Evolução das milícias no Rio de Janeiro (livro)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Este livro resulta de uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com apoio da Fundação Heinrich Böll.

Autoria: Informações do verbete reproduzidas, pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a partir do material Disponibilizado pela Fundação Heinrich Böll[1].

Sobre o livro

O objetivo da pesquisa foi avaliar a evolução do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro, estudando se houve mudanças na sua composição e estrutura, sua abrangência territorial, sua capacidade de geração de lucro, seu modo de operar, sua legitimidade e em sua relação com as comunidades. 

Introdução

O tema das milícias adquiriu notoriedade no Rio de Janeiro no ano de 2006, quando o termo foi cunhado para descrever grupos de agentes armados do Estado (policiais, bombeiros, agentes penitenciários etc.) que controlavam comunidades e favelas, oferecendo “proteção” em troca de taxas a serem pagas pelos comerciantes e os residentes. Estes grupos passaram também a lucrar com o controle monopolístico sobre diversas atividades econômicas exercidas nestes territórios, como a venda de gás, o transporte alternativo e o serviço clandestino de TV a cabo.

Em um primeiro momento, diversos atores participantes do debate público mostraram tolerância e, inclusive, apoio a estes grupos, considerando-os como uma reação dos moradores destas regiões contra a criminalidade ou, quando menos, como um “mal menor” em comparação com o narcotráfico. O prefeito da cidade na época definiu estes grupos como “autodefesas comunitárias” e outras autoridades públicas se manifestaram em termos parecidos. Do outro lado, diversos setores criticaram a extorsão praticada contra as comunidades e equipararam estes grupos ao crime organizado.

A despeito de ser o centro de debates de grande atualidade e relevância para a segurança da região metropolitana do Rio de Janeiro, o tema, em função da sua novidade e da sua dificuldade para ser estudado, não tinha sido ainda objeto de pesquisas sistemáticas na literatura especializada. Inclusive hoje, a produção sobre o tema é bastante limitada.

Zaluar & Conceição (2007) afirmam no seu artigo que o termo milícia refere-se a policiais e ex-policiais (principalmente militares), bombeiros e agentes penitenciários, todos com treinamento militar e pertencentes a instituições do Estado. Eles tomam para si a função de proteger e dar “segurança” em vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes. Segundo as autoras, estes grupos de ex-policiais constituem o mesmo fenômeno conhecido como grupo de extermínio nas décadas de 1960, 1970 e 1980 na Baixada Fluminense e na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A novidade das milícias estaria apenas na ampliação dos negócios com a “venda” de produtos e serviços. Tal característica das milícias do Rio de Janeiro também esteve presente no início das máfias italiana e norteamericana. Além disso, o controle sobre o território, que passa a ser dominado militarmente, seria também uma característica central do fenômeno das milícias na cidade do Rio de Janeiro. A diferença em relação aos grupos de extermínios é que estes, apesar de serem também compostos por policiais, cobram apenas de comerciantes locais e matam por encomenda. Isto é, os grupos de extermínio se aproximam mais da imagem de pistoleiros sertanejos do que dos negociantes da segurança. Adicionalmente, haveria também o diferencial de os milicianos tentarem ocupar espaços cada vez maiores nos poderes Legislativo e Executivo, construindo redes no interior do Poder Executivo, Legislativo e até no Judiciário.

Nessa mesma linha, Misse (2011) ressalta que a partir da década de 1970, formaram-se grupos de extermínio na periferia do Rio de Janeiro. Estes eram pequenos grupos de policiais, agentes penitenciários e guardas que recebiam dinheiro de comerciantes e empresários para evitar a ocorrência de crimes em determinada área. Outro grupo surgido nesse mesmo período foi a ‘polícia mineira’, formada por ex- -policiais e policiais que vendiam proteção aos comerciantes locais. Na década de 1990, a ‘polícia mineira’ começou a ganhar novas configurações, já que a proteção por ela oferecida se estendeu aos próprios moradores, e não apenas aos comerciantes, com o objetivo de impedir a disseminação do narcotráfico. Esse modelo, atualmente denominado de milícia, proliferou basicamente pela zona Oeste do Rio de Janeiro e apresentaria traços, de acordo com o autor, de uma organização mafiosa. Segundo ele, haveria cerca de 90 favelas sob o domínio de milícias no estado, que controlariam a distribuição de gás em botijão, os serviços clandestinos de internet e televisão a cabo e, em algumas áreas, o transporte público ilegal.

