Gentrificação e Favelas Cariocas: mudanças entre as edições
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Edição das 14h53min de 16 de maio de 2020
Autores: Patrícia Ramos Novaes e Orlando Alves dos Santos Junior
O conceito de Gentrificação
O debate sobre gentrificação se difundiu mais recentemente no Brasil, no entanto, nos países anglo-saxões ele já vinha sendo discutido desde os anos de 1960 para tratar de um fenômeno urbano no qual a classe média, atraída pelos baixos preços dos imóveis dos bairros operários localizados em áreas centrais das cidades, passaram a ter esses espaços como opção de moradia. Assim, ao renovar casas antigas e atrair pouco a pouco a vinda de novos moradores de classe média, os bairros iriam se elitizando e perdendo sua característica popular.
A socióloga britânica Ruth Glass[1] denominou esse fenômeno de gentrificação e apontou para a complexidade desse movimento que implicava não apenas em renovação de moradias, mas em alta de preço imobiliário, e deslocamento da classe trabalhadora que habitava os bairros em questão. Assim, na sua forma clássica, a gentrificação aparecia como um fenômeno novo, espontâneo e restrito a algumas cidades de países de economia central. Nesta análise, o retorno da classe média ao centro da cidade era entendido como efeito da modernização de antigas moradias nessas áreas, feita pelos proprietários de imóveis que, por sua vez, seguiam a onda de reformas urbanas produzidas pelo Estado.
No final da década de 1970, uma vez que o fenômeno da gentrificação já podia ser percebido em outras cidades capitalistas ocidentais, o conceito criado por Glass[2] foi apropriado pelo debate acadêmico em diversas áreas de conhecimento. Passou, assim, da sociologia e antropologia à economia e, também, pelos campos da geografia e do planejamento urbano. Duas abordagens sobre o fenômeno da gentrificação surgem como um “campo de batalha” teórico entre os humanistas liberais e os marxistas estruturalistas. Os humanistas liberais, tendo o geógrafo David Ley como principal representante, abordaram o fenômeno da gentrificação, a partir de uma teoria culturalista. Este grupo enfatizou interpretações que privilegiaram a escolha, a cultura, o consumo e a demanda por moradia. No campo do marxismo, o geógrafo Neil Smith foi o principal representante e suas interpretações privilegiaram o capital, a classe e a produção e oferta de terras.
Ley e Smith ampliaram o conceito de gentrificação e suas reflexões estimularam estudos posteriores aplicados a casos concretos. Assim, ao longo dos anos, esse conceito foi sendo ampliado para tratar não mais de um fenômeno local, mas de algo que acontecia em escala global[3] atrelado, cada vez mais, às estratégias do Estado e do mercado imobiliário para renovação de áreas centrais degradadas. A gentrificação, portanto, com base nas formulações de Neil Smith[4] , implica no processo de reestruturação das áreas centrais, em decadência e ocupadas pela população de baixa renda, pela ação de atores coletivos públicos e privados (empreendedores, setor imobiliário, bancos, gestores públicos, proprietários individuais) movidos tanto pela característica locacional, quanto pelo preço da terra menos valorizada em relação a outras áreas da cidade. Assim, renovações de moradias ou até novas construções para classe média, além do estabelecimento de empresas e serviços nestas áreas, passam também a atrair novos moradores e este efeito aos poucos acaba propiciando a saída dos antigos moradores pelo aumento do custo de vida e descaracterização do espaço.
As formulações de Smith buscam ressaltar quatro aspectos centrais sobre a gentrificação. Primeiro, a dimensão de classe. Nesse caso, argumenta-se que estaria em curso, pelo menos potencialmente, uma mudança dos agentes detentores da posse da terra urbana nas localidades que estariam sendo objeto da renovação urbana, substituindo setores das classes populares por segmentos das classes média.
Em segundo lugar, o diferencial de renda da terra (rent gap). Smith [5] propôs uma tese explicativa da gentrificação que se funda sobre a produção do espaço urbano. Para o autor, a substituição dos detentores da posse da terra urbana nas localidades centrais das cidades seria explicada mais como o resultado da dinâmica do capital do que como decorrência de preferências e interesses pessoais. Assim, a reestruturação das áreas centrais atrairíam os atores coletivos públicos e privados que produzem o espaço urbano (empreendedores, setor imobiliário, bancos, gestores públicos, proprietários individuais) tanto pela característica locacional, quanto pelo preço da terra menos valorizada em relação a outras áreas da cidade. Segundo este ponto de vista, o processo de gentrificação se inicia a partir de decisões e atuações de uma coalisão de atores no espaço urbano.
