigo. (...) Liguei para o governador e falei da intenção de ficar. Foi a primeira vez que usei a expressão “pacificação”. (2014, p.108)
Após o início da “ocupação permanente” do morro em novembro de 2008, o Santa Marta, segundo Beltrame, transformou-se em um “laboratório” onde este “modelo de patrulhamento comunitário” começou a ser testado para depois ser expandido para outras favelas. Nas palavras do secretário: “é um laboratório, um modelo de política de segurança pública. (...) Vamos apresentar à sociedade os resultados e dizer: deu certo, esse é o custo. Se vocês quiserem um policiamento igual no Complexo do Alemão, vai custar tanto”[1].
Nos últimos anos foi elaborado e testado no Santa Marta, portanto, um novo modelo de policiamento – que envolve o monitoramento constante do morro através da realização de abordagens policiais constantes, o uso de câmeras de vigilância instaladas em vários pontos do morro e de diferentes “ferramentas de aproximação” que visam diminuir a distância entre moradores e policiais da UPP (MENEZES, 2015). Mas além disso, a favela transformou-se em um laboratório para diversas outras iniciativas como a regularização do fornecimento de luz e água nas áreas “pacificadas” (CUNHA; MELLO, 2012; OST; FLEURY, 2013 ).
Outro serviço que foi rapidamente regularizado com a chegada da UPP nas favelas foi o de TV a cabo. A Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos e a Secretaria de Segurança do governo do Estado fizeram uma parceria com a SKY, em 2010, para desenvolver um pacote especial para a população de áreas “pacificadas”. E, além da Sky, diversas outras empresas passaram a atuar em favelas após a chegada da UPP, vendendo diversos serviços que antes não eram ofertados na localidade, como seguros de casa e de vida. No Santa Marta foi inaugurada uma mini Casa & Vídeo e bancos também passaram a atuar dentro do território da favela.
Outra intervenção realizada após a pacificação foi o programa SESI (Serviço Social da Indústria) Cidadania, fruto de um acordo firmado entre o governo do Estado e da prefeitura com o sistema Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro). O programa foi lançado em agosto de 2010 com o objetivo de levar serviços de educação, cultura, saúde, esporte e lazer a regiões com UPPs.
No mesmo mês, foi lançado também outro projeto no Santa Marta a partir de uma parceria entre a Prefeitura, o Governo Estadual e Federal: o “Rio Top Tour: o Rio de Janeiro sob um novo ponto de vista”. O objetivo desse projeto, que transformou a favela em um destino turístico oficial da cidade, era “criar uma alternativa que gerasse renda com o turismo (já que várias biroscas estavam fechando e a comunidade precisava ter alternativa de emprego depois de arrefecida a guerra do tráfico)”, como afirmou Mônica Rodrigues, a idealizadora do Rio Top Tour.
Outro foco de atuação do poder público, na mesma época, foi a formalização do comércio em áreas “pacificadas” que teve início com o lançamento do projeto Empresa Bacana. A iniciativa, que é fruto de uma parceria entre a Prefeitura, o Sebrae/RJ e o Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis (Sescon/RJ), visa a “formalização, capacitação e desenvolvimento do empreendedor local na inserção do ambiente de negócios”[2]. Tal projeto oferecia aos que faturavam até R$ 36 mil por ano a chance de formalizar o seu negócio pagando mensalidades que variavam, na época, entre R$ 28,25 e R$ 32,25.
Além de todas essas iniciativas, em 2010, foi lançado o projeto UPP Social que foi idealizado pelo economista Ricardo Henriques – que, na época, era secretário de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH). O projeto surgiu para “consolidar o controle territorial e da pacificação, a promoção da cidadania e do desenvolvimento social e a integração plena das comunidades pacificadas por UPP ao conjunto da cidade do Rio de Janeiro” (Edital Seleção Pública – UPP Social 2010). Poucos meses após a sua criação, contudo, o projeto começou a enfrentar turbulências. Devido a disputas políticas, Ricardo Henriques teve que deixar a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos e assumir a presidência do Instituto Pereira Passos (IPP). Consequentemente, o projeto foi transferido para a Prefeitura e rebatizado de UPP Social Carioca. E, no âmbito do Governo do Estado, o novo secretário de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Rodrigo Neves, decidiu manter o programa e modificar a sua nomenclatura para Territórios da Paz.
