Comunidade chamada Chapéu Mangueira

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 23h37min de 27 de janeiro de 2020 por Gabriel (discussão | contribs)

Autoria: Pedro Pio[1].

Mutirão para construção da creche

O Chapéu

Situado no bairro do Leme e vizinho da comunidade da Babilônia, o Chapéu Mangueira assume certas peculiaridades em sua história. Primeiramente o nome, oriundo de um fusão de características que eram bastante típicas em seu entorno. Segundo os veículos de informação locais, a escolha do nome seria decorrente de uma fábrica de chapéus que havia no momento de sua formação(território ocupado hoje pelo Leme Tênis Clube) das grandes plantações de mangas em seu espaço territorial. 

Vale ressaltar que esses veículos eram criados pelos próprios moradores, responsáveis pelo resgate de uma série de informações pertinentes para história do local. Através dos registros de jornais como "O Chapéu", criado pelo Grupo Jovem, cujo objetivo era relatar periodicamente a vida política, social e cultural do local, além de outras publicações relativas ao movimento comunitário de favela e do movimento dos trabalhadores, sabe-se não só a escolha do nome da comunidade, como também o empenho de pessoas e lideranças como Manuel Chicabom, Lúcio Lafaiete, Renèe, Marcela, Bola, Benedita da Silva, Coracy, Filhinha, que através de seu empenho, conseguiram trazer melhores condições para o entorno, como água, luz, escola e escadas.  

Outro dado, que os registros averiguam e legitimam, é a forma de como foi dado o usucapião. Segundo esse jornal, tiveram de medir por sete vezes a área de cada morador, visto que muitos não respeitavam os limites estipulados pela associação. Já o funcionamento da escola veio da construção de um simples barraco de madeira, gerido por Dona Marcela e Benedita da Silva, que aí lecionaram por 13 anos, tendo, anos mais tarde, o convênio com o Município do Rio de Janeiro, que forneceu professores e merenda.

Os registros também confirmam que o Grupo de Saúde, formado em 1983, reuniu moradores que, sem recursos financeiros, colocaram anúncios pedindo doações, fizeram festas e conseguiram recursos do exterior, de modo que dessem assistência aos moradores do Chapéu e da Babilônia. O Posto Médico é, hoje, mantido pelo INSS e continua sob a responsabilidade do Grupo de Saúde e da Associação de Moradores.

Em ralação à luz, houve um período em que a cobrança era diretamente ligada à Associação. Era uma comissão responsável pela cobrança dos gastos de luz de cada morador e sócio proprietário. A Light fazia a cobrança através de um medidor único para toda a comunidade, sendo que a Associação era responsável pelos relógios dos moradores. Só tinha relógio quem era sócio proprietário e só eram proprietários aqueles que a associação permitisse ou quem comprasse uma posse na comunidade.

Aliás, são as informações locais que não só permitiram a descoberta do nome dessa comunidade, como também a organização de seus moradores. Através da união destes, a associação pode ser construída e, assim, direitos reivindicados e obrigações cumpridas.

Hoje, de acordo com o Relatório Múltiplos de Assentamentos do Instituto Pereira Passos, a comunidade assume as seguintes características: a data de cadastramento é de 23 de julho de 1981; seu acesso principal é pela Rua Gustavo Sampaio; o nome oficial é ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DO CHAPÉU MANGUEIRA e seu endereço é Ladeira Ary Barroso, 66, fundos, Leme. O atual planejamento urbano foi feito pelo Programa de Urbanização e Regularização Bairrinho.

Gibeon, que já foi presidente da Associação e também realizou trabalho acadêmico, mostrando a função social dos arquivos de comunidades faveladas pela Escola de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNI-RIO, descobriu, graças a uma vasta pesquisa, que as primeiras associações de moradores, bem como as associações de luz, advém do final da década de 50, de modo que essas se tornassem uma alternativa para que a população se fixasse como posseiros.

