Segurança Pública e Direitos Humanos (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autor: Caíque Azael
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O presente verbete é um extrato da dissertação de mestrado intitulada “Redes de militarização no Rio de Janeiro : cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas”, apresentada em 2021 ao Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFRJ (PPGP/UFRJ). Acesse o texto na íntegra [https://www.academia.edu/72220192/Redes_de_Militariza%C3%A7%C3%A3o_no_Rio_de_Janeiro_cartografias_sobre_juventudes_viol%C3%AAncias_e_resist%C3%AAncias_em_favelas clicando aqui].
 
= Segurança Pública e Direitos Humanos: algumas considerações para seguirmos em luta =
RESUMO: A análise das políticas públicas de segurança do Rio de Janeiro revela uma racionalidade colonialista e racista de atuação do Estado em favelas e periferias. O presente manuscrito se dedica a explorar algumas das controvérsias recentes no que tange à referida política pública, dando espaço e fazendo circular alguns momentos de resistência para expandir nossa compreensão sobre as tarefas que temos, defensores dos direitos humanos, para a construção de futuros possíveis, onde práticas que perpetuam violências, desigualdades e aniquilamentos não sejam mais uma realidade, muito menos operadas pelo Estado Brasileiro.
<blockquote>A nossa missão histórica, para nós que temos tomado a decisão de romper as malhas do colonialismo, é ordenar todas as rebeldias, todos os atos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afogadas em sangue. (Fanon, 1968, p. 215) </blockquote>Em março de 2019, no mesmo condomínio em que mora o atual Presidente da República, foram apreendidos 117 fuzis – desmontados e incompletos, alguns com a inscrição adulterada, porém novos – na casa de um amigo de uma das pessoas que viria a ser incriminada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL)<ref>TEIXEIRA, P.; FREIRE, F.; LEITÃO, L.; MARTINS, M. A.; COELHO, H. Polícia encontra 117 fuzis M-16 incompletos na casa de amigo do suspeito de atirar em Marielle e Anderson Gomes. TV Globo e G1 Rio, 12 de março de 2019. Disponível em: <nowiki>https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/12/policia-encontra-117-fuzis-m-16-na-casa-de-suspeito-de-atirar-em-marielle-e-anderson-gomes.ghtml</nowiki>. Acesso em: 6 mai. 2021.</ref>. O condomínio Vivendas da Barra é considerado um espaço da “elite” da cidade, com mansões avaliadas em milhões de reais. O evento se caracteriza até o momento como a maior apreensão de armas da história do estado do Rio de Janeiro (e uma das maiores apreensões do Brasil) e não foi disparado nenhum único tiro. Nenhuma pessoa foi ferida na ação. O dono da casa foi preso, mas não ficou muito tempo na cadeia. Ele era um homem, branco, cisgênero, na faixa dos 40 anos. Na mesma operação, os policiais encontraram também mais de 110 mil reais em dinheiro, de procedência desconhecida.
 
O escândalo que envolve o episódio pode nos ajudar a compreender a relação que as milícias e o tráfico estabelecem com o Estado, bem como discutir sobre as ameaças ao estado democrático de direito que são visibilizadas nesta investigação, sendo a própria morte de Marielle uma dessas expressões. Sobre isso, caberia uma tese à parte. Com a cena da apreensão dos fuzis, fica explícita a ideia que sim, talvez haja crime em TODOS os espaços da cidade. É certo que o caso do Vivendas da Barra contraria alguns teóricos da Criminologia Positivista, que defendiam que territórios específicos produziam bandidos. Não é só nas favelas e periferias que há pessoas cujos atos podem ser considerados ilegais, ainda que seja sempre necessário o exercício de discussão sobre como se produzem essas noções de ilegalismos – eu mesmo discordo da elaboração que é feita sobre drogas ou aborto pela legislação brasileira, para marcar apenas dois exemplos.
 
O problema, na verdade, não é nem a existência do crime em si. Não me ocupo de pensar sobre os supostos delitos. O que me interessa é discutir que, em alguns tipos de crime, a punição adotada assume uma infinidade de formas no campo da violação de direitos (que pode ser inclusive a perda da vida daquela pessoa considerada culpada), mas em outros casos não. Ter 117 armas em casa não pode, mas a forma de se punir o guardião das armas é absolutamente diferente das formas com que se pune, por exemplo, moradores de favelas cujo crime muitas vezes é estar na hora errada e no lugar errado. Aliás, cujo crime é ser morador de favela, pobre e preto. Como vimos em tristes cenas ocorridas no estado do Rio de Janeiro<ref>Para saber mais sobre o tema, confira Silva (2021). </ref>, há uma infinidade de Ágathas, Joãos, Alans, Emilys, Rebecas, Rodrigos... que o crime foi existir num mundo no qual as vidas negras e pobres são indignas de serem vividas. Onde o crime é existir em um mundo no qual o estatuto ontológico da vida não considera pessoas negras humanas – ou as considera numa subcategoria, cujas vidas podem ser ceifadas a qualquer momento.
 
Sérgio Cabral (MDB), governador do estado entre os anos de 2007 e 2014, sustentou em sua política de segurança que, nas favelas, as mulheres negras mães eram fábricas de bandidos e, portanto, as políticas de controle de natalidade naquela região deveriam ser mais rígidas. Hoje, em 2021, o lema da segurança pública de atirar na cabecinha segue vigente mesmo depois do impeachment de seu emissor originário, pois a racionalidade bélica da militarização não se restringe a pessoas. Com isso, torna-se nítido o aprofundamento das políticas de extermínio, que são endereçadas a um sujeito específico na sociedade, aquele que é exterminado a cada 23 minutos<ref>MARQUES, M. 'A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil', diz ONU ao lançar campanha contra violência. Portal G1, 7 de novembro de 2017. Disponível em: <nowiki>https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml</nowiki>. Acesso em: 10/07/2021.</ref>. A absurda violência no Brasil soma mais mortes do que as sangrentas guerras na Síria e no Iraque, por exemplo. Segundo o jornal El País<ref>EL PAÍS. A violência no Brasil mata mais que a Guerra na Síria. El País, 11 de dezembro de 2017. Dispo- nível em: <nowiki>https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/11/politica/1513002815_459310.html</nowiki>. Acesso em: 10/07/2021.</ref>, entre 2001 e 2015 houve 786.870 homicídios: a enorme maioria (70%) causada por arma de fogo e contra jovens negros. De acordo com a notícia, os números equivalem à população de Frankfurt, Sevilha ou João Pessoa.
 