É interessante ressaltar que o projeto da UPP, da UPP Social, do Territórios da Paz, “vendem” uma mesma ideia: a de que a “pacificação” trouxe uma “importante conquista para o exercício da cidadania”[3] nas favelas. Tal ideia, contudo, não é aceita pelos moradores sem questionamentos. Durante meu trabalho de campo no Santa Marta, uma jovem me disse certa vez que achava “errado esse papo de que a cidadania chegou com a UPP, porque todos nós já éramos cidadãos antes mesmo da UPP chegar. Todos nós já pagávamos impostos de várias outras formas”. Outro morador me disse que na opinião dele “esse fato de ser mais cidadão está prejudicando a nossa vida! A gente não queria que fosse assim. A gente queria ser cidadão, mas continuar morando aqui”.
O preço de se viver em uma favela “pacificada”
O processo de “pacificação” envolveu um novo ordenamento dos territórios com UPP. Ordenamento este que incluiu a regularização do fornecimento de eletricidade e de água, assim como do funcionamento dos estabelecimentos comerciais nos territórios “pacificados”. Moradores do Santa Marta reclamam, contudo, que tal regularização não veio acompanhada de uma melhora significativa dos serviços prestados. Eles queixam-se de ter que pagar, por exemplo, a mesma taxa de esgoto paga pelos moradores do “asfalto”, já que o saneamento dessas áreas não é o mesmo e o fornecimento também não é igualmente distribuído, uma vez que falta água no morro com frequência.
No caso da iluminação pública, a reclamação se repete. Os moradores lembram que pagam pela iluminação pública, mas constantemente tem que caminhar por ruas escuras na favela. Prevalece, portanto, entre os moradores a sensação de que, apesar de estarem pagando as mesmas taxas que os moradores de outras áreas da cidade, não são tratados da mesma forma que o resto da população carioca, o que fere sua condição de cidadania (OST; FLEURY; 2013, p. 651). Um morador do Santa Marta resumiu essa sensação:
Bom, segurança é um conceito muito amplo. Iluminação pública é segurança! E temos, hoje, no Santa Marta, dezenas de lâmpadas queimadas, que a Rio Luz – desculpe o termo que eu vou usar, de novo – caga e anda. Na conta de luz aparece a famigerada taxa de iluminação pública. A gente paga e não tem iluminação pública, também paga taxa de esgoto junto com a conta de luz, mas aqui tem um monte de vala a céu aberto e vive faltando água. Então, que cidadania é essa? Que inclusão é essa da favela na cidade? (Trecho de entrevista com morador do Santa Marta)
Além disso, muitos moradores relatam que vêm encontrando dificuldade para arcar com as contas de luz que não param de aumentar. Eles apontam que esse aumento constante gera uma grande ansiedade, já que não permite que cada família possa prever quanto terá que gastar a cada mês.
Diversos moradores da favela estabelecem uma associação entre as contas altas e o fato da medição do consumo de energia elétrica no Santa Marta ser realizado através de chips. Como apontam Cunha e Mello (2012, p. 157), em 2010, a Light instalou na favela “um sistema de telemediação para todas as ações, através do qual a companhia faz cortes e ligações diretamente da empresa e controla o consumo residencial sem precisar medir o relógio todo mês, como fazia anteriormente”. Tal sistema já foi investigado pelo Ministério Público, que indicou que ele parasse de ser utilizado, mas os chips ainda continuam sendo usados em diversas favelas e vêm sendo constantemente criticados pelos moradores.