Antes da fundação da Associação de Amigos do Chapéu Mangueira, a comunidade era praticamente administrada pelo Exército. Segundo os antigos moradores, qualquer problema que acontecia nessa área, o Comando do PO(Posto de Observação), no alto do Morro da Babilônia, mandava uma escolta. Algumas construções de barracos eram permitidas, como também destruídas, de acordo com a sua conveniência. A Lei Leão Xlll era rigorosamente exigida pelo Tenente, autoridade maior do PO. Havia os parceiros que atuavam como ponto de equilíbrio: a associação de Amigos do Leme e a Igreja que através da Ação Social Dominicana, assistia a comunidade. Constituída de Padres da Ala Progressiva da Igreja, a Ação Social encarregou a Sra Renèe de Lòrme de ajudar na organização do Chapéu Mangueira. Alguns nomes da Igreja, porém, foram juntamente com Dona Renèe, decisivos na organização da comunidade. Alguns deles: Dom Helder Barros Câmara, Frei João Cherry e Frei Marcos.

Crianças ajudam na construção do Galpão de Artes (Acervo NECC)

No início da década de 60, é fundada a Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara(FAFEG), hoje Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro(FAFERJ). Por estímulo do Governo Militar, para manter os moradores sob controle, muitas outras associações de favelas foram criadas.

Todavia, tal estímulo permitiu que essas instituições se organizassem cada vez mais, assumindo sua própria identidade e logo acrescentando representatividade diante da soberania militar. Com o passar do tempo, as atividades dessas Associações foram evoluindo e elas, em sua maioria, passaram atuar, muitas vezes, no lugar do Estado. Além da função inicial de organizar os moradores pela condição de moradia, elas passaram a tratar de educação, saúde, segurança, esporte, lazer e cultura.

Assim, de acordo com os registros de Gibeon, foi preciso toda uma trajetória para que as associações se tornassem legais de fato. Surgem os primeiros documentos, como as Atas de Fundação, Estatuto, Livros de Atas, Livro-Caixa, Livro-Diário, Publicações no Diário Oficial, registro das reuniões por fotografia, entre outros. Dá-se a união dos indivíduos, as parcerias, sobretudo com organizações não governamentais(ONG) brasileiras, definidas como “faveleiras”, além de outras organizações estrangeiras. Há um período de maior autonomia das comunidades, principalmente daquelas situadas na zona sul do município do Rio de Janeiro.

Assim, a documentação da Comunidade do Chapéu Mangueira começou a ser criada no incício dos anos 50, dez anos antes da fundação da Associação de Moradores. Já nesse período, essa acumulação se iniciou de uma forma centralizada, uma vez que Dona Reneé de Lòrme, que ocupava uma função que misturava assistência social e enfermagem, de nacionalidade francesa, juntamente com a ASD- Ação Social Dominicana- deu início à organização da comunidade, centralizando as atividades no Posto Médico, construído por ela e por moradores em projeto de mutirão.

Em 2002, a Associação Amigos do Chapéu Mangueira estabelece parceria com IETS(Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade) na intenção de se inserir no “Projeto Observatório Social de Favelas”, criando um vínculo com as demais comunidades. Assim, o Observatório Social do Chapéu Mangueira/Babilônia, no prédio do Posto Médico Chapéu Mangueira, teve, como objetivo, formar atores sociais locais capazes de monitorar, avaliar e formular políticas sociais e políticas públicas para sua vizinhança.

A Identidade Cultural do Chapéu Mangueira

De acordo com os registros e depoimentos de moradores antigos, constata-se que a comunidade do Chapéu Mangueira recebeu influências de pessoas vindas de várias regiões do Brasil. Segundo as fichas de inscrição de sócios da Associação, confirma-se que os primeiros a povoarem a região, entre os anos 1911 e 1912, foram famílias cujos chefes eram trabalhadores do Forte Duque de Caxias.

