Atenção primária, empoderamento e direito à saúde

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 13h15min de 14 de abril de 2020 por Clara (discussão | contribs)

Autora: Sonia Fleury

A maior parte dos serviços de saúde localizados em favelas são unidades de Atenção Primária de Saúde - APS. Muitas delas envolvem o trabalho de Agentes Comunitários de Saúde e de Equipes de Saúde da Família. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde do Ministério da Saúde foi criado oficialmente em 1991, com o objetivo de melhorar o acolhimento dos usuários do sistema de saúde, por meio de pessoas da própria comunidade que fossem treinadas para exercer funções no sistema e encaminhar os pacientes para outros profissionais especializados. Espera-se, desta forma diminuir a distância entre os agentes públicos e os usuários, já que o agente comunitário seria o elo de ligação entre ambos. Também se supõe que a capacitação de pessoas da comunidade represente um processo de empoderamento dos moradores. O conceito de empoderamento, que vem do termo inglês empowerment passou a ser usado como um objetivo em todos os projetos comunitários, em especial os financiados pelas agências internacionais de cooperação e/ou executados pelas Organizações Não Governamentais – ONG.

A Estratégia de Saúde da família é definida pelo Ministério da Saúde como um meio para expansão, qualificação e consolidação da atenção básica, de forma a permitir a reorganização do sistema de saúde. Dessa maneira, espera-se que o sistema que está basicamente centrado no processo curativo com base nas unidades hospitalares seja revertido para um modelo de atenção que privilegia a prevenção e é executado em unidades básicas de saúde, a menor custo e maior proximidade com a comunidade. O Manual de Atenção Básica do Ministério da Saúde considera que “Um ponto importante é o estabelecimento de uma equipe multiprofissional (equipe de Saúde da Família – eSF) composta por, no mínimo: (I) médico generalista, ou especialista em Saúde da Família, ou médico de Família e Comunidade; (II) enfermeiro generalista ou especialista em Saúde da Família; (III) auxiliar ou técnico de enfermagem; e (IV) agentes comunitários de saúde. Podem ser acrescentados a essa composição os profissionais de Saúde Bucal: cirurgião-dentista generalista ou especialista em Saúde da Família, auxiliar e/ou técnico em Saúde Bucal”.

No entanto, esse modelo de atenção à saúde voltado para a prevenção e com o envolvimento de equipes multidisciplinares e agentes comunitários tem raízes bem mais antigas, dentro e fora do Brasil.

Uma referência fundamental foi a Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978 nessa cidade da antiga URSS, cuja declaração, assinada pelos governos participantes, assumiu o compromisso de assegurar “Saúde para Todos até o Ano 2000”.

Os principais pontos da Declaração de Alma-Ata foram a Definição de saúde como resultante de um processo de determinação social; o estatuto da saúde como direito; o reconhecimento das desigualdades; a relação entre saúde e desenvolvimento; o direito à participação; a responsabilização dos governos pela saúde de seus cidadãos, e a centralidade dos cuidados primários de saúde.

  1.  A Conferência enfatiza que a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde.
  2. A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como dentro dos países, é política, social e economicamente inaceitável e constitui, por isso, objeto da preocupação comum de todos os países.
  3. O desenvolvimento econômico e social baseado numa ordem econômica internacional é de importância fundamental para a mais plena realização da meta de Saúde para Todos no Ano 2000 e para a redução da lacuna existente entre o estado de saúde dos países em desenvolvimento e o dos desenvolvidos. A promoção e proteção da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento econômico e social e contribui para a melhor qualidade de vida e para a paz mundial.
  4. É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde.
  5. Os governos têm pela saúde de seus povos uma responsabilidade que só pode ser realizada mediante adequadas medidas sanitárias e sociais. Uma das principais metas sociais dos governos, das organizações internacionais e de toda a comunidade mundial na próxima década deve ser a de que todos os povos do mundo, até o ano 2000, atinjam um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva. Os cuidados primários de saúde constituem a chave para que essa meta seja atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça social.
  6. Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde.

A Conferência de Alma-Ata influenciou governos em todo o mundo na busca de organização de sistemas universais de saúde, organizados a partir da atenção primária de saúde. Também influenciou as lutas dos movimentos sociais, como o Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, na luta pela inscrição do Direito à Saúde como um direito constitucional.