Além das contas de luz e da água, outro fator que vem pesando no orçamento dos moradores de áreas “pacificadas” é o aumento do valor dos aluguéis que subiu abruptamente nos últimos anos[4]. Há relatos de que alguns moradores já se mudaram de áreas com UPP devido ao aumento do preço do aluguel. Uma ex-moradora do morro me disse, em 2012, em uma entrevista, que não dava mais para morar no Santa Marta porque “está muito caro o aluguel aqui no morro e tem que pagar a luz, tem que pagar a água. E lá para onde eu mudei agora não paga luz, não paga água, não paga nada”.
No entanto, vale notar que a valorização imobiliária, embora tenha prejudicado quem tem que pagar aluguel, beneficiou alguns moradores do Santa Marta que possuem imóveis para alugar no morro. Essas pessoas viram seus rendimentos com aluguéis multiplicarem-se nos últimos anos. Como afirmou uma moradora: “tem gente aí [no morro] que tem três, dez, quinze, vinte imóveis... Esse pessoal está faturando. (...) Tem um espaço aqui três por três, um porãozinho com água que pensei que era impossível alguém morar, mas foi alugado”.
Em 2010, O Globo divulgou uma reportagem sobre Zé do Carmo que foi apelidado pelo jornal de “Eike Batista do Dona Marta”. Considerado um empresário de sucesso na favela, ele é dono de uma barbearia, de um salão de beleza e possui diversos imóveis. Ele costuma alugar esses imóveis não só para os locais, mas também para estrangeiros.
Outros moradores do Santa Marta, assim como Zé do Carmo, vêm lucrando com a constante presença de “pessoas de fora” na favela. Alguns conseguem uma renda extra alugando o espaço onde ocorrem as gravações ou participando da produção das filmagens que ocorrem com frequência no morro. E há ainda um grupo de moradores que, desde a “pacificação”, vem lucrando guiando artistas, políticos de outros países e muitos turistas que têm visitado a favela nos últimos anos.
Favela “só pra inglês ver”?
Água morro abaixo e fogo morro acima e invasão de turistas em favelas pacificadas é difícil de conter. Algo precisa ser feito para que a positividade do momento não transforme esses lugares em comunidades “só pra inglês ver”. As favelas pacificadas tornaram-se alvo de uma volúpia consumidora poucas vezes vista no Rio de Janeiro. A partir do momento em que se instalaram as Unidades de Polícia Pacificadora - UPP em algumas favelas, é como se tivesse sido descoberto um novo sarcófago de Tutankamon, o faraó egípcio. Uma legião de turistas, pesquisadores, empresários, comerciantes “descobriram” as favelas. (Trecho do artigo “Turismo na favela: E os moradores?” de Itamar Silva publicado no jornal O Dia em 31 de janeiro de 2013)
A visitação de estrangeiros a favelas não é um fenômeno novo. No entanto, é preciso ressaltar que nunca antes houve um número tão grande de pessoas interessadas em visitar esses “territórios da pobreza” urbana como há atualmente. Como afirmou um morador do Santa Marta: “sempre vieram pessoas de fora aqui no Santa Marta. Mas, a partir da instalação da UPP é que aumentou absurdamente a quantidade de turista aqui no morro”.
Freire-Medeiros (2007), indica que desde o início dos anos 1990, além do significativo aumento do número de pessoas que vem visitando favelas, houve uma transformação na forma como essas visitas eram e agora são realizadas. Se antes as visitas a favelas eram feitas, quase sempre, individualmente e aconteciam de forma espontânea e dispersa, agora elas são realizadas, na maior parte das vezes, em grupos e são organizadas por agências ou guias individuais de turismo. Segundo Freire-Medeiros, essas mudanças são produtos de um processo mais amplo: a conversão da favela carioca em mercadoria turística.
Depois que a Rocinha se tornou o caso paradigmático de “favela turística”, com passeios ocorrendo regularmente desde a Eco 92, moradores, agentes privados tentaram se organizar para explorar, de diferentes maneiras, os “potenciais turísticos” de várias favelas. No caso do Santa Marta, foi o poder público que resolveu transformar a favela em uma atração turística oficial da cidade, dois anos após o início do processo de “pacificação”, através da criação do Rio Top Tour, como já foi dito acima.
