Termo Territorial Coletivo (TTC)
Termo Territorial Coletivo é a denominação dada para o que seria um modelo brasileiro de Community Land Trust. Trata-se de um instrumento com grande potencial de melhorias das condições e garantia de direitos de moradores de favelas por meio do incremento da segurança da posse, empoderamento da comunidade e incentivo da gestão coletiva do território. A tradução do termo para a língua portuguesa é controversa e envolve mais do que a busca por palavras cujo significado seja mais próximo dos termos trazidos pela língua inglesa. Dada sua origem nos Estados Unidos da América, que adota o sistema jurídico da common law, baseado mais em precedentes judiciais em detrimento de textos legais, a figura do ”Land Trust” não é reprodutível ao passível de tradução ao português.
Autoria: Tarcyla Fidalgo Ribeiro.
História
As primeiras experiências foram realizadas nos Estados Unidos da América na década de 60, ligadas aos movimentos por direitos civis e localizadas, na sua totalidade, em áreas rurais. No início, o projeto enfrentou a resistência dos moradores e poucos foram efetivamente implantados neste primeiro momento. O primeiro CLT urbano apenas foi organizado em 1980.
Com o passar do tempo, o modelo dos CLTs foi se aperfeiçoando e a demonstração de resultados começou a vencer eventuais desconfianças iniciais, dando-lhe mais força: em 1995 haviam cerca de 100 CLTs nos Estados Unidos da América, enquanto que em 2005 haviam mais de 200, com uma estimativa de 12 novos sendo constituídos a cada ano. Atualmente, os CLTs estão em operação em 45 estados e em outros países como Canadá, Inglaterra, Escócia, Austrália e Quênia (DAVIS, 2010). Muito desta expansão se deve ao fato dos CLTs terem deixado as fronteiras rurais e passado a ter aplicação expressiva nas cidades nas quais, de fato, as situações de vulnerabilidade são múltiplas e graves.
Seu funcionamento básico se dá a partir da separação da propriedade do terreno em relação à propriedade das casas ou construções. Enquanto o terreno fica sob o regime da propriedade coletiva, por meio de uma pessoa jurídica (associação, cooperativa, fundação, etc.) criada para o fim de gerir o território coletivo, sob controle dos moradores e seus apoiadores (técnicos, organizações não governamentais, entidades religiosas, etc.), as construções ficam sob o regime da propriedade individual dos seus moradores. A operacionalização jurídica desta proposta se dá pelo direito de superfície, instrumento já previsto na legislação que permite que o dono do terreno conceda a outro o direito sobre tudo o que for construído ou implantado na superfície de seu terreno.
Por meio da aplicação deste instrumento jurídico, que se adequa aos propósitos do Termo Territorial Coletivo, é possível aumentar a garantia coletiva de permanência na terra a partir da coletivização de sua propriedade, enquanto se preserva os direitos individuais dos moradores sobre suas casas, seus investimentos e seu patrimônio estabelecido sobre a terra.
TCC e as favelas
A importância de trazer este instrumento internacional, aprofundar seu estudo e buscar sua implantação no Brasil está na insuficiência demonstrada pelos instrumentos jurídicos brasileiros, apesar do seu caráter reconhecidamente progressista, de produzir efeitos no sentido da proteção territorial dos moradores de favelas.
Como se sabe, a garantia da segurança da posse de moradores de favela, em especial aquelas situadas em áreas valorizadas da cidade, permanece como um desafio, cujo exemplo claro a ser citado são as remoções realizadas no período dos megaeventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas), em todo o país e em especial no Rio de Janeiro.
A segurança da posse é elemento indispensável da garantia de moradia digna e do próprio direito à cidade, sendo indispensável buscar meios de garantir a permanência de moradores de baixa renda em áreas centrais e valorizadas da cidade, que possuem esse status exatamente pela facilidade de acesso a serviços, equipamentos urbanos e amenidades.
Neste contexto, o Termo Territorial Coletivo deriva da busca de um solução que, partindo do acúmulo de experiências bem sucedidas no âmbito internacional, propõe uma utilização conjunta dos instrumentos jurídico-urbanísticos já existentes em nosso ordenamento para o alcance de um arranjo que aumente o potencial de garantia da segurança da posse e promova uma gestão coletiva emancipatória dos territórios.
Características comuns
Embora seja um instrumento flexível- e por isso apto a ser aplicado em países tão diferentes - o Termo Territorial Coletivo possui algumas características básicas, que devem estar presente em qualquer aplicação, quais sejam: (i) autonomia de ingresso dos moradores, ou seja, ninguém pode ser obrigado a ingressar em um TTC, que não precisa ser uma grande área contínua; (ii) divisão entre propriedade do terreno e das construções; (iii) gestão coletiva do território na medida em que se garante a participação majoritária dos moradores e seus apoiadores no conselho da pessoa jurídica criada para gerir o TTC; (iv) sustentabilidade visando à manutenção dos moradores em seus territórios de origem, que consiste na busca por meios de financiamento das atividades do TTC que garantam o seu caráter permanente e o desenvolvimento de suas potencialidades de melhorias territoriais e apoio a iniciativas de moradores.
