Áreas de Especial Interesse Social (AEIS)
Autores: Adauto Lucio Cardoso, Rosângela Luft e Luciana Ximenes.
1. Definição
As Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) são regiões das cidades nas quais aplicam-se regras de uso e ocupação do solo específicas, voltadas para a democratização do acesso à terra pela população de baixa renda, buscando garantir o direito à moradia digna para todos. As áreas definidas como AEIS são prioritárias para ações de urbanização, de regularização urbanística e fundiária e para a produção de novas moradias populares.
O Estatuto da Cidade e alguns Municípios a chamam de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), outros Municípios denominam como Setores Especiais de Habitação de Interesse Social (SEHIS) e o Rio de Janeiro intitula como Áreas de Especial Interesse Social (AEIS). Independente das variações de nome, o sentido de todas é o mesmo: delimitar área já ocupada ou a ser destinada para população de baixa renda, possuir maior flexibilidade nos padrões de edificação e de uso e ocupação do solo para fins de regularização fundiária e destinar-se a promover predominantemente a moradia social.
Na cidade do Rio de Janeiro, as AEIS são definidas no Plano Diretor como instrumentos de gestão do uso e ocupação do solo, podendo ser de dois tipos: a primeira (AEIS 1) caracterizada como áreas ocupadas por favelas e loteamentos irregulares ou conjuntos habitacionais produzidos pelo poder público em condições de degradação; e a segunda (AEIS 2) caracterizada por terrenos vazios, não utilizados ou subutilizados em áreas dotadas de infraestrutura.
As AEIS apresentadas no Plano Diretor do Rio de Janeiro apoiam-se no Estatuto da Cidade, legislação federal que regulamenta a política urbana prevista na Constituição Federal de 1988, que apresenta as zonas especiais de interesse social como um dos seus instrumentos urbanísticos. Pautadas por movimentos sociais urbanos ao longo do processo de elaboração da constituição cidadã, as AEIS alinhavam-se com a busca pela redução do déficit habitacional a partir da garantia da oferta de terras urbanizadas para moradias populares, como forma de enfrentamento da especulação imobiliária com terrenos vazios e da prática da remoção de favelas.
2. Zoneamento urbano inclusivo
A prática do zoneamento urbano chega ao Brasil a partir da difusão da experiência norte americana. A importação deste modelo pelos gestores brasileiros se dá nos anos 1930, a partir da racionalização das gestões locais no âmbito do varguismo. Consolida-se então o entendimento do zoneamento urbano como solução para a regulamentação da produção privada de loteamentos e de novas construções na cidade, regulamentação essa pautada na demarcação de espaços sob tipos de uso do solo diferenciados (habitacional, industrial, comercial, etc.) para a garantia da ordem social. Ao restringir usos e funções para determinadas áreas das cidades, esta ferramenta torna-se ainda uma grande reguladora da produção imobiliária em prol dos lucros deste setor.
No final dos anos 1970, tem início um debate, promovido inicialmente pelos setores técnicos do governo federal, visando criar novos instrumentos de controle do uso e ocupação do solo urbano e de combate à especulação imobiliária. Neste debate surgem as primeiras propostas de Zonas Especiais. Na década de 1980, os movimentos sociais articulados em torno da luta pela reforma urbana, reivindicam uma política urbana mais democrática e redistributiva. Com a abertura política, este movimento passa a ter um papel destacado na elaboração da Constituição Federal de 1988, introduzindo um capítulo dedicado à política urbana, “em que se afirmava a função social da cidade e da propriedade, o reconhecimento e integração dos assentamentos informais à cidade e a democratização da gestão urbana – entendida como ampliação dos espaços de participação e controle social das políticas” (ROLNIK, 2009, p. 34). Em 2001, este capítulo é regulamentado pela Lei do Estatuto da Cidade, onde é apresentado um conjunto de instrumentos urbanísticos do qual fazem parte as zonas especiais de interesse social.
A aplicação do instrumento das zonas especiais de interesse social trata diretamente da democratização do acesso à terra urbana. Por meio deste instrumento se dá o reconhecimento das ocupações de terras como legitimas soluções de moradia da população de baixa renda, sendo definidas como áreas prioritárias para intervenções do poder público que visem a garantia do pleno direito à moradia digna e adequada, enfrentando a reiterada prática das remoções forçadas.