Embora algumas pessoas critiquem o projeto e se queixem da presença de turistas – que nem sempre respeitam a privacidade da população da favela e tiram fotos de moradores sem pedir autorização –, há moradores do Santa Marta que afirmam que o projeto significou um ponto de inflexão na trajetória de vida deles. Isso porque, a partir do Rio Top Tour, eles começaram a investir em novas atividades profissionais, tornaram-se, por exemplo, guias de turismo, artesãos e empreendedores que investiram na abertura de agências de turismo, albergues, barraquinhas de artesanato e lojas de souvenirs na favela.
A presença constante de turistas no Santa Marta, sem dúvida, passou a ser uma importante fonte de renda para aqueles que trabalham com turismo e com comércio na favela, mas tornou-se também uma fonte de preocupação para outros moradores. Bento, que vive no morro há 50 anos, afirmou durante uma entrevista que a presença dos “gringos” na favela o preocupam porque, na opinião dele, “eles vêm maliciosamente, entendeu? Vão fotografando onde eles querem morar no futuro. A intenção deles é essa, tem essa intenção. De morar aqui em um big de um prédio”. Ele ressaltou ainda que:
o turista não é bobo. (...) Se eles puderem, eles vão massacrar a gente (...) Agora estão começando a cobrar IPTU do povo na favela. Isso aí, a gente não vai aguentar pagar, não vai aguentar morar aqui não. Aí, eles entram. Então, eles têm essa visão proativa: vamos botar um big de um hotel no meio da comunidade (...) A visão deles é montar um Meridien no meio da comunidade (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)
Esta fala me chamou particular atenção, pois reunia uma série de especulações que eu já tinha ouvido em outras situações na favela. Antes da entrevista com Bento – realizada em março de 2011 – havia notado que circulava há algum tempo pelo morro a especulação de que os moradores e comerciantes da favela, em breve, não conseguiriam mais resistir à especulação imobiliária e ao aumento do custo de vida e acabariam alugando ou vendendo suas residências e estabelecimentos comerciais para empresários “da rua” e turistas.
Outro rumor que aparece no depoimento dado por Bento que eu já tinha ouvido anteriormente diz respeito aos empresários estrangeiros e brasileiros que tinham interesse em construir um hotel no Santa Marta. Ouvi moradores especularem que a construção de tal empreendimento podia ser resultado de dois processos diferentes: um de remoção tradicional (já que o Governo do Estado planeja remover residências do Pico) e um de “remoção branca” ou “gentrificação” que potencialmente pode ocorrer em todo o território da favela.
Muitos dos moradores do Pico que estão sofrendo ameaças de remoção temem que a primeira hipótese torne-se real. Embora o Governo alegue que as casas do Pico serão removidas, pois ali é considerada uma “área de risco”, os residentes da área temem que futuramente seja construído um hotel no local. Como o governo já mudou o projeto de urbanização do morro diversas vezes e até agora não apresentou o novo plano aos moradores, eles temem que o governo, no futuro, faça obras de contenção para que ali deixe de ser uma “área de risco” e, assim, a iniciativa privada possa construir algum empreendimento turístico ali. Um morador me disse que a remoção para ele nada mais é do que
uma possível jogada política e capitalista já que aqui tem uma visão privilegiada de 180 graus da Zona Sul, desde a Lagoa à Ponte Rio-Niterói. Então, futuramente podem fazer hotéis, pousadas, restaurantes, um mirante para visitação e publicação de imagens, fotos. Eles querem as pessoas que residem nesse local com o argumento de que ali é área de risco, mas depois que eles saírem, o Governo dá um jeito de fazer obra para que ali deixe de ser área de risco e passe a ser área de rico. (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)
Para tentar barrar esse processo de remoção, algumas lideranças da favela entraram em contato com um engenheiro e pediram que ele realizasse um laudo técnico da área do Pico. Este contralaudo apontou que, diferentemente do que é dito pelo laudo da Geo-Rio, a área poderia ser habitada caso fossem realizadas algumas obras de contenção no alto do morro. O documento foi entregue para representantes do Governo que prometeram avaliá-lo e dar uma resposta aos moradores. No entanto, essa resposta não chegou até hoje e agentes do Governo continuam fazendo “pressão psicológica” para que os moradores aceitem sair de suas casas.