A propriedade coletiva da terra é o fundamento básico da segurança da posse proporcionada pelos Termos Territoriais Coletivos. Os arranjos institucionais que garantem esta coletividade via de regra passam pela constituição de uma pessoa jurídica que será a proprietária formal dos terrenos, com participação dos moradores na sua gestão. A propriedade e gestão coletivas dão ao modelo a possibilidade de fazer restrições a possíveis novos moradores da área com o objetivo de manter suas características originárias, por exemplo, apenas permitindo que haja transmissão de imóveis para pessoas de baixa renda.
A proposta do Termo Territorial Coletivo é a busca de um formato de apropriação privada da terra que garanta a segurança da posse dos moradores diante das inúmeras ameaças que se colocam no âmbito da (re)produção constante da cidade no capitalismo, especialmente aquelas relacionadas às sucessivas mudanças nos gradientes de valorização que implicam a expulsão mercadológica dos moradores de localidades que vão se valorizando rumo às sempre renovadas franjas da cidade.
Por sua vez, uma outra característica comum aos Termos Territoriais Coletivos é a propriedade privada das construções/moradias. Não há uma proposta de comunhão entre os moradores, mas sim a tentativa de promoção de um arranjo que consiga de forma eficaz garantir seus direitos, inclusive o de se inserir no mercado e vender seu imóvel, mesmo que dissociado do terreno.
Diversos instrumentos jurídicos podem ser empregados para garantir esta dissociação, mas é importante afastar desde já a ideia de que os CLTs imobilizam os moradores quanto à venda de seus imóveis. Na verdade, o que pode estar presente é uma limitação de público de compradores destes imóveis, esta com o objetivo de manter os fins de proteção de uma determinada comunidade ou determinado público - como o de baixa renda – na área do CLT.
Neste sentido, os moradores podem ter seu poder de venda limitado a um determinado público, sempre previamente acordado a partir da gestão participativa da institucionalidade que institui e regula o CLT em determinado território, sobre a qual trataremos adiante. Essa limitação ao processo de revenda é fundamental para a continuidade do projeto de oferta de residências acessíveis a populações vulneráveis (THADEN e LOWE, 2014).
Além disso, é indispensável para o estabelecimento de Termos Territoriais Coletivos a garantia de sua sustentabilidade, ou seja, é preciso que o arranjo institucional que sustenta o TTC consiga se manter sem auxílio externos. Esta medida é importante para garantir a segurança do TTC independentemente de qualquer mudança conjuntural, de ordem econômica ou política, que atinja a institucionalidade do projeto.
Essa meta de sustentabilidade pode ser atingida de diferentes maneiras, como por exemplo a instituição de taxa sobre transações imobiliárias ou de contribuições periódicas dos moradores – ainda que em valor simbólico. A sustentabilidade dos Termos Territoriais Coletivos pode ainda ter por resultado o advento de condições de atuação direta no território, seja com apoio – técnico ou material – à construções, seja na melhoria das condições das áreas de uso comum ou por meio de outras intervenções que se façam necessárias conforme as necessidades locais.
Ainda no âmbito institucional, é indispensável para a instituição de um Termo Territorial Coletivo que seja garantida uma gestão participativa por agentes interessados no território. Em uma formulação clássica, esta gestão é feita em um formato tripartite, com a formação de uma espécie de órgão deliberativo colegiado composto por 1/3 de moradores; 1/3 de técnicos indicados pelos moradores e 1/3 de moradores de bairros vizinhos (DAVIS e JACOBUS, 2008).
Ainda que este formato clássico não seja reprodutível em todos os locais nos quais se pretenda implantar um TTC, é fundamental que a gestão institucional seja feita de forma participativa e que esta participação seja garantida materialmente, em todo o processo de tomada de decisões sobre o território, e não apenas formalmente, com deliberações apenas sobre propostas já construídas.
Por fim, uma última característica comum seria o ingresso voluntário dos seus integrantes. Como grande parte do potencial dos Termos Territoriais Coletivos está contida na sua dimensão deliberativa participativa e no alcance de um objetivo comum de segurança da posse para determinada comunidade, é indispensável que haja voluntariedade de ingresso entre seus membros. Esta voluntariedade firma uma base de interesses comuns entre os integrantes que pode representar o elo de comunhão do qual dependerá o sucesso da iniciativa.
Trata-se de instrumento inovador que, pelo seu histórico e dado o contexto brasileiro de constantes ameaças aos moradores de favelas, deve ser pensado como possível alternativa para os desafios da permanência territorial, especialmente em áreas valorizadas de interesse do mercado imobiliário.
O instrumento do TTC apresenta um potencial emancipatório em termos de aplicação do instituto do direito de propriedade. Isto porque, sem romper com seu caráter privado, ocaráter individualista da propriedadeé mitigado, uma vez que o TTC éinovador em termos de gestão coletiva e de sustentabilidade para a manutenção da segurança da posse de populações vulnerabilizadas.
Acredita-se que o investimento técnico e acadêmico sobre um modelo de TTC, aplicável no Brasil a partir dos instrumentos já existentes em seu ordenamento jurídico, é fundamental no sentido de buscar a superação prática da visão individualista do direito de propriedade com privilégio não apenas de sua função social, mas de arranjos emancipatórios populares que possam mesmo superar o objetivo inicial de garantia de segurança jurídica dessas populações, constituindo-se em verdadeira via de empoderamento e coletivização da gestão territorial a partir de uma nova forma de encarar e lidar com a propriedade privada.
Saiba mais
Referências bibliográficas
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