Wacquant (2003), ao discutir a questão da violência pela polícia, afirma que as práticas são uma tradição secular de controle dos “miseráveis” pela força. A presença de tais práticas é registrada nos processos de escravização e em conflitos pelas terras nos séculos passados, por exemplo. No caso do Brasil, essa violência é fortalecida por períodos como a ditadura militar, em que a repressão dos rebeldes se disfarçou como repressão de inimigos da pátria, borrando as fronteiras entre o que seria uma manutenção da ordem e o que seria uma manutenção do status quo. Até os dias de hoje, como falamos no decorrer do texto, a incapacidade de superar este triste capítulo da história faz com que essa racionalidade esteja presente nas formas de governo das populações.
 
Nesse sentido, a responsabilidade pela guerra contra a população negra não pode ser outorgada à população negra. Como Fanon (2008) indica, não foram as pessoas negras que criaram um sentido para si depois de escravizadas, pois nunca tiveram essa oportunidade, mas esse sentido estava lá, preexistente, esperando-as: “A flama já estava lá, à espera desta oportunidade histórica” (p. 121). Cabe-nos compreender que a flama que ainda está acesa tem como combustível um passado (que tem presentidão) de colonialismo e racismo. E quando essa chama se acende no presente, em que as desigualdades se articulam com problemas estruturais e tornam o mundo ainda mais hostil para setores sociais específicos, o que vemos é um processo de aniquilamento das possibilidades de existir de uma população inteira.
 
Em “Os Condenados da Terra”, o psiquiatra nos ajuda a entender que as diferentes formas de subalternidade que são construídas (na história, cultura, economia, estruturas biológicas e psíquicas) também são componentes importantes na desarticulação dos modos de viver da população negra no presente (FANON, 1968, p. 197-198). Desta forma, as lutas pela vida digna devem ser lutas por um alargamento da ideia do que é ser humano, ou, em suas palavras (1968, p. 253): “percorrer o caminho da história dos condenados e tornar possível que ele [o homem negro] se conecte com outros homens [e assim seja lido, como semelhante]”. Na epígrafe da presente seção, podemos avançar numa discussão que entende que não é possível conciliar as bases societárias em que todas as cenas de violação de direitos se desenvolvem com uma outra agenda de sociedade, sem desigualdades e violências.
 
Afirmar a historicidade das violências é um passo fundamental, à medida que tal movimentação nos ajuda a entender que temos um futuro, que precisa ser disputado e inventado por nós. Tais reflexões nos ajudam a pensar nos nossos desafios sobre as pistas para pensar a segurança – desses jovens, das suas famílias e da garantia dos seus direitos – nos tempos que vivemos, em que o governo da vida em determinados territórios é feito pela brutalidade e pela violência de estado. Cada vez mais, as lutas coletivas pela vida e dignidade ocupam espaços centrais na vida das pessoas, e essa luta tem uma capacidade ímpar de se articular com os demais setores da sociedade, pois a pauta da segurança é prioridade das agendas políticas país afora, já que assegura o governo das populações (AGAMBEN, 2014 apud CRUZ et al., 2017).
 
Assim, no combate organizado aos genocídios nas favelas, revelam-se tantos outros controles absurdos que se exerce contra o povo – muitas vezes com apoio científico. Em muitos momentos da história, em diferentes países, vemos como o direito é instrumentalizado para a tutela dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher; aos interesses econômicos; às políticas segregacionistas e a tantas outras encomendas. Numa sociedade de classes, o próprio Estado é uma ferramenta de defesa das relações sociais, interesses e valores das classes dominantes, ainda que com o ar de universalidade (CRUZ et al., 2017).
 
É essencial que aprofundemos também os questionamentos sobre os limites das políticas públicas num país de capitalismo periférico e dependente para a emancipação da população. Um exemplo muito importante é sobre a máxima que muitos setores adotam de que a educação pode salvar os jovens: um ideário liberal, que supõe uma educação que não compreende que os estudantes possuem realidades diversas entre si e oportunidades de futuro e desenvolvimento que não olham apenas o currículo, mas a cor de pele, o endereço, a identidade de gênero, a orientação sexual e tantos outros marcadores.
 
Então, ainda que se consiga construir uma escola que se pretende antirracista ou até mesmo que não seja militarizada, ela não basta por si só para dar dignidade aos alunos e uma possibilidade de futuro – ainda que seja essencial. Sua efetividade só se dará se ela puder se articular com outros espaços de educação, com outras políticas de garantia de direitos e com o combate às múltiplas violências que os jovens, especialmente os negros e negras, são submetidos todos os dias na sociedade.
 
Assim, uma pista para o desmantelamento das redes de militarização (Silva, Pedro e Bicalho, 2022, no prelo) que envolvem os nossos jovens é a apresentação de um projeto alternativo, que seja ampliado e polifônico, articulando atores diversos e apresentando outras possibilidades de viver e de partilhar o mundo com o outro. A disputa que apresentamos sobre as redes de militarização é a que se trava sobre a vida. Afinal, os jovens negros nas periferias, ainda que sob outras formulações, são capturados pelas redes de militarização quando entendem que a morte é um dos destinos mais prováveis que eles podem ter, quando convivem com os esculachos<ref>Esculacho é a forma comum que se chamam as repreensões violentas que os policiais aplicam sobre a população durante suas atividades.</ref> de policiais, com a educação cada dia mais censurada e militarizada, com a cultura sendo perseguida, com a multiplicação dos agentes das políticas bélicas de segurança na cidade, nos espaços de lazer e nos esportes.
 