Para contribuir à compreensão do fenômeno, em 2007 o Laboratório de Análise da Violência iniciou uma pesquisa especificamente sobre milícias com o financiamento da Fundação Heinrich Böll, que foi publicada no ano seguinte sob o título “Seis por Meia Dúzia?: um Estudo Exploratório do Fenômeno das Chamadas ‘Milícias’ no Rio de Janeiro” (Cano, 2008). Este estudo exploratório utilizou artigos de imprensa, dados do Disque Denúncia e um total de 46 entrevistas com pessoas que residiam ou trabalhavam em áreas de milícia, além de um grupo focal. O campo desta pesquisa acabou em março de 2008.

O conceito de milícia que resultou deste estudo pode ser resumido pela confluência de cinco traços centrais:

  1. Domínio territorial e populacional de áreas reduzidas por parte de grupos armados irregulares.

  2. Coação, em alguma medida, contra os moradores e os comerciantes.

  3. Motivação de lucro individual como elemento central, para além das justificativas retóricas oferecidas.

  4. Discurso de legitimação relativo à libertação do tráfico e à instauração de uma ordem protetora. Diferentemente do tráfico, por exemplo, que se impõe simplesmente pela violência (ver Machado da Silva, 2004), as milícias pretendiam se apresentar como uma alternativa positiva.

  5. Participação pública de agentes armados do Estado em posições de comando.

Entretanto, justamente em meados de 2008, quando foi concluída a pesquisa, o fenômeno das milícias atingiu um ponto de inflexão que, apesar de brevemente mencionado no estudo, ficou de fora do material empírico coletado. Concretamente, em maio de 2008 um grupo de jornalistas do “O Dia”, que fazia matéria sobre milícias de forma sigilosa se fazendo passar por moradores comuns, foi torturado por milicianos da comunidade do Batan, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Esse fato foi amplamente noticiado pela imprensa nacional e internacional e provocou uma virada em relação à questão das milícias. Se até aquele momento os meios de comunicação tinham alguma dúvida sobre a natureza da milícia, a partir daí passaram a considerála diretamente como parte do crime organizado, cobrando uma ação mais enérgica do Estado contra elas. Por sua vez, as autoridades públicas pararam de justificar as ações desses grupos. Nesse cenário, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre Milícias em junho de 2008 (Resolução nº 433/2008 publicada no D.O. de 11.06.2008), que tinha sido solicitada infrutuosamente desde 2007.

O relatório desta CPI, publicado em novembro de 2008, registra no seu primeiro ponto, intitulado “Do Conhecimento do Fato”, o seguinte:

A instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito foi requerida pelo Deputado MARCELO FREIXO em fevereiro de 2007, em decorrência da extrema gravidade da situação das milícias em comunidades no Estado do Rio de Janeiro, com fortes indícios de envolvimento de policiais, civis e militares, bombeiros militares e agentes penitenciários. Essa situação extremamente grave exigiu do poder público, em 2008, uma resposta imediata, a partir do seqüestro e tortura dos repórteres do jornal “O DIA” em uma favela do Rio de Janeiro.

 

Em outras palavras, o próprio Poder Legislativo reconhece o episódio da tortura dos jornalistas como o marco a partir do qual o poder público se sentiu compelido a agir. Antes desse episódio, os ‘fortes indícios’ e a ‘grave situação’ não tinham merecido, durante mais de um ano, a aprovação da CPI.

A CPI teve acesso a documentos oficiais de diversos órgãos (Polícia Civil, COAF, Ministério Público etc.) e, além disso, abriu um canal de denúncia para a população, o chamado Disque Milícia, em que as pessoas podiam ligar para um número telefônico e repassar suas denúncias de forma anônima. Esta linha telefônica ficou aberta entre os meses de julho e novembro de 2008 e coletou um total de 1.162 denúncias, que devem ser somadas a outras 44 que chegaram à CPI por outros canais.

