Políticas urbanas (conceito)
Autoria: CEM-CEPID/FAPESP
Por: Eduardo Marques, Magaly Pulhez, Betina Sarue, Guilherme Minarelli, Marcos Campos e Samuel Ralize
Artigo cedido pelos autores e originalmente publicado no Glossário - Políticas Urbanas da seção do Nexo Políticas Públicas.
Urbanização de favelas é um instrumento da política habitacional brasileira. Entenda esse e outros conceitos centrais do debate sobre cidades.
Função social da propriedade
Segundo a Constituição Federal de 1988, a propriedade é assegurada a todo cidadão. Contudo, sua posse não é absoluta e seu uso pelo proprietário não pode ser indiscriminado, devendo seguir algumas regras. No caso das propriedades urbanas (artigo 5º, inciso 22 da CF), isso significa respeitar exigências e previsões de usos determinadas pelo plano diretor de cada cidade. Isso conecta a ideia de uso da propriedade imobiliária a um uso que não deve ser de interesse apenas individual, mas também coletivo e que traga benefícios para toda a população que habita e se relaciona com aquela parcela da cidade. Diferentemente de outros produtos que estão no mercado, a terra é um bem finito e que não é reprodutível pelo ser humano – a não ser por meio da verticalização. Assim, a existência de cada parcela de imóvel em uma cidade está integrada de modo específico e irredutível aos interesses das pessoas e outros habitantes da cidade, devendo ser garantido um uso socialmente interessante.
Em caso de a propriedade não ser utilizada, ser subutilizada, não edificada ou não respeitar os usos previstos nos planos municipais, são previstos mecanismos legais que possibilitam dar destinações socialmente relevantes em diferentes casos, como para habitação popular, equipamentos públicos como parques, hospitais, escolas, ou ser recolocada no mercado para ser dado algum outro uso econômico.
Dentre os mecanismos previstos para isso estão a cobrança de imposto sobre a propriedade imobiliária urbana (IPTU) progressivo no tempo (art.152, I, § 1º, I, da CF), que tem como objetivo levar o proprietário a dar uma destinação mais adequada ao imóvel, ou medidas mais fortes como a desapropriação com pagamento de títulos públicos, ou mesmo o uso capião (art.183, 191, da CF, Código Civil, arts. 1.238,1.239, 1.240 e 1242, no Estatuto da cidade, lei n. 10.257/01, art.10), no caso de ocupação para moradia de pobres por mais de cinco anos.
IPTU, isenções e progressividade
O IPTU (Imposto Predial Territorial e Urbano) é um dos impostos de atribuição municipal (CF, art.152) que incidem sobre toda propriedade urbana no país, tendo suas regras definidas por iniciativas de prefeitos (Executivo) e necessária validação pelos vereadores (Legislativo e Câmaras Municipais) por meio de leis.
Primeiramente, sua existência atende a uma dimensão fiscal de financiamento do Estado, que determina suas capacidades de investimento na provisão de bens e serviços para a população e de atuar no balanço entre acumulação e redistribuição que dá ao Estado seu caráter social numa economia de mercado. É uma arena crítica na definição de ganhadores e perdedores, definindo quem tem – ou ganha – o que na sociedade, quem paga o que nas políticas e quanto. Nesse sentido, podemos falar que o IPTU é progressivo na medida em que ele aumenta a contribuição dos proprietários segundo alguns critérios (que foram regulamentados na CF pela emenda constitucional 29/2000), como o valor do imóvel, seu tipo de uso (residencial ou comercial) e sua localização (zonas internas às cidades). Uma forma simples de implementar a progressividade é pela definição de alíquotas diferenciadas segundo esses três critérios. Outra maneira é pela realização da atualização dos valores dos imóveis nos cadastros e PGVs (Plantas Genéricas de Valores), como são conhecidos os mapas municipais que reconstituem as propriedades urbanas e seus valores segundo os valores avaliados no mercado. Esse mecanismo é especialmente importante para a garantia de que não haja iniquidades horizontais (cobrança diferente de imóveis semelhantes) nem verticais (desmedida desigualdade entre imóveis diferentes), dadas as dinâmicas dos valores no mercado. Manter uma planta desatualizada beneficia os extratos superiores da sociedade, os grandes proprietários e donos de terras mais valiosas ou que mais se valorizaram ao longo do tempo, penalizando quem já está em situação pior. Um exemplo de como a manutenção de uma planta desatualizada ou da realização de sua atualização apenas pela inflação pode atuar é: uma região que obteve investimentos públicos ou privados, obteve benefícios e teve seu valor aumentado estará pagando cada dia menos, relativa e absolutamente, que um imóvel cujo valor se manteve igual ou diminuiu. Ou ainda: quando um imóvel de alto valor tem seu valor reduzido pela metade no cadastro, ele deixa de pagar proporcionalmente muito mais que um imóvel de menor valor, que também tem piores condições urbanas e passou pelo mesmo processo de desatualização.
