Reflexões antropológicas sobre infraestruturas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 22h06min de 15 de abril de 2024 por Jade Novaes (discussão | contribs) (O presente texto pretende expor três perspectivas antropológicas a respeito da cidade, seus fluxos, contrafluxos, imaginários, infraestruturas e disputas a partir de análises e reflexões sobre o urbano dos autores Valladares (2000), Cortado (2021), Larkin (2020))
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O presente texto pretende expor três perspectivas antropológicas a respeito da cidade, seus fluxos, contrafluxos, imaginários, infraestruturas e disputas a partir de análises e reflexões sobre o urbano dos autores Valladares (2000), Cortado (2021), Larkin (2020).

A partir de uma perspectiva histórica a autora Valladares apresenta uma análise com variadas referências, diante de artigos de jornais, documentos variados, sendo alguns oficiais do município do Rio de Janeiro, depoimentos e ações governamentais, sobre a categoria favela, sobre a construção das representações sociais da favela no plano simbólico. A autora apresenta uma parte da história do centro urbano sobre as favelas que se relacionam com a construção do imaginário social da categoria, expondo como pobreza, epidemia, moralidades, racismos determinaram parte do plano simbólico sobre a categoria favela.

Em uma análise dos processos históricos das estruturas e infraestruturas da cidade, Valladares apresenta como diferentes conceitos e categorias vão se formulando, assim como apresenta os diferentes saberes que os compunha; um deles se dá na estética, no urbanismo e nas intervenções para um ideal de cidade e representação. Outro se deu no processo e perspectiva dos saberes médicos, aos ideais sanitários, que se alinhavam ao racismo estrutural de um Estado recém república, no qual o imaginário de cortiços se dava na lepra social, na sua construção como contaminação, inclusive moral. Nesse sentido, a autora coloca como foi uma construção processual, dada por diferentes segmentos e saberes. Assim a autora joga sobre as formulações antes da institucionalização das ciências sociais, antes de determinações sobre o censo, antes de uma perspectiva que se olhava para o morador daquele espaço.

Os acontecimentos urbanísticos definiram, ou ao menos colocaram certos questionamentos sobre aspectos da favela, foi no contexto de reformas que se deu a necessidade de saber-se mais sobre o que se continha no território, para além de um número de casas. Isso definiu também como se interagia e como se expurgaria a lepra social, no caso, as remoções e intervenções no espaço, no fluxo da vida, no cotidiano daquelas pessoas. As modificações eram tratadas no aspecto civilizatório, assim como as marcas que formulam a categoria favela são tratadas como não civilizados, trazendo as classificações políticas atreladas aos estigmas e as formas de identidade, de reconhecimento de si e de lugar. Assim, a favela foi se construindo e consolidando no imaginário social diante dos acontecimentos também estruturais na cidade carioca. O autor Thomas Cortado (2021) apresenta os aspectos e dimensões de uma antropologia urbana a partir das infraestruturas que embebem o cotidiano, expondo sobre a estratificação social da urbanização que determina afastamentos e invisibilidades. Nesse sentido, Cortado parte do ponto de vista da casa, de seu aspecto emocional, físico e afetivo, marcado em um sujeito, atravessado pelo social e seu imaginário, como apresentados pelas perspectivas de Valladares.

Ao olhar de Larkin (2020) as infraestruturas podem ser tratadas como materialidades definidas por aspectos e anseios políticos, atreladas aos desejos e emoções. A infraestrutura seria algo categórico, construído, que se dá como um aparato de governamentalidade (Larkin apud Foucault 2010 70). O autor esmiúça como o cotidiano é definido nas possibilidades de uma infraestrutura que é também definida na política. Em sua análise, passeia pelas definições de infraestrutura no campo das ciências sociais mostrando como a forma da infraestrutura, como à exemplo os canos de água e fios de luz, se imbricam nas diferentes formas de pertencimento à cidade. Sendo assim, as mobilidades, os reconhecimentos e as legitimidades dos sujeitos enquanto detentores de direitos passam pelos aspectos das infraestruturas disponíveis ao bem estar.

Larkin (2020) elabora a infraestrutura nos comprometimentos afetivos e políticos, expressando como estas são mediadoras das trocas, dos sons, dos olhares e de parte das sensações. Os lugares, os estigmas, os poderes, as possibilidades permeiam as intimidades das relações entre pessoas, coisas, trajetos, desejos. As infraestruturas organizam o cotidiano da escola. Os desejos e anseios, subjetivos e sociais, se relacionam com o aspecto político localizado nas infraestruturas, ou a faltas destas, marcando os lugares políticos dos sujeitos. Larkin aponta como as infraestruturas se misturam com ideais civilizatórios, entre lugares políticos, cotidianos, sensações e desejos. "[...] direcionamento político da infraestrutura – a maneira na qual as tecnologias passam a representar a possibilidade de ser moderno e de ter um futuro ou, por outro lado, a exclusão dessa possibilidade, resultando em uma experiência de abjeção (Archambault 2012; Ferguson 1999)." (Larkin 2020 40)

Cortado ao apresentar a perspectiva da infraestrutura, também apresenta a perspectiva dos agenciamentos, dos afetamentos mútuos, dos desejos a partir da casa simbolizada na relação com o mundo externo, sendo a rua. Assim o autor expõe como a materialidade das infraestruturas interfere nos agenciamentos e possibilidades do cotidiano, que estão emaranhados nas sensações, embebidas no neoliberalismo que determina uma forma de agir em cada lugar.

Nesse sentido os dois autores se complementam na perspectiva, tratando como estrutura, como matéria e como algo construído, processualmente, as infraestruturas mobilizam o arquétipo das promessas, dos ideais, das melhorias, do progresso, definindo o tempo gasto, o tempo de lazer e o tempo de labor de cada estrato social. Os autores Cortado e Larkin apresentam como as crises e disputas por políticas públicas determinam distribuições e acessos, produzindo as mobilidades, as alegrias, os prazeres e as frustrações. Nesse sentido gostaria de ressaltar como a perspectiva das emoções e sentimentos possibilitam um entrever das marcas produzidas pelos atravessamentos das infraestruturas, dos lugares, dos imaginários que produzem sujeitos. Nesse emaranhado, Cortado joga luz as provocações de afeto, as reações corpóreas das experiências materiais, marcada também nos comportamentos colocados por Mauss (1974) no texto “Das Técnicas Corporais” analisando os comportamentos, as performances diante das culturas, normas e ordens contextualizadas.

As análises de tais perspectivas antropológicas permite entrever parte da complexidade das relações entre infraestrutura, imaginários, poder, assim como a categoria de cidades, que no presente texto se embrenha entre a favela e o asfalto. Valladares trata da construção simbólica desses espaços antes das ciências sociais. Cortado e Larkin exploram as dimensões emocionais e políticas das infraestruturas urbanas e como essas influenciam na distribuição de recursos e acessos, moldando experiências individuais e coletivas nas favelas e além delas.


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  1. Referências: CORTADO, Thomas. Aos poucos. Agenciando pessoas, casas e ruas na periferia do Rio de Janeiro. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.01: 195 - 217, abr, 2021. LARKIN, Brian. A poética e a política da infraestrutura. Ano 24, Volume 31(2), 2020. VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo , v. 15, n. 44, p. 05-34, Oct. 2000.