Desde o meado dos anos 1970, com a vitória da oposição, organizada na frente que ficou conhecida como MDB, ao partido do governo militar, a ARENA, em importantes cidades de porte médio onde eram permitidas eleições, inicia-se a introdução desse modelo de atenção baseado na APS, em diferentes partes do Brasil. Inspirado no sucesso do modelo cubano de atenção à saúde e legitimado pela declaração de Alma-Ata, buscou-se uma saída para uma atenção mais próxima da população, com abordagem preventiva e uso de agentes comunitários de saúde. Foram implantados projetos pioneiros em Montes Claros, no PIASS em vários estados do Nordeste, em Niterói, em Campinas. Dessas experiências surgem as bases materiais do projeto de construção do SUS.

Em 2018, celebrando os 30 anos da Declaração de Alma-Ata, a Organização Mundial de Saúde convocou uma nova conferência, que se realizou em Astana, no Cazaquistão. Em um contexto de avanço das ideias neoliberais que defendem a redução do Estado e as parcerias entre Estado e Mercado, a conferência de Astana foi marcada pela sua falta de importância na definição global das políticas de saúde. A começar pela afirmação do diretor geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Guebreyesus,em cuja carta comemorativa do seu primeiro ano à frente da instituição afirma que não existe mercadoria no mundo mais preciosa que a saúde (“There is no commodity in the world more precious than health”).

Ao assumir a linguagem de mercado, tratando a saúde como uma mercadoria, aponta claramente a posição de negação do papel do governo na garantia do direito à saúde, substituindo o papel do governo por uma ambígua governança, na qual todos os atores, públicos e privados, são tratados igualmente em relação a sua responsabilidade no provimento dos serviços de atenção à saúde.

Por outro lado, a ênfase no conceito de empoderamento da comunidade é reduzida à sua atuação no espaço das unidades de atenção básica, ofuscando a discussão de poder que deve ser o centro da noção de empoderamento.

Em seguida, confrontamos essas duas posições que envolvem as relações de poder entre governo, mercado e comunidade.

 

Papel do Governo em Saúde

 

O papel do governo é garantir a saúde como direito da pessoa humana e da cidadania. A saúde é um bem de relevância pública, como está afirmado na Constituição Federal do Brasil de 1988. A saúde é também um valor socialmente construído, o que representa a evolução das sociedades para um patamar civilizatório baseado na dignidade da pessoa humana e nos princípios da justiça social e do reconhecimento dos direitos sociais.

Ela não é uma mercadoria porque não tem um valor no mercado, apenas um uso para os indivíduos e as sociedades.

Sendo um bem de relevância pública o Estado tem que assegurar as condições que os indivíduos e a sociedade possam desfrutar de boa saúde, evitando que os determinantes sociais sejam responsáveis pelas condições precárias de saúde de grupos marginalizados. Essa responsabilidade pública diante dos cidadãos não pode ser terceirizada.

Por ser um bem público o Estado não pode usar critérios de outra natureza que não a defesa da dignidade e da saúde, individual e coletiva, na organização dos serviços e na definição dos critérios de acesso aos serviços. Assim, em situações de escassez de recursos e elevadas taxas de migração, o governo nacional não pode utilizar a defesa da cidadania em oposição à dignidade da pessoa humana, restringindo o acesso dos que estão em território nacional, documentados ou não, aos serviços de saúde.

A universalização do acesso aos serviços de saúde deve ter como porta de entrada a APS, pela sua garantida efetividade na solução de problemas sanitários individuais e coletivos, sendo que esta precisa ser assegurada por meio de políticas públicas que forneçam condições materiais para que equipes multidisciplinares, bem organizadas e com formação adequada, realizem o trabalho de promoção, prevenção e atenção curativa. Sem estas condições o trabalho da APS se torna paliativo e com baixa capacidade de resolver as demandas sanitárias.

A atuação destas equipes, dentro e fora do Centro de Saúde, muitas vezes em locais com riscos elevados, envolve uma situação de grande complexidade que requer formação específica, integração da equipe de trabalho e utilização de tecnologias adequadas, que devem ser exigidas e garantidas pelo poder público.