Em terceiro lugar, a gentrificação como estratégia de renovação urbana. Nesta perspectiva, os processos de gentrificação não seriam concebidos apenas como resultado da lógica do mercado imobiliário, mas como uma estratégia de classe, da coalizão dominante, envolvendo uma particular interação entre o poder público e os agentes privados, na qual são adotadas políticas e implementadas ações voltadas para a promoção da gentrificação. Para Smith[6] , o papel do Estado é essencial nos processos de gentrificação, na medida em que cria as condições para atuação dos empreendedores imobiliários através de programas de ajuda financeira ou políticas públicas de renovação dos espaços urbanos. E por fim, a dimensão da generalização do processo de gentrificação. espacial. Para Hackworth e Smith[7] , mais do que reabilitação de moradia para classe média, a gentrificação envolveria a reconstrução de todo um modo de vida, a partir da transformação das áreas de lazer e consumo nos bairros. Além disso, a ideia da gentrificação como um fenômeno generalizado, permite identificar que este fenômeno não só se estendeu a outras partes do mundo, mas também se estendeu para além das áreas centrais tradicionais, ou seja, para outras centralidades na cidade.
Além destas quatro características, deve-se considerar ainda a importância simbólica atribuída à certas áreas que sofrem processos de gentrificação[8] . Nesse sentido, deve-se reconhecer que a renda potencial de um determinado espaço é influenciada não apenas pela sua localização, mas também pelos seus atributos simbólicos, ou seja, as representações positivas ou negativas associadas a cada território, o que permitiria entender por que determinados espaços centrais, e não qualquer lugar da cidade, seriam áreas mais propícias a sofrerem processos de gentrificação. Além das formulações clássicas em torno do padrão das moradias, destaca-se ainda as análises sobre a gentrificação comercial[9] e a gentrificação turística[10] que consideram a atração da população de classe média aos espaços populares renovados não para estabelecer moradias, mas para consumir. Assim levam em consideração as transformações no padrão de lazer, turismo e entretenimento dessas localidades, mesmo que não tenha havido mudanças no padrão residencial.
A ampliação do conceito de gentrificação ao longo dos anos, ressaltando a diversidade de características e especificidades do fenômeno, permitiria justamente dar conta de novas experiências, especialmente, a partir da difusão do padrão de urbanização neoliberal que passa a ser adotado em diversas cidades, não só nos países de economias centrais, mas também nos de economia periférica. Desta forma, o conceito de gentrificação passou a ser progressivamente acionado em diversos estudos sobre renovação urbana ao redor do mundo, e também no Brasil, buscando-se entender os processos de elitização dos espaços bem localizados e ocupados por classes populares, que passavam por projetos de renovação urbana. Na cidade do Rio de Janeiro, bem como em diversas outras cidades do Brasil, a adoção de projeto de renovação urbana de áreas centrais se difundiu a partir do início dos anos 2000. A adoção dos termos renovação, requalificação e revitalização na agenda das políticas urbanas se tornaram comuns a partir desse período e, geralmente, ambicionavam investimentos públicos e privados em áreas centrais da cidade, com objetivo de dinamização econômica. Cabe esclarecer que entendemos aqui áreas centrais não apenas do ponto de vista histórico-geográfico, mas como locais que concentram riqueza, equipamentos urbanos, fluxos de pessoas e de mercadorias.
O caso das cidades brasileiras: as favelas cariocas
No caso das cidades brasileiras, o conceito ampliado de gentrificação permitiu identificar que diversas experiências de elitização de territórios populares se dão em maior medida no padrão de lazer, turismo e entretenimento, do que no padrão residencial. Os projetos de renovação urbana parecem atrair novos empreendedores, em geral de fora das localidades, e uma população de classe média para consumir bens e serviços que passavam a ser ofertados, e nem tanto para estabelecer residência[11] . Além disso, em muitos casos, essas experiências de gentrificação estariam atreladas à ação direta do Estado ao direcionar investimentos públicos para determinadas áreas da cidade em detrimento de outras, modificando legislações a favor do mercado e, em alguns casos, promovendo remoções das classes populares de áreas em processo de renovação urbana.
