Ecomuseu

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 18h44min de 30 de dezembro de 2023 por Thiagoferreira (discussão | contribs)

O Ecomuseu no Brasil, denominado também como Museu Comunitário ou de Território, difere significativamente dos Museus Tradicionais ao priorizar a comunidade, o território e a produção coletiva, estabelecendo uma "Tensão Criativa" que destaca sua ênfase na expressão local e na memória, em contraste com o foco predominantemente patrimonial dos museus convencionais.

Autor: Dell Delambre.

Sustentabilidade Inteira

O Ecomuseu no Brasil é um museu da Favela, da Comunidade, do Complexo, de um bairro periférico ou de uma expressão artística, cultural ou política da periferia que também pode ser chamado de Museu Comunitário, Museu de Território e outros nomes que possuem significados semelhantes, a saber, produção coletiva e participativa, a partir do ponto de vista do próprio grupo.

Todos esses tipos de Museus Comunitários ou Ecomuseus possuem uma diferença central da proposta de um Museu Tradicional que, na sua maioria, tem o foco no patrimônio, nos objetos e nas coleções construídas, em grade parte, sem necessidade de vínculo com o território onde está o museu.

 

Foto Antes: Mutirão de limpeza de uma área histórica de memória no alto do morro Andaraí: A Pedra da Mina - Ecomuseu Amigos do Rio de Joana.

 

Foto Depois: Pedra Mina limpa, memória local resgatada.

 

Memória

Em minha pesquisa, defino que existe uma “Tensão Criativa” ou “Tensão de Sentido” entre a proposta de um Ecomuseu ou Museu Comunitário e um Museu Tradicional. No Ecomuseu, a prioridade é a comunidade, o território, a produção coletiva e o significado que os moradores do local dão para o seu território e o que eles escolhem como suas representações nesse espaço. Por isso, o conceito “Ecomuseu Inteiro” ou “Ecomuseu Tenso” ´foi desenvolvido a partir de minhas pesquisas para marcar a diferença entre os ecomuseus no Brasil e na América Latina dos ecomuseus na Europa e outros continentes nos quais aTensãonão é a razão de existência do Ecomuseu.

Após a limpeza, trabalho de memória com os moradores mais importantes da Pedra da Minha e do morro do Andaraí para criar a exposição de memória: “No tempo que vovó andava no Andaraí”.
Entrevista com os moradores mais antigos do Morro que tiveram história com a Pedra Mina.

 

Social

O fato Museu tradicional ter outras prioridades não significa dizer que ele também possa ter o foco na comunidade, inclusive já existem museus influenciados por essa abordagem da Nova Museologia. Porém, ainda há uma grande diferença porque o Ecomuseu ou Museu comunitário ou Museu de Território começa a pensar toda sua prática a partir da comunidade e da favela e o Museu Tradicional, na sua maioria, estabelece uma pauta que não precisa, necessariamente, dialogar ou responder a uma demanda do contexto social e cultural onde ele está localizado.1 O Museu da República, Diretor Mário Chagas, é um apoiador de vários museus comunitários e ecomuseus no Rio de Janeiro e no Brasil.

 

1º Seminário do Ecomuseu Nega Vilma, Sta. Marta, no Museu da República. Parceria com Museu da República.

Favela

No Ecomuseu, o território e a memória dos moradores da favela são trabalhados como instrumentos de resistência, coesão, sentido de vida, festa, educação emancipadora, política, Sustentabilidade Inteira e qualquer outro tema que os participantes entendam ser importantes para eles. A regra é estabelecida pela comunidade, podendo o Ecomuseu ser permanente, provisório, itinerante, apenas nas redes sociais e até fora de qualquer tipo de qualificação. Todas as ações são construídas como expressão da comunidade local na relação com o território e a memória coletiva.