Em segundo lugar, o IPTU, como outros impostos, pode ter usos extrafiscais, voltados para outros objetivos, como a política urbana de planejamento e habitação. Nesse caso, temos a previsão constitucional (art. 152, 182), no Estatuto das Cidades (art. 7º, da lei n. 10.257/01) e, no caso de São Paulo, regulamentado no Plano Diretor (leis n. 16.050/14 e n. 15.234/10) que propriedades que se encontrarem não edificadas, ociosas ou subutilizadas devem passar por parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e, em caso contrário, após notificações, poderão ser tributadas pelo IPTU progressivo no tempo, mediante aplicação de alíquotas majoradas anualmente pelo prazo de cinco anos consecutivos até atingir a alíquota máxima de 15%. A medida passou a ser implementada a partir do decreto n. 56.589/15 e pode ser acompanhada pelos portais GeoSampa e Gestão Urbana da prefeitura de São Paulo.
Outorga onerosa, venda de potencial adicional de construir
Dentro do planejamento urbano existe o entendimento de que é direito do Estado apropriar para a coletividade parte dos dividendos gerados no mercado imobiliário pela valorização fundiária, que resulta de investimentos públicos em infraestrutura e serviços urbanos ou alterações em parâmetros de uso e ocupação do solo (como nos casos de políticas de renovação urbana). É nesse sentido que surgem em várias cidades do mundo instrumentos e cálculos para que o setor privado ofereça contrapartidas para o interesse público sobre o excedente gerado por meio da incorporação imobiliária. Esses instrumentos também são, por outro lado, uma forma de arrecadar recursos para investimentos na cidade. No Brasil, o principal instrumento de contrapartida privada e de arrecadação pública via planejamento é a venda de potencial adicional de construção, chamada outorga onerosa do direito de construir, que é a comercialização do direito de construir acima do previsto inicialmente em lei, o chamado “solo virtual”. Um tipo específico de venda de solo virtual é utilizado nas operações urbanas consorciadas, nas quais os recursos arrecadados devem ser reinvestidos no mesmo território da operação. Nesse caso, os títulos são chamados Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construir) e têm como diferencial o fato de que não estão vinculados a um terreno específico, podendo ser acumulados e utilizados dentro da área demarcada, além de serem vendidos em leilões regulados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
Regularização fundiária
No meio urbano, a regularização fundiária diz respeito a um conjunto de procedimentos jurídicos e administrativos que objetivam normalizar a situação de assentamentos identificados como informais e promover a titulação de seus ocupantes, como forma de acesso à propriedade privada.
Na lei n. 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade, que normatiza a política urbana no Brasil, a regularização fundiária se amplia e se destaca como instrumento de acesso à moradia digna, na medida em que se postula sua aplicação como política pública multidimensional (não apenas restrita à obtenção do título individual de propriedade, mas estendida a aspectos urbanísticos, sociais e ambientais), com a proposição de instrumentos jurídicos específicos para tal, sobretudo aqueles voltados ao atendimento de populações de baixa renda residentes de favelas e loteamentos irregulares e precários, prevendo uma série de medidas associadas a melhorias nas condições de moradia e de acesso à infraestrutura adequada.
Recentemente, a medida provisória 759/16, posteriormente convertida na lei n. 13.465/17, alterou parâmetros legais relacionados à regularização fundiária em áreas rurais e urbanas. Para especialistas, a nova lei recua em relação ao conceito anterior de regularização fundiária plena, reconvertendo-a em simples titulação do imóvel.