Percebe-se, também, que a maioria dos moradores vinha do Estado de Minas Gerais(24.8%), sendo que 98% eram de etnia negra. Somente nos anos 30 começou a ser traçado o perfil da comunidade, já havendo a mistura entre mineiros e fluminenses, como também com pernambucanos, paraibanos e capixabas, que começaram a se alojar nos anos 50. As famílias mineiras, segundo Gibeon, foram consideradas como as mais tradicionais, sendo que uma grande parte veio de cidades como Além Paraíba e Leopoldina, sendo os Ferreira, Silva, Ponciano, Souza e Santos os mais antigos, estando, em 2006, em sua quarta geração.

Nessas famílias, muitos tiveram destaque na organização da comunidade. No entanto, três personalidades tornaram-se demasiadamente relevantes para a história, diante dos trabalhos realizados: Maria Conceição Ferreira Pinto, “Dona Filhinha”, Marcilia Ferreira da Silva, “Dona Marcela” e Benedita da Silva.

Terreno em que hoje estão localizados a Associção de Moradores e a creche, 1982. (Acervo NECC)

Os cearenses são os segundos em relação à ocupação do Chapéu Mangueira, representando 18% dos moradores. Desse percentual, 90% foram classificados como brancos e 10% pardos, de origem branca ou indígena. De acordo com o trabalho de Gibeon, muitos chegaram nos anos 50, provenientes das cidades de Cariré, Sobral, Reriutaba, Guaraciaba e Santa Quitéria. Entretanto, a imigração não obedecia ao mesmo mecanismo que o dos mineiros.

Primeiro vinha o chefe de família, praticamente empregado por parentes nas atividades de cozinha, restaurantes, hotéis e obras. Após conseguir certa estabilidade, eles traziam suas famílias: os Souza, Brito, Rodrigues, Costa, Mesquita, Ferreira, Silva, Carneiro e Cosia.

Um dado que difere os cearenses dos demais está na união entre os conterrâneos. Sua união não se limitava somente no emprego, mas também no lazer e na hora de misturar suas famílias. Sua locomoção também era dada com facilidade, assim que melhoravam suas condições de vida.

Assim, segundo Gibeon, a fidelidade e a determinação do cearense com o que se propunha fazer foi muito importante para o desenvolvimento da favela, ou melhor, “das favelas”. Dentre eles, podem-se destacar os Srs. Joaquim Alves Carneiro, Macário da Silva, Vicente Bonfim, Francisco Rodrigues, Francisco Martins de Lira e a Sra. Antônia Rodrigues de Lira.

Já os Fluminenses, com 16,6%, começaram a chegar nos anos 30 de Campos, Macuco e Santa Maria Madelena. Essas grandes famílias foram bastante importantes na formação da comunidade, principalmente as famílias Medina, Oliveira e Pereira. Algumas dessas famílias também ocupam a quarta geração, assim como os tradicionais mineiros.

Os cariocas, de acordo com a pesquisa levantada por Gibeon, assumiram inicialmente um comportamento destoante dos demais. A característica mais importante é que os primeiros, que chegaram nos anos 30, só se relacionavam entre eles e com os fluminenses, havendo uma nítida relação de preconceito, mais marcada com os nordestinos.

Construção do Posto Médico, meados de 1960. (Acervo NECC)

De acordo com os dados históricos, os primeiros cariocas vieram de favelas como Rocinha, Cantagalo, Cabritos e a vizinha Babilônia, sendo que muitos não possuíam o mesmo comprometimento que os demais possuíam com a comunidade, Logo, na culinária e na música, os cariocas juntamente com os mineiros, predominavam. “O feijão era o preto, o peixe era o frito. O samba, o chorinho e o jongo eram o que se ouvia. Futebol e natação eram os esportes praticados. Dessas famílias, podemos destacar: André, Teixeira, Samuel, Santos e Souza e os Muniz”.