 

Apresentação do projeto do Ecomuseu Nega Vilma, Sta. Marta, para lideranças locais.
Apresentação do Projeto do Ecomuseu Nega Vilma, Sta. Marta, para lideranças locais

 

Morro

O Ecomuseu ou o Museu Comunitário é uma experiência permanente de “Tensão Criativa de Sentido” porque revela o lugar dos moradores da favela dentro dos jogos de poder na cidade e na formação histórica da região e do próprio país. Essa é uma das diferenças do Ecomuseu para o museu tradicional. Qualquer inserção externa que retira da comunidade local seu protagonismo participativo no processo do Ecomuseu ou do museu comunitário fere sua “Identidade Tensa”. O Ecomuseu é da favela e para a favela; o Ecomuseu é da comunidade e para a comunidade. Essa é uma característica dos Ecomuseus e Museus Comunitários no Rio de Janeiro e em outros lugares no Brasil que o difere de alguns ecomuseus na Europa e em outros lugares do mundo. O trabalho, por exemplo, realizado pela Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro tem buscado estabelecer o diálogo entre as proposta do ecomuseu, dos museus comunitários e os museus de território com os museus tradicionais e com o universo acadêmico. O mesmo trabalho também pode ser observado na vasta produção do Movimento Internacional para uma Nova Museologia.

Comunidade

O primeiro Ecomuseu tem a data de 1971 na França e se chamava Museu do Homem e da Indústria. Mais tarde, em 1974, seu nome seria mudado para “Ecomuseu Le Creusot- Montceau.” A história do desenvolvimento do conceito de Ecomuseu tem relação direta com a Mesa-Redonda de Santiago do Chile, 1972, ICOM (Conselho Internacional de Museus) e com dois grandes museólogos, Georges Rivière (1897 - 1985) e Hugues de Varine (1935-). Nesse importante evento, discutiu-se o papel do Museu como agente de transformação social, o que foi chamado de Museu Integrado. Alguns anos depois, as discussões também abririam portas para o surgimento do Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM), fundado em 1985, em Lisboa, Portugal. Na verdade, a origem do MINOM está no 2º Seminário Internacional da Nova Museologia, resultado do 1º Atelier Internacional de Ecomuseus/Nova Museologia, que aconteceu em 1984, em Quebec, no Canadá.

No Rio de Janeiro, alguns Museus Comunitários, Ecomuseus ou Museus de Territórios possuem experiências próprias, dentre eles, cito o Ecomuseu de Santa Cruz, Museu da Maré, Museu de Favela (Pavão, Pavãozinho e Cantagalo), Museu do Orto,Museu Sankofa Memória e História da Rocinha, Museu das Remoções (Comunidade da Vila Autódromo), Ecomuseu Nega Vilma, Pico do Santa Marta (Atualmente Virtual), Museu Chácara do Céu,Museu Vivo de São Bento,Ecomuseu de Sepetiba, Ecomseu do Sertão Carioca, Ecomuseu Amigos do Rio Joana, dentre outros.

 

ODALICE PRIOSTI:

A explicação de Odalice Priosti sobre Ecomuseu é importante:

"segundo nossa experiência em Santa Cruz, é um espaço de relações entre uma comunidade e seu ambiente natural e cultural, onde se desenvolve, através das ações de iniciativa comunitária, um processo gradativamente consciente e pedagógico de patrimonialização, apropriação e responsabilização dessa comunidade com a transmissão, cuidado e transformação do patrimônio comum e, conseqüentemente, com a criação do patrimônio do futuro. A partir dessa prática, a comunidade se conscientiza do seu papel e responsabilidade com o patrimônio, usando-o como um dos recursos para o desenvolvimento local."

Cada barraco na favela sempre foi um ecomuseu de histórias, cultura, espiritualidade, resistência, tensão, sofrimento e reorganização da vida bem antes de qualquer explicação acadêmica sobre o significado de Ecomuseu. Por isso, é importante dizer que o uso da memória, da cultura e dos símbolos da favela, como forma de sobrevivência, provoca uma Tensão com os modelos de preservação da memória nos museus tradicionais e nas outras áreas na cidade e até mesmo no meio acadêmico.