3. Experiências pioneiras - a gênese deste instrumento nas gestões municipais e na legislação
Nacionalmente, a Lei n. 6.766/79 (Lei Lehmann), foi a primeira a regulamentar a regularização fundiária abrangendo não apenas a entrega do título de propriedade, mas também a regularização urbanística. Na versão desta Lei que foi aprovada em 1979, foi estabelecido que a Prefeitura Municipal poderia regularizar loteamento irregular ou clandestino para evitar desrespeito a padrões de desenvolvimento urbano e para a defesa dos direitos das pessoas que compravam lotes.
A partir das experiências de alguns Municípios na aplicação das ZEIS/AEIS ou de mecanismos legais semelhantes em suas legislações urbanísticas, foi então incorporada à Lei Lehrman a regulamentação das ZEIS. Dentre os municípios que tiveram papel de destaque neste processo destacam-se: Belo Horizonte, Recife e Diadema.
Em Belo Horizonte, o Programa Municipal de Regularização de Favelas (PRO-FAVELA) foi criado em 1983 em resposta a uma grande mobilização popular, sendo um marco no reconhecimento do direito à posse e à inclusão dos territórios populares nas políticas urbanas municipais do Brasil. Para gerenciar o Pró-Favela e realizar as ações de regularização fundiária foi criada a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL), que viria a se tornar o órgão responsável pela política urbana do município. Estes avanços foram seguidos pela criação do Conselho Municipal de Habitação, da Política Municipal de Habitação Popular de Belo Horizonte e pela inserção das zonas especiais de interesse social na legislação urbanística municipal (MIRANDA, MORAES, 2007; SOARES et al., 2012).
No mesmo ano de criação do PRO-FAVELA, tem-se em Recife a inclusão de áreas delimitadas como Zona Especial de Interesse Social na lei de uso e ocupação do solo, para as quais haviam sido definidas normas urbanísticas específicas para a promoção da regularização fundiária de favelas. Tal avanço consolidou-se com sua inserção em uma política urbana mais ampla por meio do Plano de Regularização das ZEIS – PREZEIS, elaborado por movimentos sociais e submetido a um longo processo de negociação e ajustes para sua aprovação em 1987. Em sua formulação, o PREZEIS foi além de um conjunto de normas e procedimentos para a regularização fundiária, tornando-se uma referência nacional de políticas urbanas para favelas como um sistema inovador de planejamento e gestão democrática e participativa (MORAES, 2017).
Somam-se a estas experiências o município de Diadema que, em 1993, viria a incluir vazios urbanos na demarcação de zonas especiais de interesse social para a produção de novas moradias populares por meio de seu Plano Diretor. Nas AEIS dedicadas aos vazios urbanos foram inseridos 36 terrenos privados (BALTRUSIS, 2007). A experiência da cidade de Diadema diferencia-se das demais também pelo conjunto de fatores favoráveis que circundam a aplicação deste instrumento e sua consolidação, em especial os significativos avanços nas práticas de gestão participativa.
No ano de 1999, já no contexto da vigência da Constituição Federal de 1988, foi publicada a Lei n. 9.785 que fez acréscimos no texto da Lei n. 6.766/79, prevendo que a regularização fundiária de um loteamento deveria respeitar condições urbanísticas mínimas de segurança, saúde e de qualidade ambiental, bem como deveria garantir condições essenciais de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos. Essa mudança na lei permitia ainda uma maior flexibilidade nos índices urbanísticos, abrindo a possibilidade que em áreas de regularização fundiária não fosse obrigatório o respeito a padrões únicos de tamanho de lotes ou de dimensão da construção já em vigor (art. 40, §5o).
Outra alteração legislativa importante que lei 9.785/1999 fez na Lei Lehmann foi conferir interesse público aos assentamentos vinculados a planos ou programas habitacionais, sobretudo aqueles destinados para fins de regularização fundiária (art. 53A), estabelecendo exigências documentais mais flexíveis para permitir a regularização. Ligada às previsões anteriores, também inseriu a figura de zonas declaradas como sendo de interesse social (ZHIS). Deste modo, além de estabelecer a responsabilidade pública pela regularização fundiária de assentamentos que integrassem programas habitacionais, a lei criou um mecanismo de zoneamento próprio e estabeleceu parâmetros de infraestrutura básica que deveriam ser garantidas (Art. 2º §6º).
Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001), prevendo expressamente a figura das zonas especiais de interesse social (ZEIS), mas ainda de forma pontual e genérica, classificando-a como instituto jurídico e político (art. 4º, V, f). O papel que deveriam ter essas ZEIS nos Municípios foi detalhado posteriormente nos manuais editados pelo Ministério das Cidades e recomendações do Conselho Nacional das Cidades (CONCIDADES)[1].
Em 2011, a Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida (Lei no 11.977/2009) detalhou melhor o conceito de ZEIS, determinando que ela seria destinada predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a critérios urbanísticos próprios (art. 47, V) e a conectou diretamente aos procedimentos de regularização fundiária urbana de interesse social (art. 47, VII, b). No entanto, em 2017 esses artigos foram revogados pela Lei no 13.465/2017, a qual manteve o conceito geral de ZEIS (art. 18, §1º), mas desvinculou a realização de regularização fundiária de interesse social à necessidade demarcação da área como ZEIS (art. 18, §2º). Ainda que tenha acontecido essa alteração da regulamentação nacional, os Municípios têm autonomia para prever nas suas leis que as ZEIS/AEIS devam ser demarcadas como condição para a execução de programas de regularização fundiária ou para construção de moradia social.
4. Como funcionam as AEIS na cidade do Rio de Janeiro
Alinhado com a conjuntura nacional de debates em torno da reforma urbana, do direito à moradia e da democratização do acesso à terra, a cidade do Rio de Janeiro tem nas décadas de 1980 e 1990 um período singular nas relações estabelecidas entre o poder público e as favelas. Se nos períodos anteriores as favelas haviam passado por processos de invisibilidade, repressões e grandes remoções forçadas, na década de 1980 ganha força a luta pelo reconhecimento das favelas como espaços legítimos de moradia e sociabilidade. Com isso, os moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro têm na década de 1990 um período de maior segurança da posse e passam a ser contemplados pela agenda municipal de políticas de urbanização de favelas. É neste contexto que se dão as primeiras iniciativas no campo da legislação urbanística municipal alinhadas aos princípios do zoneamento urbano inclusivo através da delimitação de zonas especiais de interesse social.
Em 1981, o zoneamento urbano do município passa contar com a Zona Especial 10, inserida por decreto ao Regulamento de Zoneamento vigente por meio do Decreto Municipal no 322/1976, destinada à “recuperação urbana de áreas já consolidadas, constituídas por aglomerações de habitações subnormais, consideradas de interesse social”[2]. Quando criada, esta nova zona urbana englobava apenas uma área específica da cidade, a favela do Morro do Timbau, que passava por processo de urbanização por meio do Programa PROMORAR, inserido no complexo de favelas da Maré. Ao instituir este novo tipo de zona, abria-se a possibilidade de, a partir de um plano de urbanização, serem estabelecidos padrões urbanísticos para assentamentos específicos, com parcelamento do solo e normas de uso e ocupação adequadas para a garantia do direito à moradia da população. Nos anos seguintes, este zoneamento passou então a englobar outras áreas em processos de urbanização como a favela Dona Marta, a partir de uma nova legislação municipal de 1983[3].
Já em 1990, a nova Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro passa a incorporar os princípios da política urbana presentes na Constituição Federal recém elaborada e aprovada, trazendo dentre seus preceitos a “urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes” e a “regularização de loteamentos irregulares abandonados, não titulados e clandestinos em áreas de baixa renda, através da urbanização e titulação, sem prejuízo das ações cabíveis contra o loteador” (SMU/CGPIS, 2014).
Com a elaboração do Plano Diretor da cidade, em 1992, o instrumento da AEIS passa a integrar a política habitacional do município, sendo previstas tanto para áreas ocupadas como para áreas vazias, nos seguintes termos: “Área de Especial Interesse Social, a que apresenta terrenos não utilizados ou subutilizados e considerados necessários à implantação de programas habitacionais de baixa renda ou, ainda, aquelas ocupadas por favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais, destinadas a programas específicos de urbanização e regularização fundiária” (art. 107, II)”. Definiu-se ainda que, para realizar programas de urbanização ou regularização fundiária de favelas, a área deveria ser demarcada como AIES por meio de projeto de lei apresentado pelo Prefeito e que a fiscalização seria realizada em cooperação com a comunidade (art. 104).