Outro ponto importante é sobre a necessidade do combate às milícias, que são uma reconfiguração dos grupos de extermínio e estabelecem novas relações com o controle militarizado nos territórios, dominando a partir da militarização o comércio e a política institucional de várias regiões. Segundo Misse (2011 apud CRUZ et al., 2017), as milícias encontraram, nas áreas de urbanização precária, um campo grande de coação sobre os moradores. Falamos brevemente sobre isso no segundo capítulo e compreendemos que o tema merece ser melhor discutido em outra ocasião.
 
Por fim, ainda em consonância com Cruz et al. (2017), devemos expandir o paradigma da segurança ao que hoje é posto: atuação policial ostensiva. É preciso que se entenda que a segurança só é efetivada quando falamos de direito à alimentação e moradia para todos, à educação formal, ao emprego digno e às oportunidades de vida. Quando o Estado se preocupa em se apresentar a um jovem negro nas favelas primeiro a partir de um policial e depois por um professor, a mensagem que ele passa é assertiva.
 
Entender que as políticas no campo da segurança operam a partir do conceito de racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) é condição ''sine qua non'' para discutir o tema. A história por trás da conformação das polícias no país indica uma instrumentalização das corporações à manutenção de lugares sociais estabelecidos – em outras palavras, reifica os dominantes como dominantes e os dominados como dominados. Cruz et al. (2017) apresentam esse mesmo debate, indicando o lugar de precariedade que o jovem negro ocupa nessa disputa: morando em locais insalubres e afastados pela gentrificação, com menos acesso formal à educação e à saúde, com pouca representação na política institucional, nos postos de trabalho mais precários e com menores rendas e direitos (o que ganha novos contornos com os fenômenos de uberização do trabalho) e morrendo mais cedo que o conjunto da população. As políticas de controle que se estabelecem em torno da vida desses jovens são feitas a partir de diferentes dimensões, numa ofensiva rede de violação de direitos.
 
A juventude negra, parcela mais vitimizada da população pelas políticas de segurança, também é um dos principais alvos das demais políticas de restauração conservadora do momento, com a impossibilidade de estudar pelos sucessivos cortes na educação, falta de perspectiva de emprego e renda e sem a menor intenção de um dia se aposentar, depois da Reforma da Previdência. Ou seja: perderam não apenas o direito a um futuro digno, mas ao presente. Ao mesmo tempo, têm se demonstrado como um importante setor nas mobilizações de resistência, na articulação de espaços de cultura como resistência, na defesa da educação não militarizada e contra as políticas de guerra às drogas.
 
Durante os anos iniciais da pandemia de Covid-19, vimos como essa juventude desempenhou um papel fundamental. Em levantamento realizado pelo [[Coronavírus nas favelas|Dicionário de Favelas Marielle Franco]]<ref>O mapeamento do Dicionário de Favelas está disponível no sítio eletrônico: <nowiki>https://wikifavelas.com.br/</nowiki> coronavirus.</ref>, projeto financiado pela Fundação Oswaldo Cruz, conhecemos um mapeamento que indica coletivos de todo o Brasil engajados em diferentes tarefas de combate ao coronavírus, como doação de alimentos, produção de materiais informativos e articulações políticas. Nas diversas ações, é expressiva a participação de jovens e de coletivos de jovens de favelas. Muitas hipóteses em torno dessa massiva participação foram levantadas: tanto a versão inicial de que a pandemia afetava mais as pessoas mais velhas, como também a força que os movimentos sociais de jovens das favelas têm ganhado em suas organizações internas no último período, o que fez com que, diante da emergência sanitária, tais atores rapidamente pudessem se articular para produzir respostas.
 
Também é importante citar que a juventude mostrou ao país todo em 2016 centenas de ocupações contra fechamento e militarização de escolas. Hoje, são os jovens os protagonistas na organização de rodas culturais nas favelas e periferias, reunindo centenas de pessoas todas as semanas para espaços de cultura e lazer. Ignorar essa realidade é ignorar o potencial insurgente e transformador dos jovens das nossas favelas e periferias. As diferentes estratégias de que os jovens lançam mão, em seu processo de organização e resistência, passam por muitos atores. Da cultura à educação popular, o caráter multidimensional das resistências deve ser uma inspiração àqueles que aspiram mudanças positivas para o mundo em que vivemos. Entre os relatos que o Fórum de Juventudes do RJ (2015) nos apresenta, podemos encontrar um que diz “não nos deixam ser jovens”. Talvez seja esse o principal efeito das redes de militarização na vida dos jovens: a inviabilização da sua existência. Hoje, a ideia bélica de fronteira faz com que políticas sejam feitas em oposição ao estranho, ao inimigo. Reorientar tal perspectiva, considerando que “o encontro entre as fronteiras é potente” (MARTINS, G., 2020, p. 03), pode ressignificar o papel da ação coletiva e reconstruir as redes, não mais pela militarização.
 
Segundo o Fórum de Juventudes do RJ (2015), organizados em espaços coletivos, meninos e meninas de diversas regiões do Rio debatem questões relativas ao impacto da militarização na juventude negra, na vida das mulheres e LGBTI+, sobre como as políticas de Estado hoje cumprem um papel de restringir sua circulação pela cidade e tantos outros problemas que são comuns aos periféricos e favelados em cada canto desse estado. Há problematizações feitas pelos jovens sobre a UPP, intervenções militarizadas, impactos das operações na escola e economia, assédios sexuais decorrentes da presença dos militares nas favelas e mudanças da rotina dos moradores em geral. Hoje, no Rio de Janeiro, as articulações territoriais da juventude cumprem um papel essencial nas lutas pela dignidade humana, pelo direito de viver, pela reinvenção do futuro de tantos jovens e suas famílias.
 