 

Após a limpeza da Pedra da Mina e o trabalho de memória com os moradores, foi criada a exposição de memória que conta a vida de moradores que contribuíram para a cultura e a memória no morro.

Pela viés da tensão, o Ecomuseu é a própria favela na cidade. Há décadas, existem vários trabalhos de memória na favela que os moradores não conhecem como estando dentro do conceito de Ecomuseu. Porém, eles usam a memória, a cultura do local e o território para formação de identidade e para o desenvolvimento sociocultural e comunitário. São rodas de memória, festas de jongo, pontos de cultura, festas culturais, samba, trabalhos de mídias, grafite, rodas de leitura, sarais, redes na internet, grupos de teatros, rádios comunitárias, festas religiosas e várias outras formas de preservar a memória, formar identidade e promover a participação coletiva.O Ecomuseu é a própria favela em movimento e a céu aberto.

 

Inauguração da exposição. Patrick, morador que participou do processo desde o início. A montagem da exposição foi patrocinada pela parceira entra as empresas Enteuxes Engenharia (CEO Gilson Barbosa), a WTS Coaching (CEO Dell Delambre) e com a cooperação do Museu da República com o Ecomuseu Amigos do Rio Joana. A parceria faz parte do conceito de Negócio Sócio-Sustentável desenvolvido pela WTS no qual o recurso investido pela empresa precisa deve ser 100% investido no morador.

Do ponto de vista da educação mais direcionada para o objetivo do Ecomuseu e da memória social, a experiência coletiva de uso da memória comunitária na favela tem acentuado aTensãona cidade, já que atualmente mais moradores estão conhecendo e discutindo a história do surgimento da favela, o lugar que ela ocupa com relação aos benefícios e qual foi seu lugar e função na história de formação da cidade do Rio de Janeiro.

Exposição é inaugurada no morro do Andaraí e foi exposta em escolas e no Museu da República.

Com isso, muitas comunidades e favelas começaram a exigir seus direitos e a se unirem para lutar pelas mesmas causas. O exemplo mais recente se deu em torno das remoções. A união de várias comunidades para preservação da memória e ao direito à dignidade fez nascer coletivos de favelas que pressionaram diferentes setores do governo e da sociedade, aumentando a Tensão entre os interesses do governo e seus parceiros e os direitos dos moradores das favelas e comunidades.O Ecomuseu é a história da favela contada e vivida pelos próprios moradores.

 

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Santa Marta

Em uma entrevista com Cláudia Rose do Museu da Maré é possível perceber como o Ecomuseu é um ponto deTensão dentro da cidade, justamente porque o morador pode contar a história da cidade a partir da sua leitura. Atensãose dá, sobretudo, no poder pela disputa da memória que será contada. Há umatensãocom a história oficial daqueles que vencem. Assim diz Cláudia Rose:

A primeira coisa é que eu vejo a memória como um instrumento mobilizador. Assim, não interessa de que lugar você esteja falando: se você está falando do lugar do poder ou do lugar de quem é dominado pelo poder. Não interessa. Falou em memória, isso mobiliza. Então, significa que memória também é uma disputa de poder. Mobiliza e também gera uma disputa. E aí é essa disputa que eu acho interessante. Memória é importante nesse sentido porque ela é um campo de disputa. E aí a disputa de quem esteve sempre à parte, de quem nunca teve a sua memória valorizada pra se colocar com os outros. Assim, eu acho que é uma burrice você ter uma história oficial que coloca a memória dos vencedores sempre como a única possibilidade. Porque isso empobrece todo o resto. Porque, a partir do momento que você não tem a fala dos outros, mas só de um grupo, você só tem a memória daquele grupo, e aí isso empobrece a diversidade natural, digamos, não sei se essa é a palavra, mas a diversidade que existe na sociedade, nesse estado, nesse país. A diversidade é uma riqueza tão grande que você alija uma parcela enorme da memória desses grupos do cenário nacional, você empobrece a cultura, você empobrece a participação. Isso por um lado, para quem está no poder, a princípio parece bom, mas não é, porque você tem um país cada vez mais fraco culturalmente, cada vez mais à parte de tudo que está sendo discutido. Então, eu acho que a memória é um instrumento fundamental de luta, de resistência e de você. (...) Trazer à tona todos esses discursos que foram alijados, foram colocados à margem do cenário nacional. É isso mesmo, as pessoas têm que dizer: ‘a dona Antônia, daqui da birosca, aqui do lado’. Dona Antônia tem uma memória que precisa ser valorizada, porque essa memória faz parte da construção desse lugar e esse lugar faz parte da construção dessa cidade. Isso não pode ser deixado de lado. E as pessoas não podem dizer: ‘Isso não presta! (Claudia Rose, 2014)