A partir destes marcos na legislação urbanística do município, tem-se entre as décadas de 1990 e 2000 a demarcação de diversas áreas de interesse social por meio de leis e decretos municipais, parte coincidindo com as áreas com irregularidades fundiárias nas quais atuava o núcleo de regularização de loteamentos da Prefeitura do Rio de Janeiro e outra parte com as áreas de favelas.
Já em 2011, tem-se a aprovação de um novo Plano Diretor municipal que revoga o de 1992, mas mantém grande parte do arcabouço de seu antecessor e incorpora parte dos avanços trazidos com o Estatuto da Cidade. Neste novo instrumento de planejamento da cidade, é definida como uma das diretrizes para o desenvolvimento da função social da cidade a “urbanização das favelas, dos loteamentos irregulares e clandestinos de baixa renda”, indicando a realização de obras de urbanização e a integração às áreas formais da cidade. Entretanto, cabe ressaltar que este Plano insere também como uma das diretrizes a contenção do crescimento e expansão das favelas, com o estabelecimento de limites físicos e regras urbanísticas especiais. Este viés da legislação urbana do município do Rio de Janeiro ganhou força após os graves problemas vividos pela cidade durante fortes chuvas em 2010, que expuseram a condição crítica de vulnerabilidade socioambiental de milhares de famílias que perderam suas casas em favelas cariocas. Este episódio impulsionou o debate em torno do controle das áreas ocupadas por favelas em encostas e a elaboração de um amplo mapeamento de áreas de risco elaborado pelo poder público e que passou a orientar as intervenções nestes espaços.
Apesar dos significativos avanços na legislação urbana do município, inclusive abrindo a possibilidade de demarcação de áreas vazias como de especial interesse social para a implementação de políticas habitacionais, encontram-se ainda grandes entraves ao alcance dos seus objetivos. Dentre as AEIS já demarcadas na cidade do Rio de janeiro, que chegam a quase mil, um terço é caracterizado pela Prefeitura como favela (33,84%), quase dois terços como loteamento irregular (64%) e alguns poucos casos de conjuntos habitacionais e assentamentos (SMU/CGPIS, 2014). Com isso, a perspectiva de demarcações de AEIS em vazios urbanos para atender a demanda por terra urbana para provisão habitacional permanece vaga[4]. Já com relação àquelas AEIS demarcadas, são exceções as que possuem regulamentações que, por sua vez, quando existem, limitam-se à definição de parâmetros urbanísticos e de restrições à população residente nestas áreas. Desta forma, são deixadas de lado estratégias de gestão participativa destas áreas e a necessária elaboração de políticas públicas estruturadas que articulem instrumentos de planejamento em prol da democratização do acesso à terra e do direito à moradia.
As favelas Chapéu-Mangueira e Pavão-Pavãozinho fazem parte do restrito grupo de favelas que chegaram a ter suas AEIS regulamentadas. Inseridas na zona sul da cidade, área litorânea de intensa dinâmica imobiliária, estas favelas ocupam encostas de morros e colocam-se em grande contraste com a ocupação do entorno marcada por edifícios de alto padrão e população de renda elevada. Estas favelas receberam obras do Programa Favela-Bairro, que tinha como objetivo a urbanização (com obras de acessibilidade e saneamento, além da construção de equipamentos sociais e espaços de lazer) e a regularização urbanística das favelas atendidas. Criado ainda no primeiro mandato do César Maia (1993-1997) à frente da Prefeitura Municipal, o Programa teve continuidade nas gestões seguintes de Luiz Paulo Conde (1997-2000) e Cesar Maia (2001-2004 e 2005-2008) e passou a ser considerado pelas agências de fomento e parte da literatura especializada como uma referência nacional nesse campo de atuação. Foi durante o período deste Programa municipal que as favelas Chapéu-Mangueira e Pavão-Pavãozinho tiveram suas áreas demarcadas como AEIS no zoneamento municipal, sendo a lei de AEIS da favela da Chapéu-Mangueira de 1999 (nº 2912) e a do Pavão-Pavãozinho de 2003 (nº 3688). Apesar de delimitadas durante a execução do Programa Favela-Bairro, estas AEIS tiveram suas regulamentações elaboradas depois de um longo período, já sendo contemporâneas à realização de obras de urbanização do PAC-favelas[5] e posterior à elaboração do novo Plano Diretor e do mapeamento de áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro (a primeira em 2013, por meio do Decreto 37915, e a segunda 2011, por meio do Decreto 33866).