O planejamento governamental é fundamental para a efetividade da ação da APS, bem como de sua real integração como central no Sistema Nacional de Saúde, revertendo assim o modelo de atenção que tinha como foco o hospital, de baixa eficiência, alto custo, absorvedor de tecnologia e insumos sofisticados, muitas vezes provocando iatrogênesis - enfermidades que são consequência das ações em saúde - e disseminando bactérias cada vez mais resistentes.

Reservar ao setor público apenas a atuação nas unidades de APS impediria a construção de um Sistema Nacional de Saúde, cujas unidades trabalhem de forma planejada, articulada e colaborativa, em uma rede de referência ( do nível primário para o secundário e terciário) e contra-referência ( o caminho inverso) dirigida pelas políticas públicas em prol do interesse público. A tensão entre lógicas distintas, uma dirigida pelo interesse público e outra pela oferta de mercadorias e busca da lucratividade certamente compromete a concepção de Sistema Nacional de Saúde. Essa tensão já se expressa de forma dramática na falta de investimentos para tratamento de doenças negligenciáveis, muitas delas representando um desafio para a ação da APS. Os governos precisam usar o seu papel reitor na normatização do sistema, na produção e compra de insumos indispensáveis que, ou não se encontram no mercado ou cujo preço impede que sejam incorporados nos tratamentos da população que deles necessita.

A defesa da soma de recursos públicos e privados na composição do Sistema Nacional de Saúde não pode ignorar as contradições existentes e nem deve especializar as funções de forma que o governo se encarregue da APS e o setor privado se dedique á oferta de serviços que permitem maior margem de lucratividade.

Sendo um bem público o governo tem que exercer sua autoridade, para a qual foi legitimamente eleito pelos cidadãos, para prover as condições de desenvolvimento social e econômico por meio das políticas públicas. A recente substituição da noção de autoridade governamental pela governança, incluindo uma pluralidade de atores envolvidos na prestação dos serviços de saúde, não retira a responsabilidade nem a autoridade do governo. Caso contrário, o resultado será a desilusão dos cidadãos eleitores com a própria democracia e com os políticos, abrindo margem para o aparecimento de soluções antidemocráticas e autoritárias.

 

Empoderamento em Saúde

 

O conceito de empoderamento é pouco preciso e merece ser detalhado ao invés de ser circunscrito ao âmbito da atenção primária, em especial quando ela é vista como um espaço físico e não uma abordagem no tratamento da saúde. A temática do empoderamento em saúde transcende esses limites e pode ser compreendida em suas várias dimensões.

  1. como aumento dos graus de liberdade de indivíduos e grupos para tomar decisões em relação à sua saúde. Diz respeito a um processo tanto subjetivo quanto objetivo em que se constituem sujeitos políticos, capazes de afirmar a sua vontade e tomar decisões em relação ao conjunto de alternativas que lhes é oferecida. Nesse sentido, a questão da comunicação e da troca de informações é crucial para aumentar as condições de conhecimento e possibilitar a tomada de decisões que correspondem às necessidades e desejos dos indivíduos. Porém, não se trata de um processo pedagógico no qual os pacientes e/ou usuários são ensinados sobre questões de saúde, mas de um processo dialógico, no qual a interação entre profissionais e usuários permite a troca de informações, o respeito ao conhecimento de ambos, a capacidade de aceitação do outro como sujeito, isto é, aquele que pode agir em função de suas necessidades e desejos. Essa proposição implica que a equipe de saúde seja capaz de reconhecer os indivíduos como iguais, ainda que em posições funcionais distintas, portanto, capazes de responder às demandas por informação, estimular e compartilhar novos conhecimentos, compreender e respeitar a forma como os indivíduos constroem seu modo de vida. Só assim será possível que o cuidado de saúde seja fonte de transformação social. No entanto, essa capacidade só se realiza se existem condições materiais para propiciar a adequada atenção à saúde. Não se pode falar de empoderamento quando não existe liberdade, pois não há alternativas. Assim, o empoderamento requer condições materiais objetivas de prestação do cuidado em todos os níveis de complexidade e de tratamento necessários ao atendimento das necessidades. Nesse sentido, só haverá verdadeiramente empoderamento se a atenção primária em saúde não estiver restrita a um espaço, ou centro de APS, mas seja uma diretriz que articula o conjunto de unidades que compõem o sistema de saúde.