O Ecomuseu e os museus comunitários revelam que as lutas pelo poder podem se dar de formas diferenciadas, uma vez que os grupos que foram excluídos historicamente exigirão, por um lado, que suas memórias façam parte da história nacional e, por outro, que os espaços onde nasceram e desenvolveram essas memórias sejam preservados. Como esse processo de preservação das memórias nas favelas cariocas sempre sobreviveu sem qualquer participação institucional, as pesquisas da Ecomuseologia e da Museologia Social precisam sempre se colocar ao lado ou como ouvintes de um processo que circula por conta própria há muitos anos. Ecomuseu e Museus Comunitários são memórias de resistência e sobrevivência na favela. Essa é uma característica que difere radicalmente as expressões da Ecomuseologia e da Sociomuseologia na França, em particular, e na Europa, de uma forma geral. De um lado, a institucionalização é parte do processo e, de outro, a memória, no contexto das favelas cariocas, sempre estiveram ligadas à resistência, à religião, às origens na África, ao nascimento do samba, à culinária, ao lugar da mulher e à própria sobrevivência da população. Pelo viés datensão criativa,todo trabalho de institucionalização dos trabalhos dos Ecomuseus e Museus Comunitários nas comunidades e favelas precisam compreenderque essas memórias já possuem dimensões políticas e resilientes que atravessam séculos.

Atualmente, é possível dizer que em cada favela do Rio de Janeiro existem os redutos que, sem estudo teórico sobre o direito à memória, preservam tradições que remontam aos tempos antigos em que os negros foram trazidos como escravos da África. De forma própria, os moradores, líderes comunitários e pessoas simples criaram suas próprias metodologias, inventaram as próprias teorias e, seguindo os critérios comunitários e locais, selecionam, agrupam e dão novos significados para práticas que sobrevivem em constante diálogo com os costumes do ambiente urbano em franco desenvolvimento. Por isso, o Ecomuseu tem características que está para além do próprio conceito formal de Ecomuseu como observamos nos estudos tanto no Brasil quanto na Europa.

 

Ecomuseu Nega Vilma realiza o evento de 50 anos do Grupo de Capoeira Senzala. Mestre Sorriso, ex morador do Pico do Santa Marta, irmão de Nega Vilma, participou da fundação do grupo.

Andaraí

A luta pelo direito à memória presente na prática das favelas cariocas é o ambiente no qual a produção das memórias material, imaterial e territorial dão contornos peculiares à prática de um ecomuseu no Brasil. As mais de 800 de 800 favelas do Estado do Rio de Janeiro têm diferentes tipos de produções de memórias que não são contempladas nos museus tradicionais e nas outras formas de registros da cidade. Os processos nos ecomuseus, pontos de memória ou nos centros de memória informais e não-normativas se fazem de forma diferente, e essa é uma das razões centrais porque os ecomuseus, no contexto do Brasil, guardando raras exceções, gira em torno da prática e difere das lógicas positivistas e cartesianas de acesso à realidade.

 

Ecomuseu Amigos do Rio Joana mobiliza a revitalização da quadra da primeira escola de samba da favela, Flor da Mina do Andaraí.