Moradores do Pico acreditam que existe uma “falta de vontade política” para urbanizar o Pico ao invés de remover as famílias que vivem ali há algumas décadas. E afirmam que essa “falta de vontade política” do poder público está diretamente associada a interesses econômicos de grandes empresários cariocas. Um morador do Pico me disse, em 2012, que tinha contato com pessoas que trabalham na prefeitura e no Governo do Estado que contaram que já estava tudo acertado para que o alto da favela fosse cedido para que o empresário Eike Batista ali construísse um hotel. É importante ressaltar que na época o empresário ainda não tinha falido e estava investindo muitos recursos em diversos empreendimentos na cidade. Por isso, também circulavam rumores pelo Tabajaras e por outros favelas que sofriam ameaça de remoção de que o Eike tinha interesse em investir em empreendimentos nessas localidades após as remoções.
No Tabajaras, os moradores especulavam que o empresário iria construir um grande resort para abrigar atletas e turistas que viessem para os Jogos Olímpicos. Eles apontavam que uma evidência do interesse de Eike por essas áreas seria o fato de o empresário ter feito “doações” de volumosos recursos para as UPPs. Bento afirmou, por exemplo, que na visão dele, Eike não teria feito doações para UPP, mas sim investimentos, assim como fazem diversos outros empresários e empresas que vêm realizando projetos na favela.
O retorno desses “investimentos”, segundo Bento, chegaria em um futuro próximo. Ele prevê que como muitas pessoas não conseguirão pagar água, luz e ainda IPTU, logo começará a ocorrer uma “remoção branca” na favela. Na visão dele, esse processo estaria sendo articulado através de uma parceria entre o poder público e a iniciativa privada:
Tem a cara e a coroa. Eu vejo a coroa. Tem interesses aí nesse sentido, interesses políticos, socioeconômicos, uma porção de coisa. Eles não vêm aqui, não vêm conhecer povo. (...) Eles querem bater fotos, documentar, encomendar pesquisas. (...) Parece que eles vão atacar. Então, a projeção futura é essa. Por exemplo, está tendo aí esse negócio de “habite-se”. Teve uma senhora que ficou feliz da vida, mas agora, se fosse a minha mãe, ela tem 92 anos, ela (...) pegou o “habite-se”, mas ela vai pagar IPTU. E se ela não puder pagar? Vai perder o imóvel para o governo. O governo vai e leiloa. Aí vende para um Eike Batista desse aí disfarçado de americano. Tem interesses. Então, se não se reunir a comunidade, se continuar essa visão, eles vão tomar mesmo. Aqui, quem não tiver uma determinada renda, em um futuro bem próximo, não vai aguentar morar aqui não. A verdade é essa! (Trecho de entrevista de um morador do Santa Marta).
Pesquisadores têm apontado que processos de “gentrificação” parecem estar em diversas favelas “pacificadas”, onde parte da população mais carente provavelmente não irá conseguir arcar com o aumento do custo de vida e, assim, permanecer por muito tempo no território valorizado. Uma espécie de efeito não esperado da implantação das UPPs e das consequentes ações de urbanização nas favelas por elas ocupadas pode ser, portanto, a criação de uma nova dinâmica de segregação socioespacial na cidade do Rio de Janeiro (Mazur; Pontes, 2011).
Para Fleury não parece exagerado afirmar que existe em curso um projeto de metrópole vendável, que busca posicionar a cidade do Rio de Janeiro vantajosamente enquanto mercadoria consumível no contexto global. A autora destaca que “essa marca tem muitos produtos, e a favela carioca talvez seja um dos mais cobiçados”. Todavia, Fleury lembra que isto deve ser referido apenas às “favelas incrustadas nos bairros mais ricos da Cidade Maravilhosa e que estão dentro do circuito dos megaeventos, por onde circularão os turistas” (2013, p. 43).