Ainda assim, a participação de nomes cariocas na formação da comunidade foi pouca. Daqueles que participaram, destacam-se a Sra. Regina Riboredo, que é descendente da Família Ferreira de Além Paraíba, Minas, foi o Chefe do Grupo de Lobinhos e duas vezes presidente da Associação, e Jaime Muniz, cuja família se implantou na comunidade em 1945, ainda que só tenha vindo morar no Chapéu Mangueira nos anos 80, já participando como diretor da FAFERJ e da Associação e sndo presidente desta de 1992 a 1995.

Outros estados do nordeste brasileiro contribuíram para a formação do perfil cultural do Chapéu Mangueira. Após os cearenses, foram os paraibanos que tiveram uma maior percentagem: 5% entre os nordestinos; seguido de Pernambuco, com 2,8%; Alagoas, com 2,4%; Bahia com 1% e Maranhão, Amazonas e Sergipe, com 0,35%.

Os capixabas também tiveram sua contribuição. Uma quantidade considerável de famílias veio do Estado do Espírito Santo, 4,7%. Sua participação foi tímida, tanto que o único destaque é o fato da formação da família Jesus com a família fluminense dos Medina.

Em relação à constituição étnica da comunidade, 31,7% da população são declarados como pardos, tendo percentual igual para negros, e 36,6% para brancos. Sobre os esportes praticados, as fichas da associação confirmam a prática de futebol, sinalizado apenas para os homens, da natação, do boxe e do judô. Entretanto, é desconhecido se evangélicos praticavam ou não esportes.

Nos registros iniciais da comunidade, confirma-se que a religião era dividida da seguinte forma: 91,17% de católicos e 2,83% de evangélicos. Porém, vale ressaltar que, pelo fato de a Igreja Católica ter uma participação forte na organização da comunidade e de os líderes da favela terem uma forte relação com essa igreja, alguns evangélicos se declaravam católicos para evitar a repreensão por causa do preconceito existente.

Quem foi o primeiro morador do Chapéu Mangueira?

Não se sabe ao certo sobre a data exata da ocupação da área que hoje compete ao Chapéu Mangueira. Entretanto, registros indicam que, no ano de 1911, morava o cidadão José Teixeira, pai do Sr. José Carlos Teixeira(que foi um dos diretores da Associação de Moradores) e que sempre morou na Rua Doutor Vitorino. Tais registros podem confirmar não só as datas, como também as práticas culturais e os ritmos musicais ouvidos na época. Bolero, chorinho, sambas, partido alto, jongo, folia de reis, coco, ciranda, pontos de macumba, entre outros. Segundo Gibeon, grande parte dos moradores antigos do Chapéu sentem saudade do conjunto de chorinho do “Tio Natalino” e do “Tio Mário”, dos irmãos André, das Folias de Reis do seu Gerson, irmão de dona Marcela, das macumbas no terreiro do “Tio Laninho”.

Associação de Moradores vista de cima do Galpão de Artes, início da década de 1990. (Acervo NECC).png

Hoje, o Chapéu Mangueira tem aproximadamente 1200 habitantes e 235 imóveis, sendo 7 públicos: o Centro Sócio-Cultural-Esportivo Chapéu Mangueira, o Posto Médico, o Galpão de Artes e a Creche, administrados pela Associação; a escola infantil, administrada pela Prefeitura; a capela, administrada pelo Grupo das Carismáticas da Comunidade e a Congregação da Assembleia de Deus, administrada pelo Pastor da Igreja Assembleia de Deus do Leblon. Algumas das 228 casas foram desmembradas: algumas para comportar a família que cresceu e outras para o aluguel de cômodos, com objetivo de aumentar a renda familiar. Esses 228 casas, mais os imóveis públicos, estão distribuídos em 24 ruas, com nomes das pessoas consideradas Benfeitores da Comunidade. Em princípio, todos os donos de posses, e chefes de família são sócio-proprietários, e os sócios sem posses são contribuintes. Todos os imóveis têm água, luz e esgoto.

 

 

  1. Cientista Social, Jornalista e Professor de História, Memória e Oralidade do Projeto Guardiões da Memória.