 

Hugues de Varine

Hugues de Varine, que foi o criador do conceito de Ecomuseu, fez um balanço após 30 anos de trabalho, sobretudo como consultor para o desenvolvimento local. Em minha leitura, o conceito de ecomuseu também questiona o modelo de desenvolvimento de uma economia insustentável, na qual o beneficiado maior não é comunidade local onde está a material prima, a mão de obra e a sabedoria. É interessante notar porque o ecomuseu e os museus comunitários também são um ponto detensãocom o modelo de economia e de desenvolvimento vigentes tanto no Brasil quanto na Europa e Estados Unidos. Embora Hugues de Varine não faça essa reflexão aqui, seu balanço também a ajuda a dialogar com o conceito de desenvolvimento com foco no local presente nos ecomuseus do Rio de Janeiro. Assim, pontua Hugues de Varine:

Para mim, o que representa hoje o conceito de ecomuseu, em termos de serviço ao desenvolvimento local? Se eu tentar fazer uma síntese de tudo o que vi e ouvi nos últimos trinta anos, em matéria de nova museologia e de ecomuseologia, esta parece refletir várias ideias complementares:

- Sua matéria primordial é o patrimônio global de uma comunidade ou de um território, fora de toda noção restritiva de coleção constituída, apropriada, inalienável.

- Seu quadro é territorial, não estando limitado a um ou a vários edifícios especializados.

- Sua criação toma a forma de um progresso longo e lento, multiforme, que acompanha o desenvolvimento, no mesmo ritmo que este.

- A participação dos membros da comunidade ou das comunidades é permanente, instrumental e operacional, o que significa que são os atores locais que decidem o que é bom para eles e que participam na realização, de acordo com modalidades variadas.

- Ele é uma fonte de educação popular, de transmissão cultural, de abertura para o mundo e para as outras culturas.

- A pesquisa e a conservação são um meio de ação, e não um fim em si mesmo, ou obrigações e funções.

Enfim, e principalmente, não há modelo, não há regra. Esses museus, ou ecomuseus, são todos diferentes uns dos outros, não somente pela natureza de seu patrimônio e de sua comunidade, mas pela história de seu processo. É assim absurdo querer submetê-los a normas e a etiquetas e pretender impor-lhes equipes ‘funcionarizadas’.

Esta é a razão para que eu me pergunte frequentemente, muito seriamente, se serão mesmo ‘museus’ ou se não é preciso fazer como ospromotores do Maestrazgo e da Quarta Colônia, e lhes dar outros nomes, para não agravar a confusão.” (Varine, 2012b, p. 183, 184)

Museologia do Afeto

Georges Rivière, que também participou da construção do conceito “Ecomuseu” na França criou o conceito de definição evolutiva para o Ecomuseu. Ele também enfantiza a dinâmica local, mesmo que isso seja diferente dos Ecomuseus nas comunidades do Rio de Janeiro. O foco no local nos ecomuseus e Museus Comunitários nas comunidades cariocas está em constantetensãocom os modelos de desenvolvimento, urbanização e expansão conduzidos já há muitos anos pelos governos, instituições e empresas interessadas na exploração dessas áreas. Observe a ênfase dada por Georges Rivière:

O ecomuseu é o espelho no qual a população local se revê para descobrir sua própria imagem, no qual procura uma explicação do território, ao qual está ligada e das populações que lhe precederam, vistas como circunstâncias no tempo ou em termos de continuidades das gerações. Ele é um espelho no qual a população local mostra aos seus visitantes para que seja melhor entendida e para que a sua indústria, costumes e identidade possam inspirar respeito.” (Riviére, 1985, p. 182)

Na sequencia da definição de Georges Rivière é possível perceber a dimensão mais racional, acadêmica e institucional que permeia sua abordagem. Nesse ponto, há uma diferença de ponto de partida (locus)da forma de compreender Ecomuseu na Europa para a forma de compreender e viver a experiência de ecomuseus e Museus Comunitários no Brasil. Se aceitarmos que a preservação e produção da memória e a relação de apropriação com o território na favela é anterior ao próprio conceito de Ecomuseu, é possível também afirmar que o ponte de partida do Ecomuseu e dos Museus Comunitários é a liberdade de ser a própria memória, a história e o movimento de preservação. O processo educativo é, primeiro, não-formal, é de sobrevivência. Assim foi com o samba no morro e as festas de jongo na Serrinha e em outros lugares. A possibilidade do uso na reflexão da educação formal chega em segundo plano. Essa diferença pode ser vista na definição de Georges Rivière no ambiente da França.