A CPI recebeu também depoimentos de policiais, promotores e acadêmicos que tinham pesquisado ou investigado o tema, bem como de pessoas acusadas de pertencerem às milícias, de favorecê-las ou de serem favorecidos por elas.

O relatório final da CPI, publicado em novembro, apresenta um resumo dessas contribuições de profissionais de segurança e acadêmicos, descreve minuciosamente as estruturas criminosas encontradas em cada local a partir das denúncias recebidas, apresenta uma lista de indiciados e, ao final, faz uma lista de recomendações a respeito das medidas a serem tomadas.

Entre as diversas visões sobre o fenômeno contidas no relatório, o delegado MarcusNeves define as milícias como “grupos armados compostos por agentes do Poder Público e pessoas cooptadas nas comunidades carentes, inclusive ex-traficantes, que usam a força e o terror para dominar uma determinada região e explorar de maneira ilegal as atividades de transporte alternativo, gás e tevê a cabo” (pág. 35). Ele acredita que oito anos atrás as milícias tinham um objetivo ‘legítimo’ de expulsar os traficantes das comunidades de baixa renda, mas com tempo esse ideal foi se corrompendo em favor de uma exploração de diversas atividades econômicas.

O delegado Cláudio Ferraz considera que as milícias se enquadram no conceito internacional de crime organizado, em função da sua capacidade de organização, da sua racionalidade empresarial, da sua utilização da violência, da corrupção e dos seus vínculos com o poder político (pág. 35).

O promotor estadual Jorge Magno associa o crescimento das milícias ao transporte alternativo na Zona Oeste, que multiplicou a sua capacidade de gerar lucro (pág. 41).

O delegado Pedro Paulo Pinho divide as milícias em três níveis (pág. 41). O Nível 1 corresponderia a grupos de extermínio constituídos para combater o crime. Ou seja, os próprios moradores de um dado local se organizariam para impedir a entrada de traficantes e outros tipos de criminosos. O Nível 2 envolveria a cobrança de taxas aos moradores das comunidades, através do cadastramento pelas associações de moradores. Tais organizações passariam a apoiar os candidatos a cargos parlamentares para ter representação nos poderes constituídos. O Nível 3 implicaria o controle de diversos serviços, como gás, TV a cabo, transporte alternativo etc. As associações de moradores passariam a estar diretamente controladas por esses grupos. Adicionalmente, os milicianos se tornariam, eles próprios, candidatos nas eleições.

O sociólogo Luis Eduardo Soares vincula a origem das milícias ao descontrole da segurança privada informal e ilegal (pág. 39). Essas atividades exercidas pelos policiais fora do horário de trabalho, conhecidas como o “bico”, seriam decorrentes dos baixos salários destinados aos agentes de segurança pública.

A partir de dados de diversos órgãos, o relatório conclui que o número de comunidades que estaria sob o controle de milícias no estado do Rio de Janeiro oscilaria entre 81 e 171. Das 171 comunidades mencionadas em um relatório da Subsecretaria de Inteligência do estado, 119 (quase 70%) não tinham pertencido, anteriormente, a nenhuma facção criminosa, o que desmontava o mito da milícia como uma cruzada contra o tráfico.

O relatório da CPI indicia um total de 218 pessoas, sem contar com os parlamentares também acusados: Deputado Estadual Natalino José Guimarães (ex-DEM); vereador, no Rio de Janeiro, Jerônimo Guimarães Filho, “Jerominho” (PMDB); vereador, no Rio de Janeiro, Josinaldo Francisco da Cruz, “Nadinho de Rio das Pedras” (DEM); vereador, no Rio de Janeiro, André Ferreira da Silva, “Deco” (PR); vereador, em São Gonçalo, Geiso Pereira Turques, “Geiso do Castelo” (PDT); vereadora eleita pelo Rio de Janeiro, Carmen Glória Guinâncio Guimarães, “Carminha Jerominho” ou “Carminha Batgirl” (PTdoB); e vereador eleito Cristiano Girão Matias, “Girão” (PMN). A maior parte dos indiciados, contrariamente ao esperado, está composta por civis (130), enquanto 67 são policiais militares e oito, policiais civis, contando ainda com uma pequena participação de membros de outras corporações públicas.