Algumas pistas do que pode ser feito são encontradas em movimentações contemporâneas de resistência. Silva et al. (2021, no prelo) trabalham uma expressão dessas resistências, ao discutirem o papel que as ações coletivas cumprem nas favelas ao enfrentar o coronavírus. Seu “sucesso”, segundo os autores, é um avanço contra a racionalidade orientada pela necropolítica e pelo neoliberalismo, pois, como aponta Gefaell (2015), o compartilhamento e a solidariedade são potentes armas contra o necroliberalismo. Ou seja, podemos pensar como, nas ações organizadas pelos coletivos citados, encontramos algumas motivações para seguirmos em luta.
 
Em diferentes composições que visam a construção de outros mundos devemos, do lugar da Psicologia, contribuir muito à discussão necessária e urgente de reinvenção do sentido ontológico da vida e seu estatuto, como é indicado pelo CFP (2020), especialmente no que diz respeito às disputas por tornar a vida dos diversos segmentos sociais algo possível do ponto de vista social.
 
Se no Brasil do necroliberalismo a banalização de algumas mortes por parte da entidade que deveria protegê-las é uma regra, não é equivocado afirmar que é uma tarefa da Psicologia brasileira discutir, problematizar e fortalecer as devidas insurgências para a construção de outra lógica de Segurança Pública – e, além: outra lógica de organização social, em que a liberdade e a dignidade humana sejam princípios realmente fundamentais e universais, a partir da defesa irrestrita da democracia, dos direitos humanos, da participação popular, bem como do enfrentamento às opressões estruturais presentes na racionalidade das políticas públicas forjadas no mundo necroliberal, visando a ampliação da cidadania em suas diferentes dimensões. Ou, sintetizando, é também nosso papel lutar por um certo alargamento das concepções de humanidade.
 
Quando as mães na Chacina do Fallet-Fogueteiro pedem que seus filhos não sejam assassinados, mas presos, elas pedem que eles tenham ali reconhecida sua condição de humano submetido aos pactos sociais e, portanto, tenham seu direito ao rito processual garantido, de acordo com as leis do Brasil, da mesma forma que os moradores do condomínio na Barra da Tijuca tiveram: suas casas foram revistadas com um mandado de busca e apreensão, a prisão em flagrante sucedeu-se com direito à defesa e acusação, e assim por diante.
 
As duas cenas nos ajudam a entender o abismo, a desigualdade que existe por aqui. Mas, talvez, a ideia de desigualdade não dê conta sozinha, porque ela por si só não fala muita coisa, e por mais que ela faça-viver de modos específicos, sua existência é, antes de mais nada, um dos efeitos do exercício do poder necroliberal e racista que orienta as relações sociais contemporâneas.
 
É urgente a construção de uma nova perspectiva de ação na segurança pública, que deve ser discutida por todos nós, em um processo – que deve ser coletivo e democrático – de afirmação de alternativas. Arrisco elencar algumas questões que se desdobram a partir do caminho que percorremos nas pesquisas (tanto esta como anteriores): em primeiro lugar, é urgente reformar o sistema de segurança pública. Isso passa por desmilitarizar políticas (no sentido literal, mas também na racionalidade que orienta as políticas públicas); investir num sistema de segurança que valorize seus profissionais (inclusive discutindo unificação de carreiras e planos de salários dignos) e invista mais em medidas de investigação e menos em performances nas ruas que expõem milhares de vidas. Da mesma forma, reformar a justiça criminal, repensando possibilidades como a dos autos de resistência, também é fundamental. Estas são algumas medidas que podem nos ajudar a começar o debate “do lado de lá”, pensando as políticas públicas “de” segurança.
 
Nossa juventude precisa de um horizonte em que a vida seja uma possibilidade concreta. Inventar um futuro não é fácil, especialmente quando a ideia de futuro, aos jovens negros, nunca foi um jardim de escolhas, mas sim de imposições. E isso não é tarefa apenas dos coletivos de juventude, de alguns movimentos sociais e de poucos partidos políticos. Isso é tarefa do conjunto da sociedade. Reduzir homicídios, em especial dos jovens negros, é o começo de qualquer conversa. É uma tarefa nacional. Construir outra sociedade, onde acesso à educação, saúde e moradia digna não sejam utopias é parte dessa luta pelo alargamento das concepções de humanidade.
 
=== Referências Bibliográficas ===
ALMEIDA, Silvio. '''O que é racismo estrutural'''. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.
 
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA – CFP. '''Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) na política de segurança pública'''. Brasília: CFP, 2020.
 
CRUZ, Ana Vládia Holanda; MINCHONI, Tatiana; MATSUMOTO, Adriana Eiko; ANDRADE, Soraya Souza de. A Ditadura que se perpetua: Direitos Humanos e a Militarização da Questão Social. '''Revista Psicologia Ciência e Profissão''', Brasília, v. 37, n. especial, p. 239-252, 2017. Disponível em: <nowiki>https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017</nowiki>. Acesso em: 15 jul. 2020.
 
FANON, Frantz. '''Os condenados da terra'''. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
 
FANON, Frantz. '''Pele negra, máscaras brancas'''. Salvador: EDUFBA, 2008.
 
FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE JANEIRO. '''Relatório final do Projeto Militarização das Favelas''': Impactos na vida dos jovens negros do Fórum de Juventudes do RJ. E-book. Rio de Janeiro: FJRJ, 2015. Disponível em: <nowiki>http://www.fundodireitoshumanos.org.br/v2/uploads/files/Militarizacao_UPPs.pdf</nowiki>. Acesso em: 01/08/2021.
 
GEFAELL, Clara Valverde. '''De la necropolítica neoliberal a la empatía radical''': violência discreta, cuerpos excluidos y repolitización. 1 ed. Barcelona: Icaria Editorial, 2015.
 
MARTINS, Gizele. Militarização como Megaprojeto Transnacional: Tecnologias de vigilância e resistências na luta pelo embargo militar. '''Massa Crítica''', ano 18, ed. 77, 2020. Disponível em: <nowiki>http://biblioteca.pacs.org.br/wp-content/uploads/2020/12/Massa-Cr%C3%ADtica_ed.77.pdf</nowiki>. Acesso em: 01/08/2021.
 