O ecomuseu é uma interpretação do espaço – de lugares especiais onde se para e se passeia. Ele é um laboratório tanto quanto contribui para estudo do passado e do presente da população em questão e de seu meio e promove o treinamento de especialistas nestas áreas em cooperação com instituições de pesquisas externas.

Ele é um centro de convenção, ao mesmo tempo que ajuda a preservar e desenvolver a herança cultural e natural da população.

Ele é uma escola, na medida que envolve a população no seu trabalho de estudo e proteção e encoraja a ter mais clara compreensão do seu próprio futuro.

Esse laboratório, centro de conservação e escola são baseados em princípios comuns. A cultura, em nome da qual eles existem, deve ser compreendida no seu sentido mais amplo, e preocupa-se em fomentar a consciência da sua dignidade e as manifestações artísticas, independente do estrato da população que lhes deu origem. A diversidade é ilimitada uma vez que os seus elementos são tão variados. Esta tríade não é, por conseguinte, fechada sobre si: dá e recebe.” (Riviére, 1985, p. 182).

 

Exposição em diálogo da favela com a África no Ecomuseu Nega Vilma, Sta. Marta.

 

Museologia Social

Mesmo com as diferenças, percebo que a tensão nas definições se dá exatamente porque o Ecomuseu reflete a realidade do local onde está inserido. Esse fato revela uma grande riqueza de possibilidades e práticas que podem ser trocadas para atender necessidades comuns, dentre elas, a necessidade da autossustentabilidade financeira para sustentar projetos locais que não são interessantes para os grupos que disputam o poder da memória e da permanência das comunidades nessas áreas. Enquanto se manter o paradigma de sociedade e de economia como temos hoje, a busca pela viabilidade econômica deveria ter certa prioridade nos Ecomuseus e nos museus comunitários. Nesse ponto, minha interpretação sobre o Ecomuseu se difere de muitos especialistas na área. Seria necessário transitar para outros paradigmas que não fossem ONGs, mas para outra qualificação que despertasse a criatividade para criar serviços e produtos com foco na economia local para manutenção dos espaços, produção de conteúdo e o pagamento de colaboradores que, em muitos casos, são voluntários. Esse é um desafio que percebo a fim de que o Ecomuseu e os Museus Comunitários realmente consigam também se inserirem nos espaços tradicionais de poder na cidade.   ATensão precisa também ser feita do lado de fora da favela, sobretudo, para provocar aTensão nos centros acadêmicos, nas discussões do governo e nos locais na cidade onde grandes decisões são tomadas. O trabalho de Peter Davis mostra alguns fios condutores entre os ecomuseus de várias partes do mundo.

“A ideologia capturada pela palavra “ecomuseu” tem provado ser um catalisador de ações em uma variedade de situações geográficas e sociológicas. Nos bairros do Rio e na cidade do México, nas favelas de Dakar, nos subúrbios de Montreal e Paris; antigos centros industriais da França e da Suécia, em zonas rurais em declínio na Itália, Espanha e Canadá, em aldeias étnicas afastadas na China; os ecomuseus têm provado ser um conceito flexível que tem trazido de volta orgulho e energia dentro das comunidades. Identidades culturais têm sido reestabelecidas e usadas para promover economias locais. Essas mudanças têm sido alcançadas através da firme convicção de que um museu pode ser o que a comunidade quer que ele seja, um museu sem paredes e barreiras em todos os sentidos.” (Davis, 2011, p. 289)

MINOM (Movimento Internacional para uma Nova Museologia)