Renovação urbana e grandes projetos
As cidades vivem constantes transformações com a reorganização de seus espaços mediante a construção de novas avenidas, centralidades comerciais e residenciais, entre outras que produzem a alteração do uso do solo urbano. O poder público tem um papel fundamental nesse processo de metamorfose urbana por meio de pelo menos três maneiras: planejamento e regulação de usos de uma maneira geral; intervenções no contexto urbano, tais como obras e outras intervenções; ou ainda promoção de políticas públicas de renovação urbana, vinculadas a áreas delimitadas da cidade, que combinem alterações no planejamento e regulação e investimentos em obras e serviços.
Um grande projeto urbano é, portanto, um tipo de política urbana, que concentra investimentos em uma região específica da cidade, demandando investimentos de grande porte, flexibilização da legislação local e arranjos inovadores de articulação institucional intragovernamental e com setores privados. Grandes projetos urbanos têm efeitos diretos na distribuição espacial da cidade, provocando, em muitos casos, resultados como o da gentrificação – em que há uma troca populacional tanto por processos de remoções, como de mercado, uma vez que antigos moradores da região deixam de ter poder aquisitivo para permanecer no local. Alguns exemplos de intervenções que marcam o início dessa nova forma de planejamento urbano são La Défense, em Paris, a área portuária de Baltimore, em Nova York, os Docks de Londres, ou o projeto olímpico de Barcelona. No Brasil, o exemplo seria o Porto Maravilha, no Rio de Janeiro.
Saneamento integral
Segundo a Organização Mundial de Saúde, saneamento diz respeito ao controle de todos os fatores do meio físico do homem, que implicam (ou podem implicar) efeitos nocivos sobre seu estado de bem-estar físico, mental ou social.
Como política pública, no Brasil, o saneamento reúne um conjunto de serviços, infraestruturas e instalações de: (1) abastecimento de água, em quantidade suficiente e seguindo padrões de potabilidade; (2) esgotamento sanitário, que inclui tanto a coleta dos esgotos produzidos quanto a sua disposição de forma adequada com a capacidade do meio ambiente de absorvê-los; (3) limpeza pública, manejo dos resíduos sólidos domésticos e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas e sua disposição final; (4) drenagem urbana de águas pluviais, que diz respeito à condução das águas das chuvas, para o amortecimento de vazões de cheias, além do tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas.
O Brasil conta com uma lei federal que regula o setor de saneamento, aprovada em 2007 (lei nº. 11.445/07), que tem como princípio a universalização do acesso ao saneamento básico em território nacional. Sob a justificativa de alcançar essa meta, em dezembro de 2019, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de um novo marco regulatório do saneamento básico, que altera a referida lei e também as regras para a prestação de tais serviços no país, facilitando a participação de empresas privadas nesse mercado.
Urbanização de favelas
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), favelas são aglomerados subnormais, configurados pela ocupação irregular de terrenos públicos ou privados em áreas urbanas que reúnem um mínimo de 51 ou mais domicílios. São núcleos autoproduzidos pelos moradores, com carências de infraestrutura e serviços, como saneamento, luz, pavimentação e coleta de lixo, precariedades e inadequações habitacionais, por vezes incidindo em situação de risco, como deslizamento ou incêndio.
Urbanizar favelas, portanto, diz respeito a uma série de intervenções físicas que visam a melhorar a condição de moradia da população ali residente, promovendo a implantação da infraestrutura e equipamentos urbanos sobre a estrutura existente dos núcleos, em oposição à perspectiva de erradicá-los.
Urbanizações de favelas são parte da política pública habitacional desenvolvida em cidades brasileiras com certa regularidade a partir dos anos 1980, como o objetivo de garantir o direito à moradia adequada a todos. Desde então, uma série de programas e ações vêm sendo experimentados em diversos municípios, com o aprimoramento de formulações técnicas e políticas que têm avançado em soluções projetuais que prezam pelo mínimo possível de remoções e pela maior permanência dos moradores nos núcleos, associando propostas de produção de novas unidades (quando necessário) e também de regularização fundiária.
Ver também: Centro de Estudos da Metrópole
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