SILVA, C. A. F.; GONÇALVES, C. S.; DAMEDA, C.; PEDRO, R. M. L. R. Redes de militarização e juventudes no Estado do Rio de Janeiro. '''Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminalidade crítica, racismo e violências de gênero''', 2022. No prelo.
 
SILVA, C. A. F.; PEDRO, R. M. L. R; BICALHO, P. P. G. Atitudes que fazem a diferença: coronavírus e os coletivos nas favelas. '''Psicologia Política''', v. 21, n. 51, p. 4-17, 2021.
 
SILVA, C. '''Redes de Militarização no Rio de Janeiro: Cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas'''. 119 f. 2020. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2021.
 
WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

Edição das 00h43min de 2 de outubro de 2022

Autor: Caíque Azael

O presente verbete é um extrato da dissertação de mestrado intitulada “Redes de militarização no Rio de Janeiro : cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas”, apresentada em 2021 ao Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFRJ (PPGP/UFRJ). Acesse o texto na íntegra clicando aqui.

Segurança Pública e Direitos Humanos: algumas considerações para seguirmos em luta

RESUMO: A análise das políticas públicas de segurança do Rio de Janeiro revela uma racionalidade colonialista e racista de atuação do Estado em favelas e periferias. O presente manuscrito se dedica a explorar algumas das controvérsias recentes no que tange à referida política pública, dando espaço e fazendo circular alguns momentos de resistência para expandir nossa compreensão sobre as tarefas que temos, defensores dos direitos humanos, para a construção de futuros possíveis, onde práticas que perpetuam violências, desigualdades e aniquilamentos não sejam mais uma realidade, muito menos operadas pelo Estado Brasileiro.

A nossa missão histórica, para nós que temos tomado a decisão de romper as malhas do colonialismo, é ordenar todas as rebeldias, todos os atos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afogadas em sangue. (Fanon, 1968, p. 215)

Em março de 2019, no mesmo condomínio em que mora o atual Presidente da República, foram apreendidos 117 fuzis – desmontados e incompletos, alguns com a inscrição adulterada, porém novos – na casa de um amigo de uma das pessoas que viria a ser incriminada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL)[1]. O condomínio Vivendas da Barra é considerado um espaço da “elite” da cidade, com mansões avaliadas em milhões de reais. O evento se caracteriza até o momento como a maior apreensão de armas da história do estado do Rio de Janeiro (e uma das maiores apreensões do Brasil) e não foi disparado nenhum único tiro. Nenhuma pessoa foi ferida na ação. O dono da casa foi preso, mas não ficou muito tempo na cadeia. Ele era um homem, branco, cisgênero, na faixa dos 40 anos. Na mesma operação, os policiais encontraram também mais de 110 mil reais em dinheiro, de procedência desconhecida.

O escândalo que envolve o episódio pode nos ajudar a compreender a relação que as milícias e o tráfico estabelecem com o Estado, bem como discutir sobre as ameaças ao estado democrático de direito que são visibilizadas nesta investigação, sendo a própria morte de Marielle uma dessas expressões. Sobre isso, caberia uma tese à parte. Com a cena da apreensão dos fuzis, fica explícita a ideia que sim, talvez haja crime em TODOS os espaços da cidade. É certo que o caso do Vivendas da Barra contraria alguns teóricos da Criminologia Positivista, que defendiam que territórios específicos produziam bandidos. Não é só nas favelas e periferias que há pessoas cujos atos podem ser considerados ilegais, ainda que seja sempre necessário o exercício de discussão sobre como se produzem essas noções de ilegalismos – eu mesmo discordo da elaboração que é feita sobre drogas ou aborto pela legislação brasileira, para marcar apenas dois exemplos.

O problema, na verdade, não é nem a existência do crime em si. Não me ocupo de pensar sobre os supostos delitos. O que me interessa é discutir que, em alguns tipos de crime, a punição adotada assume uma infinidade de formas no campo da violação de direitos (que pode ser inclusive a perda da vida daquela pessoa considerada culpada), mas em outros casos não. Ter 117 armas em casa não pode, mas a forma de se punir o guardião das armas é absolutamente diferente das formas com que se pune, por exemplo, moradores de favelas cujo crime muitas vezes é estar na hora errada e no lugar errado. Aliás, cujo crime é ser morador de favela, pobre e preto. Como vimos em tristes cenas ocorridas no estado do Rio de Janeiro[2], há uma infinidade de Ágathas, Joãos, Alans, Emilys, Rebecas, Rodrigos... que o crime foi existir num mundo no qual as vidas negras e pobres são indignas de serem vividas. Onde o crime é existir em um mundo no qual o estatuto ontológico da vida não considera pessoas negras humanas – ou as considera numa subcategoria, cujas vidas podem ser ceifadas a qualquer momento.

Sérgio Cabral (MDB), governador do estado entre os anos de 2007 e 2014, sustentou em sua política de segurança que, nas favelas, as mulheres negras mães eram fábricas de bandidos e, portanto, as políticas de controle de natalidade naquela região deveriam ser mais rígidas. Hoje, em 2021, o lema da segurança pública de atirar na cabecinha segue vigente mesmo depois do impeachment de seu emissor originário, pois a racionalidade bélica da militarização não se restringe a pessoas. Com isso, torna-se nítido o aprofundamento das políticas de extermínio, que são endereçadas a um sujeito específico na sociedade, aquele que é exterminado a cada 23 minutos[3]. A absurda violência no Brasil soma mais mortes do que as sangrentas guerras na Síria e no Iraque, por exemplo. Segundo o jornal El País[4], entre 2001 e 2015 houve 786.870 homicídios: a enorme maioria (70%) causada por arma de fogo e contra jovens negros. De acordo com a notícia, os números equivalem à população de Frankfurt, Sevilha ou João Pessoa.