Os decretos regulamentadores, elaborados ainda no primeiro mandato de Eduardo Paes como Prefeito, são acompanhados de mapas de delimitam as áreas ocupadas por favelas e as segmentam em setores ou subzonas específicas (ex: zonas de uso especial, de risco, e de restrição à ocupação). Para a regularização das edificações foram instituídos alguns critérios urbanísticos e de construção: tipo de uso; gabarito; condicionamentos para o pavimento da cobertura; obrigatoriedade de um compartimento habitável, um banheiro com instalação sanitária e uma cozinha. É previsto que a verificação desses condicionantes seja realizada pela Prefeitura, a partir de laudo emitido por profissional habilitado atestando condições de segurança e estabilidade da construção. Todos esses elementos foram colocados como requisito para a expedição do habite-se e para a realização da inscrição imobiliária das moradias. Desta forma, tem grande peso nas regulamentações destas AEIS a fiscalização e o controle do município sobre as edificações pré-existentes, tendo a regularização como norte no cumprimento de tais normais. Apesar de Chapéu-Mangueira e Pavão-Pavãozinho contarem com projetos de urbanização com escopo bastante amplo por meio do PAC e acumularem camadas de urbanização nas últimas décadas, a regulamentação de suas AEIS não possui um planejamento urbano dedicado à esfera local e que compreenda a dinâmica urbana existente.
5. Considerações finais e pontos para discussão
Ao recuperarmos a discussão em torno das Áreas Especiais de Interesse Social, torna-se clara a posição de enfrentamento que este instrumento assume em relação ao zoneamento urbano hegemônico, consolidado sob uma ótica tecnocrática e que privilegia a valorização imobiliária. Por meio destas zonas especiais, adota-se um novo ponto de partida para se pensar e produzir cidades, tendo centralidade as condições socioeconômicas das populações locais, reconhecendo o direito à moradia das classes populares e a função social da propriedade.
Ao seguir no sentido de democratizar o acesso à terra e enfrentar a lógica de produção do espaço urbano como temos hoje nas grandes cidades brasileiras, a aplicação deste instrumento depara-se com barreiras muitas vezes instransponíveis se desarticulada de um arcabouço mais amplo. Estes entraves podem ser melhor percebidos quando resgatadas as experiências pioneiras de aplicação deste instrumento, nas quais houve rupturas significativas. Torna-se clara a vulnerabilidade deste instrumento diante da descontinuidade de gestões municipais que coloca em cheque a fragilidade das políticas urbanas que muitas vezes se dão de forma desarticulada das políticas habitacionais.
Na cidade do Rio de Janeiro, apesar do grande número de AEIS existentes, há grande hiato entre a demarcação destas áreas e suas regulamentações. Tendo, no caso das poucas favelas com AEIS regulamentadas, escassas iniciativas de articulação com planos urbanísticos locais, ausência de esferas participativas e de debate público, e clara predominância da prerrogativa do controle sobre a expansão e o adensamento destas áreas.
Apesar de previstas no Plano Diretor em vigor na cidade do Rio de Janeiro, a aplicação deste instrumento para demarcação de terrenos vazios, não utilizados ou subutilizados, mantém-se distante dos objetivos fundantes do instrumento. Cabe destacar ainda que, em municípios que chagaram a demarcar este tipo de ZEIS/AEIS, são enfrentados graves problemas. Mesmo instituídas em lei como áreas reservadas a programas habitacionais de baixa renda, contando com critérios urbanísticos diferenciados, essas áreas vêm sendo apropriadas pelo mercado imobiliário para construção de prédios voltados para faixas de renda elevadas, ao passo que os conjuntos habitacionais produzidos por políticas públicas seguem sendo executados em periferias urbanas.