No Santa Marta, o medo de um processo de “gentrificação” parece estar muito mais presente no cotidiano dos moradores do que em outras favelas localizadas longe da Zona Sul. Todavia, é importante lembrar que há favelas da Zona Sul onde a “gentrificação” parece ocorrer em um ritmo ainda mais acelerado do que no Santa Marta. Como indicou um morador da favela:
Aqui no Santa Marta não está nesse patamar que já está no Vidigal porque aqui ninguém quer vender sua casa. (...) De um modo geral, os moradores não querem vender suas casas. Se vendesse, tinha gente para comprar. (...) Minha casa tem três andares. Por exemplo, eu vendo por R$500 mil. O que eu vou fazer com R$ 500 mil? Comprar o que e aonde? Vou viver onde? Vou para Campo Grande? Vou para onde? Não tem lógica isso. Vou ser fazendeiro e criar bicho? (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)
A fala do morador explicita como “o afastamento das populações pobres das áreas mais nobres da cidade” ainda “permanece como uma espécie de fantasma que paira permanentemente sobre suas cabeças” (CUNHA; MELLO, 2011, p. 396). A volta do “fantasma da remoção” com uma nova roupagem vem forçando algumas importantes lideranças comunitárias a mudarem seus posicionamentos em relação ao processo de regularização fundiária das favelas e de titulação das propriedades nesses territórios. Itamar Silva, por exemplo, afirmou em um encontro promovido pela Casa Fluminense, na Fundação Getulio Vargas, que:
no início dos anos 1980, quando a política de remoções havia sido superada, eu era a favor da titulação. Mas atualmente essa iniciativa contribuirá para se acabar com as favelas por intermédio do mercado, que, dessa forma, compraria as casas, descaracterizando as favelas e sua cultura. Então, por uma questão de resistência, sou contra essa opção nos termos atuais. A posse é legitimamente tutelada pelo direito brasileiro. Existem diversos outros instrumentos, como a concessão de direito real de uso, dos quais sou a favor. (Fala de Itamar na reportagem “Regularização fundiária em xeque” publicada no dia 08 de agosto de 2013 no Canal Ibase[5])
No mesmo encontro, o pesquisador Rafael Soares Gonçalves apontou que acredita que a titulação levaria à gentrificação das favelas, já que “as famílias sofreriam pressão para vender suas casas”. E lembrou que “hoje, já vemos festas caríssimas dentro das favelas com UPPs, com preços proibitivos para o próprio morador”. Essas festas às quais Barbosa se refere, vêm sendo promovidas, por exemplo, na escola de samba, no Santa Marta por grandes cervejarias – como a Antártica –, blocos de carnaval – como o Spanta Neném – e famosos promoters, produtores e Djs da cidade. Eventos esses que são frequentados majoritariamente por pessoas “de fora” da favela e geram opiniões controversas entre os moradores do Santa Marta. Os comerciantes da parte baixa da favela – onde fica localizada a quadra da escola de samba na qual ocorrem a maior parte desses eventos –, beneficiam-se com o grande de movimento de pessoas que frequentam essas festas. E são favorecidos também os moradores que alugam lajes onde são promovidas festas:
As pessoas que vêm para as festas aqui na quadra consomem mais ali fora do que dentro da quadra. Nós estamos perguntando ao Spanta Neném todo dia quando que vai começar o Morro de Alegria, que eu já não aguento mais esperar! Eu estou quase, eu mesma, fazendo o Morro de Alegria! Eu até queria, mas não posso não, para fazer isso tem que ter muito dinheiro! Tem que investir muito! (Trecho de entrevista com uma comerciante do Santa Marta)
Sábado agora teve uma festa com o pessoal da rua que foram 287 pessoas da rua e quatro pessoas do morro. (...) Aí, através dessa festa, agora, já sábado que vem, uma outra mulher da rua quer fazer uma festa para 150 convidados, só [com o pessoal] da rua. (Trecho de entrevista com um morador que aluga sua laje para festas)