Empoderamento significa a garantia do direito à saúde, a segurança que esse direito está garantido pelo poder público e que possa ser exigível. Poder e segurança se imbricam, pois não há poder se não está garantido que o cuidado necessário será garantido. Consequentemente, a APS não pode ser reduzida aos cuidados de menor complexidade e/ou mais baixo custo. Ela é uma estratégia para atenção que permite a promoção e prevenção, mas também deverá ser a garantidora do acolhimento das demandas de tratamento e reabilitação que serão derivadas para outras unidades adequadas.

Empoderamento significa a capacidade de compartilhar poder na gestão do sistema de saúde, em todos os seus níveis – nacional, regional, local, unidades de saúde – com os beneficiários do sistema de saúde. Dessa forma, o sistema de saúde passa a ter um papel estratégico na democratização das políticas públicas, na socialização das informações sobre o funcionamento do governo e na prestação de contras e transparência do processo decisório. A experiência brasileira avançou muito na construção de uma arquitetura democrática com base na participação social, através do estabelecimento dos Conselhos Setoriais em todos os níveis de governo – Nacional, Regional e Local – por meio das Conferências Temáticas e das Audiências Públicas, dentre outros instrumentos. No entanto, estudos recentes identificam que a participação nessas instancias requer um nível prévio de organização, o que favorece a presença de grupos corporativos mais bem estruturados. Nesse sentido é importante que as unidades de atenção à saúde, nos seus diferentes níveis, construam formas institucionalizadas de participação dos usuários, para além das ouvidorias, que garantam a efetividade das deliberações ali estabelecidas. Dessa forma, indivíduos e grupos da comunidade, que não tenham maior nível de organização mas que representem as demandas dos usuários, poderão intervir na condução da atenção à saúde. A possibilidade de compatibilizar a participação social no sistema de saúde com a contratação de serviços privados pelo sistema público tem sido um dos grandes problemas enfrentados no Brasil, já que a gestão privada não se submete ao compartilhamento do poder com os usuários e à transparência dos dados relativos à gestão empresarial.

Empoderamento significa que o interesse público na saúde seja garantido por meio da estrita regulação pelo governo de todas as mercadorias, produtos, processos e serviços que possam provocar danos à saúde dos consumidores ou negação da prestação do serviço de saúde. A diretriz sanitária de promoção da saúde pela difusão de estilos de vida saudáveis não pode ignorar a oferta descontrolada de produtos que provocam danos à saúde, processos de trabalho que comprometem a saúde do trabalhador, condições de moradia e transporte que provocam danos irreparáveis à saúde dos moradores das comunidades. Também não se pode falar de empoderamento quando os consumidores de serviços de saúde privados ou por meio de seguros de saúde não têm seus direitos assegurados pelo poder público, ou que estes não sejam fiscalizados devidamente.

 

PNAB sob ameças

 

Nos ultimos dois anos os governos buscam reformular a Política Nacional de Atenção Básica, em um contexto de restrição de recursos financeiros, desvalorização da participação social e tentativas de desmantelamento do sistema público de saúde. Contra essas ameaças as entidades do setor saúde - CEBES - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva e ENSP- Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca se pronunciaram em nota transcrita abaixo.

"As atuais ameaças aos princípios e diretrizes do SUS de universalidade, integralidade, equidade e participação social parecem não ter fim.

Não bastasse o estado de sítio fiscal imposto por um governo ilegítimo e golpista com a promulgação da EC 95 que fere de morte o SUS ao agravar o subfinanciamento crônico, reduzindo progressivamente seus recursos por 20 anos, agora nos defrontamos com uma proposta de reformulação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).

Causa imensa preocupação a proposição de uma reformulação da PNAB num momento de ataque aos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal de 1988. A revisão das diretrizes para a organização da Atenção Básica proposta pelo Ministério da Saúde revoga a prioridade do modelo assistencial da Estratégia Saúde da Família no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Embora a minuta da PNAB afirme a Saúde da Família estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica, o texto na prática rompe com sua centralidade na organização do SUS, instituindo financiamento específico para quaisquer outros modelos na atenção básica (para além daquelas populações específicas já definidas na atual PNAB como ribeirinhas, população de rua) que não contemplam a composição de equipes multiprofissionais com a presença de agentes comunitários de saúde. Esta decisão abre a possibilidade de organizar a AB com base em princípios opostos aos da Atenção Primária em Saúde estabelecidos em Alma-Ata e adotados no SUS.