Wacquant (2003), ao discutir a questão da violência pela polícia, afirma que as práticas são uma tradição secular de controle dos “miseráveis” pela força. A presença de tais práticas é registrada nos processos de escravização e em conflitos pelas terras nos séculos passados, por exemplo. No caso do Brasil, essa violência é fortalecida por períodos como a ditadura militar, em que a repressão dos rebeldes se disfarçou como repressão de inimigos da pátria, borrando as fronteiras entre o que seria uma manutenção da ordem e o que seria uma manutenção do status quo. Até os dias de hoje, como falamos no decorrer do texto, a incapacidade de superar este triste capítulo da história faz com que essa racionalidade esteja presente nas formas de governo das populações.

Nesse sentido, a responsabilidade pela guerra contra a população negra não pode ser outorgada à população negra. Como Fanon (2008) indica, não foram as pessoas negras que criaram um sentido para si depois de escravizadas, pois nunca tiveram essa oportunidade, mas esse sentido estava lá, preexistente, esperando-as: “A flama já estava lá, à espera desta oportunidade histórica” (p. 121). Cabe-nos compreender que a flama que ainda está acesa tem como combustível um passado (que tem presentidão) de colonialismo e racismo. E quando essa chama se acende no presente, em que as desigualdades se articulam com problemas estruturais e tornam o mundo ainda mais hostil para setores sociais específicos, o que vemos é um processo de aniquilamento das possibilidades de existir de uma população inteira.

Em “Os Condenados da Terra”, o psiquiatra nos ajuda a entender que as diferentes formas de subalternidade que são construídas (na história, cultura, economia, estruturas biológicas e psíquicas) também são componentes importantes na desarticulação dos modos de viver da população negra no presente (FANON, 1968, p. 197-198). Desta forma, as lutas pela vida digna devem ser lutas por um alargamento da ideia do que é ser humano, ou, em suas palavras (1968, p. 253): “percorrer o caminho da história dos condenados e tornar possível que ele [o homem negro] se conecte com outros homens [e assim seja lido, como semelhante]”. Na epígrafe da presente seção, podemos avançar numa discussão que entende que não é possível conciliar as bases societárias em que todas as cenas de violação de direitos se desenvolvem com uma outra agenda de sociedade, sem desigualdades e violências.

Afirmar a historicidade das violências é um passo fundamental, à medida que tal movimentação nos ajuda a entender que temos um futuro, que precisa ser disputado e inventado por nós. Tais reflexões nos ajudam a pensar nos nossos desafios sobre as pistas para pensar a segurança – desses jovens, das suas famílias e da garantia dos seus direitos – nos tempos que vivemos, em que o governo da vida em determinados territórios é feito pela brutalidade e pela violência de estado. Cada vez mais, as lutas coletivas pela vida e dignidade ocupam espaços centrais na vida das pessoas, e essa luta tem uma capacidade ímpar de se articular com os demais setores da sociedade, pois a pauta da segurança é prioridade das agendas políticas país afora, já que assegura o governo das populações (AGAMBEN, 2014 apud CRUZ et al., 2017).

Assim, no combate organizado aos genocídios nas favelas, revelam-se tantos outros controles absurdos que se exerce contra o povo – muitas vezes com apoio científico. Em muitos momentos da história, em diferentes países, vemos como o direito é instrumentalizado para a tutela dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher; aos interesses econômicos; às políticas segregacionistas e a tantas outras encomendas. Numa sociedade de classes, o próprio Estado é uma ferramenta de defesa das relações sociais, interesses e valores das classes dominantes, ainda que com o ar de universalidade (CRUZ et al., 2017).

É essencial que aprofundemos também os questionamentos sobre os limites das políticas públicas num país de capitalismo periférico e dependente para a emancipação da população. Um exemplo muito importante é sobre a máxima que muitos setores adotam de que a educação pode salvar os jovens: um ideário liberal, que supõe uma educação que não compreende que os estudantes possuem realidades diversas entre si e oportunidades de futuro e desenvolvimento que não olham apenas o currículo, mas a cor de pele, o endereço, a identidade de gênero, a orientação sexual e tantos outros marcadores.

Então, ainda que se consiga construir uma escola que se pretende antirracista ou até mesmo que não seja militarizada, ela não basta por si só para dar dignidade aos alunos e uma possibilidade de futuro – ainda que seja essencial. Sua efetividade só se dará se ela puder se articular com outros espaços de educação, com outras políticas de garantia de direitos e com o combate às múltiplas violências que os jovens, especialmente os negros e negras, são submetidos todos os dias na sociedade.

Assim, uma pista para o desmantelamento das redes de militarização (Silva, Pedro e Bicalho, 2022, no prelo) que envolvem os nossos jovens é a apresentação de um projeto alternativo, que seja ampliado e polifônico, articulando atores diversos e apresentando outras possibilidades de viver e de partilhar o mundo com o outro. A disputa que apresentamos sobre as redes de militarização é a que se trava sobre a vida. Afinal, os jovens negros nas periferias, ainda que sob outras formulações, são capturados pelas redes de militarização quando entendem que a morte é um dos destinos mais prováveis que eles podem ter, quando convivem com os esculachos[5] de policiais, com a educação cada dia mais censurada e militarizada, com a cultura sendo perseguida, com a multiplicação dos agentes das políticas bélicas de segurança na cidade, nos espaços de lazer e nos esportes.

Outro ponto importante é sobre a necessidade do combate às milícias, que são uma reconfiguração dos grupos de extermínio e estabelecem novas relações com o controle militarizado nos territórios, dominando a partir da militarização o comércio e a política institucional de várias regiões. Segundo Misse (2011 apud CRUZ et al., 2017), as milícias encontraram, nas áreas de urbanização precária, um campo grande de coação sobre os moradores. Falamos brevemente sobre isso no segundo capítulo e compreendemos que o tema merece ser melhor discutido em outra ocasião.

Por fim, ainda em consonância com Cruz et al. (2017), devemos expandir o paradigma da segurança ao que hoje é posto: atuação policial ostensiva. É preciso que se entenda que a segurança só é efetivada quando falamos de direito à alimentação e moradia para todos, à educação formal, ao emprego digno e às oportunidades de vida. Quando o Estado se preocupa em se apresentar a um jovem negro nas favelas primeiro a partir de um policial e depois por um professor, a mensagem que ele passa é assertiva.