Os “moradores comuns”, contudo, queixam-se dos preços dos ingressos. Como afirmou um jovem: “para você ter uma ideia, tem um show que custa R$ 200 a entrada. Entendeu? Então é um outro patamar de... É uma outra realidade”. Devido a esses altos preços, os moradores acabam sendo impedidos de frequentar as festas realizadas no morro. Além disso, os produtores culturais da favela também reclamam da situação atual e indicam que eles vêm encontrando uma dupla dificuldade para realizar eventos dentro da favela. O primeiro empecilho é imposto pela UPP que nem sempre dá autorização para que os eventos propostos por eles sejam realizados. E o segundo é imposto pelo mercado. Como contou um “agente cultural” do Santa Marta:
Agora são só os playboyzinhos da Zona Sul que podem fazer festa no morro? Não! Eu sou nascido e criado, eu moro no Santa Marta e eu vou fazer minha festa. (...). Só que eu não posso fazer uma festa para o favelado? (...) Isso acontece porque não tem espaço (...). Aluguel da quadra é R$ 4 mil, mas se o cara falar... Nós estamos em abril, se o cara da quadra fala “em junho eu alugo para você”, eu me programo agora, faço divulgação e em junho eu pago aqueles R$ 4 mil dele mole. Vou fazer uma coisa boa. Mas já está agendado tudo para gente fora aí e fica difícil de achar vaga e competir com produtores que têm muito mais dinheiro que a gente para investir. (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)
Em resumo, é possível dizer, portanto, que as transformações que ocorreram após a “pacificação” geraram novas oportunidades para uma parte dos favelados – especialmente para aqueles que têm um “perfil empreendedor”. No entanto, muitas dessas mudanças trouxeram também novas preocupações para grande parte da população de favelas com UPP. Comerciantes temem não conseguir manter seus estabelecimentos abertos, uma vez que há uma forte concorrência de empresários “de fora” que já estão atuando ou desejam atuar na favela. E moradores passaram a viver com receio de não poder permanecer habitando nessa “favela modelo”, “segura” e “cheia de oportunidades” que foi criada pela UPP e por todas as intervenções que a seguiram.
“Queremos Favela Modelo de verdade e não maquiagem!”
O mês de junho de 2013 foi marcado por manifestações e mobilizações sociais em todo o Brasil. Alguns moradores de favelas “pacificadas”, impulsionados pela energia crítica presente na atmosfera da cidade do Rio de Janeiro naquele momento, organizaram manifestações nos bairros aonde vivem. No dia 8 de julho, os moradores do Santa Marta, por exemplo, organizaram um protesto pelas ruas de Botafogo para expressar sua insatisfação em relação à distorção que havia entre a imagem vendida da favela e a experiência cotidiana no morro. No texto de convocação para a reunião era dito:
Queremos Favela Modelo de verdade e não maquiagem!Tá cansado de pagar conta de luz muito alta?Cansado de ter que subir a pé por causa das más condições do bonde??Cansado de pagar esgoto quando ainda temos valas abertas?Vivendo a insegurança de ser removido??Então vem pra rua! O Santa Marta vai descer e reivindicar pra ser uma FAVELA MODELO de verdade!
No dia seguinte, uma reportagem sobre a reunião divulgada no site do Ibase ganhou o seguinte título: “Santa Marta pergunta: favela modelo de quê?”. A matéria lembrava que “quem vê o Santa Marta do asfalto costuma achar que a favela tem serviços idênticos aos cidade”, que “é um modelo de ocupação policial e é ponto certo para turistas que querem ver comunidades cariocas de perto”. Mas, segundo o texto, a manifestação organizada pelos moradores mostrou que “a vida de quem mora lá, porém, está longe de corresponder a essas expectativas”.