O sucesso da expansão da atenção básica no país nos últimos anos e seus efeitos positivos no acesso a serviços de saúde e na saúde da população decorre da continuidade da indução financeira da Estratégia Saúde da Familia sustentada ao longo do tempo e reforçada nos últimos três anos com o Programa Mais Médicos. Resultados de pesquisas evidenciaram, sistematicamente, a superioridade do modelo assistencial da Saúde da Família quando comparado ao modelo tradicional. Sua maior capacidade de efetivação dos atributos da atenção primária integral produz impacto positivo sobre a saúde da população, com redução da mortalidade infantil, cardiológicas e cerebrovascular e das internações por condições sensíveis à atenção primária. Ao financiar com PAB variável a atenção básica tradicional, a proposta de reformulação da PNAB ameaça estes sucessos. Além de abolir na prática a prioridade da ESF, em um contexto de retração do financiamento e sem perspectivas de recursos adicionais, é muito plausível estimar que o financiamento destas novas configurações de atenção básica será desviado da Estratégia Saúde da Família.

A esta reformulação somam-se outras questões críticas do financiamento da atenção básica decorrentes do fim dos blocos de financiamento do SUS. Esta decisão penaliza a capacidade de indução do SUS em favor da Saúde da Família e da Atenção Básica, não garantindo sua prioridade nos governos municipais. Nossa crítica não contradiz a necessária adequação da rede básica de saúde às especificidades loco regionais, que devem ser financiadas mediante um aumento considerável do PAB fixo, cujo valor médio nacional de R$24,00 per capita ao ano é quase irrisório, estando muito defasado frente aos custos de manutenção e desenvolvimento dos serviços necessários para responder às necessidades de saúde da população. Urge majorar o PAB fixo para ampliar capacidades e autonomia das secretarias municipais de saúde, mantendo a prioridade à Saúde da Família.

A reformulação proposta também ameaça a presença do Agente Comunitário de Saúde como integrante e profissional da atenção básica. Com a expansão da Saúde da Família com cobertura de territórios em áreas urbanas de diferentes estratos socioeconômicos faz-se necessário fortalecer o papel do ACS, redefinindo e qualificando sua intervenção na comunidade como agente de saúde coletiva, elo entre o serviço de saúde e a população. O ACS conhece e reconhece as necessidades populacionais do território e devem ser contemplados com estratégias de educação permanente que apoiem seu trabalho de promotor da saúde, atuando na mobilização social para enfrentamento dos determinantes sociais e em ações estratégicas frente aos problemas de saúde da população.
Preocupante também é a implantação de modo simplificado, ou reducionista, de uma “relação nacional de ações e serviços essenciais e estratégicos da AB”. A ferramenta pode contribuir para a garantia de padrões essenciais mínimos mais qualificados e uniformes em todas as unidades básicas de saúde do país e mesmo de padrões estratégicos mais avançados de acesso e qualidade. Entretanto, cabe alertar que este dispositivo também denominado “carteira de serviços” ou “cesta de serviços” tem sido utilizado para definir oferta seletiva de procedimentos acoplada à implementação de seguros focalizados, em resposta simplificada às demandas de cobertura universal das agências internacionais. No Brasil, este instrumento poderá comprometer a integralidade da AB e do SUS se não houver um compromisso explícito de gestores e profissionais de saúde com oferta ampla e de qualidade das ações, conforme as necessidades de saúde da população.

Contra a reformulação da PNAB. Nenhum direito a menos! Em defesa do SUS público universal de qualidade e pela revogação da EC 95."


27 de julho de 2017

Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – ENSP/Fiocruz

 

Bibliografia

Giovanella, Ligia et al - De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad. Saúde Pública vol.35 no.3 Rio de Janeiro 2019 Epub 25-Mar-2019

ESCOREL, Sarah – Reviravolta na Saúde: ORIGENS E ARTICULAÇÃO DO Movimento Sanitário, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999. 208 p. ISBN 978-85-7541-361-6. Bookshttp://books.scielo.org>

FLEURY, Sonia (org) – Projeto Montes Claros – A Utopia Revisitada, Rio de Janeiro, ABRASCO, 1995

Ministério da Saúde – Política Nacional de Atenção Básica –[1]

Declaração de Alma-Ata http://cmdss2011.org/site/wp-content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%C3%A3o-Alma-Ata.pdf