Entender que as políticas no campo da segurança operam a partir do conceito de racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) é condição sine qua non para discutir o tema. A história por trás da conformação das polícias no país indica uma instrumentalização das corporações à manutenção de lugares sociais estabelecidos – em outras palavras, reifica os dominantes como dominantes e os dominados como dominados. Cruz et al. (2017) apresentam esse mesmo debate, indicando o lugar de precariedade que o jovem negro ocupa nessa disputa: morando em locais insalubres e afastados pela gentrificação, com menos acesso formal à educação e à saúde, com pouca representação na política institucional, nos postos de trabalho mais precários e com menores rendas e direitos (o que ganha novos contornos com os fenômenos de uberização do trabalho) e morrendo mais cedo que o conjunto da população. As políticas de controle que se estabelecem em torno da vida desses jovens são feitas a partir de diferentes dimensões, numa ofensiva rede de violação de direitos.

A juventude negra, parcela mais vitimizada da população pelas políticas de segurança, também é um dos principais alvos das demais políticas de restauração conservadora do momento, com a impossibilidade de estudar pelos sucessivos cortes na educação, falta de perspectiva de emprego e renda e sem a menor intenção de um dia se aposentar, depois da Reforma da Previdência. Ou seja: perderam não apenas o direito a um futuro digno, mas ao presente. Ao mesmo tempo, têm se demonstrado como um importante setor nas mobilizações de resistência, na articulação de espaços de cultura como resistência, na defesa da educação não militarizada e contra as políticas de guerra às drogas.

Durante os anos iniciais da pandemia de Covid-19, vimos como essa juventude desempenhou um papel fundamental. Em levantamento realizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco[6], projeto financiado pela Fundação Oswaldo Cruz, conhecemos um mapeamento que indica coletivos de todo o Brasil engajados em diferentes tarefas de combate ao coronavírus, como doação de alimentos, produção de materiais informativos e articulações políticas. Nas diversas ações, é expressiva a participação de jovens e de coletivos de jovens de favelas. Muitas hipóteses em torno dessa massiva participação foram levantadas: tanto a versão inicial de que a pandemia afetava mais as pessoas mais velhas, como também a força que os movimentos sociais de jovens das favelas têm ganhado em suas organizações internas no último período, o que fez com que, diante da emergência sanitária, tais atores rapidamente pudessem se articular para produzir respostas.

Também é importante citar que a juventude mostrou ao país todo em 2016 centenas de ocupações contra fechamento e militarização de escolas. Hoje, são os jovens os protagonistas na organização de rodas culturais nas favelas e periferias, reunindo centenas de pessoas todas as semanas para espaços de cultura e lazer. Ignorar essa realidade é ignorar o potencial insurgente e transformador dos jovens das nossas favelas e periferias. As diferentes estratégias de que os jovens lançam mão, em seu processo de organização e resistência, passam por muitos atores. Da cultura à educação popular, o caráter multidimensional das resistências deve ser uma inspiração àqueles que aspiram mudanças positivas para o mundo em que vivemos. Entre os relatos que o Fórum de Juventudes do RJ (2015) nos apresenta, podemos encontrar um que diz “não nos deixam ser jovens”. Talvez seja esse o principal efeito das redes de militarização na vida dos jovens: a inviabilização da sua existência. Hoje, a ideia bélica de fronteira faz com que políticas sejam feitas em oposição ao estranho, ao inimigo. Reorientar tal perspectiva, considerando que “o encontro entre as fronteiras é potente” (MARTINS, G., 2020, p. 03), pode ressignificar o papel da ação coletiva e reconstruir as redes, não mais pela militarização.

Segundo o Fórum de Juventudes do RJ (2015), organizados em espaços coletivos, meninos e meninas de diversas regiões do Rio debatem questões relativas ao impacto da militarização na juventude negra, na vida das mulheres e LGBTI+, sobre como as políticas de Estado hoje cumprem um papel de restringir sua circulação pela cidade e tantos outros problemas que são comuns aos periféricos e favelados em cada canto desse estado. Há problematizações feitas pelos jovens sobre a UPP, intervenções militarizadas, impactos das operações na escola e economia, assédios sexuais decorrentes da presença dos militares nas favelas e mudanças da rotina dos moradores em geral. Hoje, no Rio de Janeiro, as articulações territoriais da juventude cumprem um papel essencial nas lutas pela dignidade humana, pelo direito de viver, pela reinvenção do futuro de tantos jovens e suas famílias.

Algumas pistas do que pode ser feito são encontradas em movimentações contemporâneas de resistência. Silva et al. (2021, no prelo) trabalham uma expressão dessas resistências, ao discutirem o papel que as ações coletivas cumprem nas favelas ao enfrentar o coronavírus. Seu “sucesso”, segundo os autores, é um avanço contra a racionalidade orientada pela necropolítica e pelo neoliberalismo, pois, como aponta Gefaell (2015), o compartilhamento e a solidariedade são potentes armas contra o necroliberalismo. Ou seja, podemos pensar como, nas ações organizadas pelos coletivos citados, encontramos algumas motivações para seguirmos em luta.

Em diferentes composições que visam a construção de outros mundos devemos, do lugar da Psicologia, contribuir muito à discussão necessária e urgente de reinvenção do sentido ontológico da vida e seu estatuto, como é indicado pelo CFP (2020), especialmente no que diz respeito às disputas por tornar a vida dos diversos segmentos sociais algo possível do ponto de vista social.

Se no Brasil do necroliberalismo a banalização de algumas mortes por parte da entidade que deveria protegê-las é uma regra, não é equivocado afirmar que é uma tarefa da Psicologia brasileira discutir, problematizar e fortalecer as devidas insurgências para a construção de outra lógica de Segurança Pública – e, além: outra lógica de organização social, em que a liberdade e a dignidade humana sejam princípios realmente fundamentais e universais, a partir da defesa irrestrita da democracia, dos direitos humanos, da participação popular, bem como do enfrentamento às opressões estruturais presentes na racionalidade das políticas públicas forjadas no mundo necroliberal, visando a ampliação da cidadania em suas diferentes dimensões. Ou, sintetizando, é também nosso papel lutar por um certo alargamento das concepções de humanidade.