Vários autores apontam essas práticas ilegais que se multiplicam pelo país[6]. No Rio de Janeiro temos exemplos pontuais porém ilustrativos, como o caso da AEIS criada através da Lei no 3.993/2005 que teve parte destinada à construção de dois edifícios habitacionais voltados para famílias de classe média, enquanto vigora no município a demarcação de uma zona prioritária de implantação de conjuntos habitacionais de interesse social na zona oeste, área caracterizada pela precariedade de serviços públicos e distante da região central.
Desta forma, deve-se ressaltar que o uso das AEIS/ZEIS para a promoção de moradia para famílias de baixa renda – seja de produção habitacional ou de regularização fundiária urbana – não passa por uma escolha que os poderes públicos podem adotar e sim pelo cumprimento de um dever. No entanto, a obtenção desses resultados depende de uma série de fatores em que a delimitação e regulamentação das AEIS é apenas uma etapa.
Referências
BALTRUSIS, N. 2007. As Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis) em Diadema. Viabilizando o acesso à terra urbana. Em: Habitação social nas metrópoles brasileiras: uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX, coord. Cardoso, A. L. Porto Alegre: IPPUR. Coleção Habitare
MORAES, D. Revisitando as ZEIS e o PREZEIS no Recife: entre o “reformismo” e o Direito à Cidade.
MIRANDA, L.; MORAES, D. O Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis) do Recife: democratização da gestão e planejamento participativo. In: CARDOSO, A. L. (coord.). Habitação social nas metrópoles brasileiras - uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX. Coleção Habitare. Porto Alegre: ANTAC, 2007. Cap. 11.
SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO COORDENADORIA GERAL DOS PROGRAMAS DE INTERESSE SOCIAL COORDENADORIA DE POUSOS - SMU/CGPIS.Relatório das Áreas de Especial Interesse Social na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.
SOARES, I., AZEVEDO, M. DE L., STEPHAN, ÍTALO, CARVALHO, A., & ARANTES, P. (2012). A instituição de ZEIS na legislação municipal: estudo de seis cidades médias de Minas Gerais. Revista De Pesquisa Em Arquitetura E Urbanismo, (15), 21-37.
[1] O Conselho das Cidades (ConCidades) foi um órgão colegiado de natureza consultiva e deliberativa que integrou a estrutura do Ministério das Cidades, responsável por propor as diretrizes gerais para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, em consonância com as resoluções aprovadas pela Conferência Nacional das Cidades. Recentemente, este órgão sofreu com intervenções do governo federal que reduziram sua autonomia. Um dos exemplos de orientações à implementação das ZEIS elaboradas por este órgão é a Resolução n. 34/2005 em seu 5º artigo.
[2] Decreto nº 3103 de 16 de Junho de 1981. Disponível em: http://leismunicipa.is/vkjac
[3] Lei nº 434 de 26 de Julho de 1983. Disponível em: http://oads.org.br/leis/1690.pdf
[4] Com exceções bastante pontuais, como a Lei n. 5.345/2011 que aumentou o perímetro da AEIS Chapéu-Mangueira para uma área contígua e vazia, com o objetivo de “realocar na mesma região em que vivem as famílias que residem em áreas de risco ou de intervenção para a abertura de vias”
[5] Programa de Aceleração do Crescimento em sua linha voltada para a urbanização de assentamentos precários
[6] SILVA, Jonathas M. P. Investigação sobre relações entre investimento público em habitação de Interesse Social e o planejamento territorial: municípios da Região Metropolitana de Campinas. In: Anais do 2º Congresso Internacional: Sustentabilidade e Habitação de Interesse Social CHIS. Porto Alegre: EdiPUCRJ, 2012. SAMORA, Patrícia. HIRATA, Marcia. Habitação social e requalificação de áreas centrais após dez anos das ZEIS 3 de São Paulo. Anais: Encontros Nacionais da ANPUR. V. 15, 2013 . CUCATO, Janaína. As contradições no zoneamento de interesse social (ZEIS) no processo capitalista de (re)produção do espaço urbano: agentes e processos. Anais XVII ENANPUR, 2017.
Palavras-chaves: Áreas de Especial Interesse Social; Regularização fundiária e urbanística; Zoneamento; Rio de Janeiro.