A discussão sobre o fenômeno da gentrificação em favelas cariocas iniciou no processo de reestruturações urbanas na cidade, no contexto da realização dos megaeventos esportivos da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. As favelas receberam um tripé de intervenções públicas, instrumentalizadas pelo discurso da “integração” à cidade como garantia de direitos. Esse tripé foi formado pela implementação das seguintes políticas: i) segurança pública, através do programa de unidade de polícia pacificadora -UPP; ii) urbanização, essencialmente os programas PAC-Favelas e Morar Carioca, envolvendo melhorias e instalação de equipamentos públicos; e iii) disseminação de um ideário empreendedorista, que estimulou a formalização de serviços já existentes e a abertura de novos, porém com padrão diferenciado e voltado a um público de classe média. Além da legalização e consequente pagamento pelos inúmeros serviços antes acessados de maneira "informal", foram observados estímulo ao microcrédito e ao pagamento de impostos comerciais.
Alguns estudos apontam que os impactos dessas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro, parecem ter gerado processos de gentrificação, em especial nas favelas localizadas na zona sul, área mais nobre da cidade. Vale destacar que a zona sul se configurou como a principal área de desenvolvimento econômico da cidade já no início do século XX e até os dias de hoje é a área mais valorizada e turística da cidade, possuindo importantes subcentros comerciais e de serviços. No entanto, desde o contexto de sua formação, muitas favelas se consolidaram na região.
De fato as favelas da zona sul, em geral, são aquelas que possuem vistas mais atraentes, tornando-as especiais pela sua localização e mais vulneráveis a sofrer processos de gentrificação. Como exemplos, destacam-se os efeitos das intervenções públicas acima mencionadas nas nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, localizadas no morro Babilônia, no bairro do Leme, e da favela Vidigal, localizada entre os elitizados bairros Leblon e São Conrado.
Pesquisas apontam para especulação imobiliária feita pelos agentes do mercado imobiliário local que gerou a elevação do valor de venda e aluguel de imoveis nessas favelas. Aliado a isso a formalização de serviços, antes acessados de forma informal, aumentou drasticamente o custo de vida nesses territórios, levando a saída de moradores para outras áreas da cidade ou mesmo para outras áreas da favela com piores condições de infraestrutura e habitabilidade.
Além disso, pesquisas apontam mudanças no padrão do comércio e serviços, no perfil da população que circula e consome estes serviços. Observou-se, também, que os espaços onde antes ocorriam os bailes funk passam a ser ocupados por outros sons, como soul music, samba e jazz e esses espaços passam a cobrar valores de ingressos inacessíveis aos moradores.
Viu-se, assim, um processo de ressignificação das imagens desses territórios. A favela como o espaço das “classes perigosas” deu lugar à imagem da “favela chique”, “favela cult”, entre outros adjetivos jamais praticados nesses territórios estigmatizados. Empreendedores que nunca tinham entrado nas favelas, viram nesses espaços a possibilidade de abrir seu negócio na zona sul, aproveitando as potencialidades dessa região da cidade (como a natureza, o fluxo de turismo, a concentração de equipamentos culturais), com baixo custo na aquisição ou no aluguel do imóvel. Viu-se a multiplicação de hostels, agências de turismo, bares, casas de show, entre outros, voltados notadamente a um público de classe média e não morador da favela. Seguindo a onda de valorização, alguns comerciantes aumentaram os preços de seus produtos e aqueles moradores com maiores recursos se tornaram também empreendedores
No entanto, pelo menos até o momento, parece pouco provável apostar no desaparecimento das classes populares destes espaços. De fato, estas favelas nunca deixaram de se constituir em territórios populares e majoritariamente ocupadas por população afrodescendente. Nesse sentido, os processos de gentrificação das favelas parecem mais complexos e enfrentam barreiras expressas pelas contradições na atuação do poder público nos territórios favelados, as dinâmica socioespacial das cidades brasileiras, as regulações territoriais e as resistências e contestações da população.