Além dos indiciados, o relatório menciona um total de 879 pessoas “noticiadas” por envolvimento e citadas por nome ou vulgo. Em outras palavras, nestes casos não haveria evidências suficientemente sólidas e/ou identificação das pessoas necessárias para indiciar alguém, mas havia pelo menos uma menção a estes indivíduos nas denúncias. De qualquer forma, é muito significativo que em poucos meses a CPI recebesse informações sobre mais de 1.000 pessoas envolvidas em algum grau com as milícias.

Uma das contribuições mais interessantes do relatório é a análise da vinculação das milícias com cargos públicos. Dados do Tribunal Regional Eleitoral revelaram que os cargos públicos acusados de pertencerem às milícias apresentavam votações altamente concentradas, o que condiz com a existência de currais eleitorais. Em algumas das seções eleitorais situadas em Rio das Pedras, por exemplo, o percentual de votos para “Nadinho de Rio das Pedras” ultrapassou 60%. Girão, Deco, Chiquinho Grandão, Geiso Turques e Marcão também apresentavam concentrações de votos elevadas. Em menor grau, Jorge Babu e Marcelo Itagiba revelavam também indícios nesta direção.

Além dos dados eleitorais, a CPI recebeu testemunhos de que Marcelo Itagiba, Marina Magessi, Álvaro Lins e Domingos Brazão teriam feito campanha eleitoral em área de milícia com o apoio dos líderes locais. Marina Magessi, deputada federal em 2008 e expolicial civil com cargos de responsabilidade durante o governo anterior, declarou no seu depoimento que não havia combate às milícias por parte dos órgãos de segurança na sua época, em função da falta de direcionamento da Secretaria de Segurança neste sentido. Marcelo Itagiba, também deputado federal e ex-Secretário de Segurança entre 2004 e 2006 foi indagado sobre estas questões, mas não compareceu perante a CPI, nem respondeu as perguntas formuladas por escrito.

O Poder Executivo e o Judiciário também participaram desta mudança de abordagem em relação às milícias. Já no início de 2007, o novo governo de Sérgio Cabral se manifesta publicamente contra as milícias e promete combatê-las, embora as ações contra esses grupos são, em um primeiro momento, escassas. O inspetor da Polícia Civil, Félix dos Santos Tostes, acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras, é exonerado do seu cargo de confiança na Assessoria do Gabinete da Polícia Civil e passa a ser investigado. Poucos meses depois, o inspetor Félix é assassinado e o líder comunitário do Rio das Pedras é indiciado pelo crime. Em abril de 2008, o deputado estadual Natalino José Guimarães e seu irmão, o vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, foram presos e acusados de formação de quadrilha pelo Ministério Público, como chefes da milícia batizada como “Liga da Justiça”, na Zona Oeste do Rio.

Depois do relatório da CPI e dos seus indiciamentos, um número considerável de milicianos é preso e, posteriormente, condenado. Progressivamente, quase a totalidade dos milicianos com cargos eleitos acabou perdendo-os, por causa de processos penais e de expulsões por ‘quebra de decoro’.

Em suma, a primeira pesquisa do Laboratório de Análise da Violência sobre milícias acontece em um contexto de forte expansão destes grupos no Rio de Janeiro. Uma das possíveis razões desse rápido crescimento na época era a possível vinculação das milícias com um projeto político. Com efeito, essa suspeita, já mencionada na publicação anterior, fica fortalecida com as evidências obtidas pela CPI sobre as relações entre as milícias e certos candidatos, considerando que vários deles eram membros da cúpula de segurança do governo anterior.

Por outro lado, a publicação desse estudo acontece logo após o ponto de inflexão, ou seja, da tortura dos jornalistas do O Dia. Como já foi mencionado, esse fato gerou uma rejeição clara da milícia por parte dos meios de comunicação e dos formadores de opinião, bem como incrementou a repressão contra as milícias por parte do sistema de justiça criminal. Em conseqüência, sentiu-se a necessidade de realizar uma nova pesquisa que permitisse responder à seguinte pergunta: o que mudou na atuação destes grupos depois da rejeição de diversos atores sociais e da tentativa de o Estado de desarticulá-los?

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