Quando as mães na Chacina do Fallet-Fogueteiro pedem que seus filhos não sejam assassinados, mas presos, elas pedem que eles tenham ali reconhecida sua condição de humano submetido aos pactos sociais e, portanto, tenham seu direito ao rito processual garantido, de acordo com as leis do Brasil, da mesma forma que os moradores do condomínio na Barra da Tijuca tiveram: suas casas foram revistadas com um mandado de busca e apreensão, a prisão em flagrante sucedeu-se com direito à defesa e acusação, e assim por diante.

As duas cenas nos ajudam a entender o abismo, a desigualdade que existe por aqui. Mas, talvez, a ideia de desigualdade não dê conta sozinha, porque ela por si só não fala muita coisa, e por mais que ela faça-viver de modos específicos, sua existência é, antes de mais nada, um dos efeitos do exercício do poder necroliberal e racista que orienta as relações sociais contemporâneas.

É urgente a construção de uma nova perspectiva de ação na segurança pública, que deve ser discutida por todos nós, em um processo – que deve ser coletivo e democrático – de afirmação de alternativas. Arrisco elencar algumas questões que se desdobram a partir do caminho que percorremos nas pesquisas (tanto esta como anteriores): em primeiro lugar, é urgente reformar o sistema de segurança pública. Isso passa por desmilitarizar políticas (no sentido literal, mas também na racionalidade que orienta as políticas públicas); investir num sistema de segurança que valorize seus profissionais (inclusive discutindo unificação de carreiras e planos de salários dignos) e invista mais em medidas de investigação e menos em performances nas ruas que expõem milhares de vidas. Da mesma forma, reformar a justiça criminal, repensando possibilidades como a dos autos de resistência, também é fundamental. Estas são algumas medidas que podem nos ajudar a começar o debate “do lado de lá”, pensando as políticas públicas “de” segurança.

Nossa juventude precisa de um horizonte em que a vida seja uma possibilidade concreta. Inventar um futuro não é fácil, especialmente quando a ideia de futuro, aos jovens negros, nunca foi um jardim de escolhas, mas sim de imposições. E isso não é tarefa apenas dos coletivos de juventude, de alguns movimentos sociais e de poucos partidos políticos. Isso é tarefa do conjunto da sociedade. Reduzir homicídios, em especial dos jovens negros, é o começo de qualquer conversa. É uma tarefa nacional. Construir outra sociedade, onde acesso à educação, saúde e moradia digna não sejam utopias é parte dessa luta pelo alargamento das concepções de humanidade.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA – CFP. Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) na política de segurança pública. Brasília: CFP, 2020.

CRUZ, Ana Vládia Holanda; MINCHONI, Tatiana; MATSUMOTO, Adriana Eiko; ANDRADE, Soraya Souza de. A Ditadura que se perpetua: Direitos Humanos e a Militarização da Questão Social. Revista Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 37, n. especial, p. 239-252, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017. Acesso em: 15 jul. 2020.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE JANEIRO. Relatório final do Projeto Militarização das Favelas: Impactos na vida dos jovens negros do Fórum de Juventudes do RJ. E-book. Rio de Janeiro: FJRJ, 2015. Disponível em: http://www.fundodireitoshumanos.org.br/v2/uploads/files/Militarizacao_UPPs.pdf. Acesso em: 01/08/2021.

GEFAELL, Clara Valverde. De la necropolítica neoliberal a la empatía radical: violência discreta, cuerpos excluidos y repolitización. 1 ed. Barcelona: Icaria Editorial, 2015.

MARTINS, Gizele. Militarização como Megaprojeto Transnacional: Tecnologias de vigilância e resistências na luta pelo embargo militar. Massa Crítica, ano 18, ed. 77, 2020. Disponível em: http://biblioteca.pacs.org.br/wp-content/uploads/2020/12/Massa-Cr%C3%ADtica_ed.77.pdf. Acesso em: 01/08/2021.

SILVA, C. A. F.; GONÇALVES, C. S.; DAMEDA, C.; PEDRO, R. M. L. R. Redes de militarização e juventudes no Estado do Rio de Janeiro. Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminalidade crítica, racismo e violências de gênero, 2022. No prelo.

SILVA, C. A. F.; PEDRO, R. M. L. R; BICALHO, P. P. G. Atitudes que fazem a diferença: coronavírus e os coletivos nas favelas. Psicologia Política, v. 21, n. 51, p. 4-17, 2021.

SILVA, C. Redes de Militarização no Rio de Janeiro: Cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas. 119 f. 2020. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2021.

WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

  1. TEIXEIRA, P.; FREIRE, F.; LEITÃO, L.; MARTINS, M. A.; COELHO, H. Polícia encontra 117 fuzis M-16 incompletos na casa de amigo do suspeito de atirar em Marielle e Anderson Gomes. TV Globo e G1 Rio, 12 de março de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/12/policia-encontra-117-fuzis-m-16-na-casa-de-suspeito-de-atirar-em-marielle-e-anderson-gomes.ghtml. Acesso em: 6 mai. 2021.
  2. Para saber mais sobre o tema, confira Silva (2021).
  3. MARQUES, M. 'A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil', diz ONU ao lançar campanha contra violência. Portal G1, 7 de novembro de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml. Acesso em: 10/07/2021.
  4. EL PAÍS. A violência no Brasil mata mais que a Guerra na Síria. El País, 11 de dezembro de 2017. Dispo- nível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/11/politica/1513002815_459310.html. Acesso em: 10/07/2021.
  5. Esculacho é a forma comum que se chamam as repreensões violentas que os policiais aplicam sobre a população durante suas atividades.
  6. O mapeamento do Dicionário de Favelas está disponível no sítio eletrônico: https://wikifavelas.com.br/ coronavirus.