Nos últimos dois anos, a vida nas favelas “pacificadas” vem tornando-se ainda mais difícil. Moradores passaram a narrar que “tudo estava voltando a ser como antes da UPP”, já que notavam, por exemplo, a redução do número de policiais atuando na favela; o aumento do número de pessoas fumando maconha em lugares públicos; o aumento da corrupção; o retorno de pontos de venda de drogas “sedentários” e “permanentes” e a volta da ocorrência de trocas de tiro.
Em 2013, os relatos de atos violentos cometidos tanto por traficantes como por policiais em territórios “pacificados” deixaram de circular pelo território das favelas e começaram a ganhar as manchetes de jornal. O caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo foi um marco desse novo momento. Amarildo de Souza era morador da Rocinha e desapareceu depois de ser levado por policiais da UPP para prestar depoimento em julho de 2013. Apesar do corpo de Amarildo não ter sido encontrado, há fortes indícios de que ele foi torturado e assassinado por policiais. Este caso gerou uma grande comoção nacional. O questionamento “Cadê o Amarildo?” virou uma das principais bandeiras das manifestações que tomaram conta das ruas da cidade do Rio de Janeiro, de quase todas as capitais brasileiras e que ficaram conhecidas como as “Jornadas de Junho”. É interessante notar que esse caso abriu espaço para um amplo questionamento das UPPs, quebrando o consenso que parecia existir em torno do sucesso do projeto. Consenso este que, por um longo período, deixou as UPPs blindadas às críticas, que agora passaram a se proliferar colocando a “estabilidade” do projeto em xeque.
No ano de 2015, a crise das UPPs parece ter se agravado ainda mais e chegado até à “favela modelo”. Em maio deste ano, ocorreu no Santa Marta o primeiro tiroteio desde que foi instalada ali a primeira UPP da cidade. O episódio ganhou grande repercussão na mídia. No jornal Estadão, por exemplo, foi divulgada uma matéria intitulada “UPP modelo, Morro Santa Marta tem 1º tiroteio após instalação, em 2008”. Desde então os tiroteios aumentaram muito e voltaram a ser frequentes na favela. Para os moradores, as oportunidades trazidas pela chegada das UPPs foram se tornado cada vez mais escassas, ao passo que as preocupações instituídas pelo mesmo processo cresceram exponencialmente. De solução “milagrosa” para antigos problemas, a “pacificação” passou a se apresentar, portanto, como fonte de novos problemas.
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[1]Trecho da reportagem “Favela sem tráfico: Dona Marta será usada como modelo” publicada no jornal O Globo em 03 de dezembro de 2008.
[2] Fonte: http://www.riomaissocial.org/2010/08/prefeitura-lanca-projeto-empresa-bacana-para-formalizar-e-estimular-negocios-na-cidade-de-deus/(Acessado em 10 de março de 2015).
[3]Depoimento dado por Ricardo Henriques, divulgado na nota intitulada “SKY E Governo do Estado do Rio de Janeiro lançam plano de TV por assinatura para áreas de UPPs” divulgada em 14 de setembro de 2010 para lançar a SKY UPP. Tal nota encontra-se disponível em http://www.sky.com.br/institucional/empresa/PDFs/pressrelease-36.pdf(Acessado em 17 de outubro de 2014)
[4]Obviamente o aumento dos aluguéis não se deve apenas ao processo de “pacificação”, mas também à valorização imobiliária ocorrida em quase todas as capitais brasileiras e, especialmente, na cidade do Rio de Janeiro. Nos últimos dez anos, os preços dos imóveis aumentaram até 700% na cidade do Rio, segundo aponta levantamento do Secovi Rio (Sindicato da Habitação) entre 2002 e 2012. Fonte: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rio-precos-de-imoveis-aumentam-ate-700-em-dez-anos-20120420.html(Acessado no dia 18 de novembro de 2014).
[5]Disponível em http://www.canalibase.org.br/a-regularizacao-fundiaria-em-xeque/(Acessado em 19 de novembro de 2013).