Os ecomuseus no Brasil são representações genuínas, no contexto local, de outro modelo de organização da sociedade com protagonistas locais, participação comunitária, presença de pesquisadores, diálogo com a sociedade, luta pelo direito à memória e todas as qualidades que já citamos. Do ponto de vista datensãoe do diálogo com o modelo de sociedade focado na disputa e não na cooperação, os ecomuseus e museus comunitários oferecem outras possibilidades de vivência. Tenho defendido que uma das representações atuais da grandeTensão de Mudançaque a sociedade em todo mundo terá que enfrentar. O modelo que explora a matéria prima das comunidades locais, no qual 10% dos mais afortunado ficam com 80 ou 90% do lucro, acaba por comprometer a capacidade da comunidade local de produzir mais e mais produtos; isso porque a comunidade local acaba não se beneficiando da riqueza que ela gerou. A lógica do Ecomuseu provoca uma grande Tensão com esse modelo de crescimento de sociedade e não serve apenas para o Brasil, mas para o o mundo todo. É uma crise de paradigma, crise de sociedade.Os ecomuseus e, por conseguinte, a Ecomuseologia, são o questionamento da lógica de desenvolvimento vigente, onde o lucro com a riqueza da biodiversidade local é destinado para fora, isto é, administrado na lógica do acúmulo individualista que sobrepõe o suprimento das necessidades básicas do contexto local. Com ênfase no território, no desenvolvimento local, na valorização da memória local e da população local, os ecomuseus e museus comunitários serão a presença questionadora e incômoda que busca outra lógica de organização da sociedade dentro das cidades. Eles são a presença visível datensão de sentidoque marca de forma radical o esgotamento profundo do paradigma de sociedade gestado pela Modernidade nos últimos séculos.

Nessa zona de conflitos permanentes, que é o ambiente das favelas no Rio de Janeiro, os ecomuseus e Museus Comunitários são lugares que não negam os problemas e os conflitos, pelo contrário, ele os reelabora como parte do processo de resistência que produz resiliência nas tensões internas e externas. Se partirmos do pressuposto que temos mais de 800 favelas no Rio de Janeiro e que isso configura a grande força de movimento de toda cidade, um dia alguém irá perceber onde realmente está o poder que faz a cidade girar. Nesse dia, quem sabe, junto com os outras instituições que trabalham para o protagonismo da comunidade local, o Ecomuseu possa ser um catalizador para possibilitar que todas as instituições das favelas se unam para preparar e colocar seus representantes nos lugares de poder na cidade onde a Tensão,ao longo da história, tem beneficiado as organizações que não reconhecem os direitos das favelas e das comunidades.

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Velloso, Mônica. (2003). As tias baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. In Süssekind, F.; Dias, T. & Azevedo, C.Vozes femininas: gêneros, mediações e práticas da escrita.(1ª ed., pp. 92-121). Rio de Janeiro: 7Letras, Fundação Casa Rui Barbosa.

Dell Delambre, PhD. (WTS Coach, Professor Universitário, Pós-Doutor em História, UFRJ. Estudou na FABAT, PUC-Rio, Universidade de Tübingen, Alemanha; Universidade Lusófona, Portugal. É o criador do conceito “Sustentabilidade Inteira” e da “Teoria da Tensão de Sentido”. Junto com moradores, a presidente do Ecomuseu Amigos do Rio Joana, Rosângela Tertuliano, e a jornalista atriz Ariane Viegas, organizaram a criação da exposição de Memória e Sustentabilidade, “No Tempo que Vovó Andava no Andaraí.”

 

1 Se fosse falar com linguagem acadêmica, diria que uma das diferenças entre o Ecomuseu/Museu Comunitário e o Museu Tradicional está no ponto de partida, isto é, “no locus museológico”, que definirá a diferença de método que, por sua vez, terá uma diferença nas escolhas dos assuntos e temas, que terá uma diferença nos conteúdos que terão prioridade na vida do Museu. Sendo assim, a vida orgânica ou inorgânica desses museus serão diferentes e, portanto, as conclusões e os resultados práticos para manutenção do status quo da cidade ou para provocar a mudança e democratizar as oportunidades.