Uma das barreiras para a transformação do perfil popular das favelas pode ser entendido pela sua representação simbólica, associada ao lugar da carência, da pobreza e da marginalidade, conformando o que poderia ser caracterizado como estigma territorial (Wacquant, 2001). Além disso, os programas de urbanização embora tenham contribuído para melhorias em parte da infraestrutura, muitos projetos de saneamento, habitação, drenagem e etc que são necessários e urgentes foram paralisados ou se quer iniciadas. Outro fato relevante é que a partir de 2016, observa-se que o programa das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) começa a sofrer uma grave crise, com a diminuição do efetivo policial, corte de verbas e aumento da violência em várias favelas do Rio, incluindo as que estão situadas na Zona Sul. Esses fatores parecem bloquear os incipientes processos de gentrificação.
As resistências locais organizadas ou não organizadas de moradores podem ser vistas, de alguma forma, como barreiras aos experimentos de gentrificação. Proliferaram nas favelas ações políticas para questionar o aumento do custo de vida nas favelas, tais como eventos culturais, debates entre moradores e agentes públicos e privados, guiamento turístico de resistência e etc.
Assim, os processos de gentrificação das favelas são complexos combinando a expulsão das classes populares e o embranquecimento da população que frequenta e consome os serviços ofertados pelos estabelecimentos comerciais, com processos de permanência, afirmação da cultura afro-brasileira, resistência e insurgências, reconfigurando o conflito em torno da apropriação do espaço. Nesse sentido, para interpretar as experiências de elitização nas favelas e nos territórios populares na cidade do Rio de Janeiro apontamos a ideia de gentrificação periférica[12] , pois tendo em vista as contradições trazidas acima, o conceito tradicional de gentrificação não consegue explicar as características específicas das favelas e seus conflitos, em especial aqueles conflitos em torno da apropriação do território e de suas marcas simbólicas que envolvem o embranquecimento e da afirmação da cultura afrodescendente. Nesse contexto, parece pouco provável que as favelas sofram um amplo e profundo processo de gentrificação. No entanto, a opção pela ideia da gentrificação periférica quer sublinhar processos de relativa elitização de algumas práticas comerciais e especulação imobiliária em determinadas áreas das favelas, em decorrência de projetos de renovação urbana promovidos pelo poder público e pelos agentes privados.
- ↑ GLASS, Ruth, London: aspects of change.London: MacGibbon & Kee, 1964.
- ↑ GLASS, Ruth, London: aspects of change.London: MacGibbon & Kee, 1964.
- ↑ HACKWORTH, Jason; NEIL, Smith. The changing state of gentrification. Tijdschrift voor Economische en Sociale Geografie, 92(4), 2001.
- ↑ SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à “regeneração” urbana como estratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C. (org.). De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p. 59-87.
- ↑ SMITH, Neil. Gentrificação, a Fronteira e a Reestruturação do Espaço Urbano. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007, p. 15-31.
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- ↑ PEREIRA, Alvaro Luis dos Santos. A Gentrificação e a Hipótese do Diferencial de Renda: limites explicativos e diálogos possíveis. Cadernos Metrópoles, São Paulo, v. 16, n. 32, pp. 307-328, nov 2014. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3201
- ↑ CHERNOFF, Social displacement in a renovating neighborhood’s commercial district: Atlanta. In LASKA, Shirley Bradway e SPAIN, Daphne. Back to the City: Issues in Neighborhood Renovation. New York, Pergamon Press, 1980, pp. 204 -219.
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- ↑ SIQUEIRA. Marina Toneli. Entre o fundamental e o contingente: dimensões da gentrificação contemporânea nas operações urbanas em São Paulo. Cadernos Metrópoles, São Paulo, v. 16, n. 32, pp. 391-415, nov. 2014. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3201. NOVAES, Patricia Ramos. A Gentrificação Periférica na Cidade do Rio de Janeiro: um estudo sobre as favelas Babilônia, Chapéu Mangueira, Vidigal e Santa Marta. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2018.
- ↑ NOVAES, Patricia Ramos. A Gentrificação Periférica na Cidade do Rio de Janeiro: um estudo sobre as favelas Babilônia, Chapéu Mangueira, Vidigal e Santa Marta. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2018.