Anthony e Elizabeth Leeds (pesquisadores)
Autora: Rachel Viana (doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e professora da rede estadual do RJ)
Anthony (1925-1989) e Elizabeth Leeds (1942) são dois cientistas sociais estadunidenses que se dedicaram, entre outros temas, ao estudo dos squatter settlements (ou assentamentos não controlados) na América Latina, com ênfase nas favelas do Rio de Janeiro, onde estabeleceram residência durante a segunda metade da década de 1960. São autores da obra A sociologia do Brasil urbano, coletânea de artigos publicados ao longo das décadas de 1960 e 1970. A obra, editada e publicada em 1978 por iniciativa de Gilberto Velho, ex aluno de Anthony Leeds, é, ainda hoje, referência para aqueles que se dedicam aos estudos urbanos no Brasil e na América Latina. Resultante das pesquisas realizadas pelo casal nas favelas e outras formas de squatter settlements da América Latina ao longo da década de 1960, a obra ganhou nova edição ampliada em 2015, com organização de Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima, contando com apresentação de Luiz Antônio Machado da Silva e um caderno de imagens. Atualmente, parte do acervo do casal, referente às favelas, encontra-se no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz.
Anthony Leeds, além integrar os quadros das Universidades do Texas (1963 a 1972) e de Boston (1972 a 1989), também regeu o primeiro curso de antropologia urbana em nível de pós graduação no Brasil, no Museu Nacional, em 1969. Desta turma, foram seus alunos Gilberto Velho, Yvonne Maggie, Paul Silberstein, Luiz Antônio Machado da Silva, entre outros.
Tendo trabalhado no Centro de Estudos Internacionais do Massachussets Institute of Technology e na Fundação Ford, Elizabeth Leeds é, atualmente, senior fellow do WOLA - Washington Office on Latin America, pesquisadora associada do CIS/MIT, além de co-fundadora e presidente de honra do FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Durante a década de 1970, pesquisou emigração em Portugal sob o ponto de vista dos donos de fábricas e do governo do país. Na década de 1980, dedicou-se ao estudo das associações de moradores de favelas após a redemocratização do Brasil e, na década seguinte, aos direitos humanos e segurança pública no Brasil. Entre outras publicações, é também autora do estudo intitulado Cocaína e poderes paralelos: na periferia urbana brasileira: ameaças à democratização em nível local, publicado originalmente na revista Latin American Research Review (1996) e posteriormente na coletânea Um século de favela (1998), organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito.
Origens e formação
Nascido em 1925 em Nova York, Anthony Leeds passou parte de sua infância na Europa, onde sua família tinha raízes. De origem judaica, sua família era ligada às artes e aos movimentos sociais de cunho progressista. Sua mãe, Polly Leeds, era atriz e tradutora, tendo estudado psicanálise em Viena entre os anos de 1929 e 1933, no Vienna Psychoanalytic Society, fundada por Freud. Seu pai, Arthur Leeds, falecido em 1929, era advogado e integrante da ACLU – American Civil Liberties Union. Ambos simpatizavam com as experiências socialistas vivenciadas na URSS e em Cuba, bem como com o USPC – United States Comunist Party. Em seu texto autobiográfico não publicado, Anthony Leeds narra o interrogatório pelo qual passou em 1961, quando pleiteava uma vaga na OEA. Perguntavam sobre a participação de sua família no partido comunista e no partido dos trabalhadores, predecessor do primeiro e no qual Arthur Leeds atuou quando ainda não era proibido (Viana, 2019; Leeds, 1984).
Fez toda a sua formação em antropologia na Universidade de Columbia, entre 1947 e 1957, cujas linhas mestras da grade curricular eram compostas pela linguística, antropologia física, arqueologia e etnologia – o assim chamado “sagrado pacote da antropologia”. Neste período, participou de grupos de estudos marxistas e teve como colegas Marvin Harris, Eric Wolf e Marshall Sahlins. Mesmo sendo Columbia o reduto da escola boasiana, ou culturalista, durante seus anos de formação, Anthony Leeds e seus colegas deram ênfase a abordagem da teoria geral dos sistemas, do neoevolucionismo e da ecologia humana, tendo como um de seus interlocutores Karl Polanyi (Viana, 2019; Viana, 2014; Sieber, 1994).
Em 1948, casou-se com a artista plástica Jo Alice Lowrey, com quem teve seus três primeiros filhos - Madeleine, John e Anne Leeds - e com quem morou no estado da Bahia, onde fez seu trabalho de campo para a pesquisa de seu doutoramento. Concluiu o doutorado em 1957, com a tese Economic Cycles in Brazil: the persistence of a cultural patterns: cacao and other cases, um estudo de comunidade no qual analisa e compara a produção de commodities no estado, uma vez que outros colegas de doutorado também fazia estudos da mesma natureza. Orientado por Charles Wagley e com influência de cientistas sociais brasileiros, sobretudo Thales de Azevedo (Leeds, 1970), a tese fez parte dos estudos de comunidade encomendados por Anísio Texeira, voltados para o desenvolvimento regional do estado da Bahia. Nesta ocasião, A. Leeds faz seu primeiro trabalho de campo no Brasil, entre 1951 e 1952, na cidade de Uruçuca (Sieber, 1994; Viana, 2014; Lima e Viana, 2018; Viana, 2019).
Após seu doutoramento, entre 1957 e 1958, estudou a horticultura dos Yaruro da Venezuela e, entre 1961 e 1963, tornou-se chefe de estudos urbanos da PAU – Pan American Union. Neste período, veio pela segunda vez ao Brasil, entrou em contato com o CLAPCS – Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, onde conhece alguns de seus profissionais, como José Arthur Rios, Carlos Alberto de Medina e Manuel Diegues Jr. Da interação entre a PAU e a CLAPCS resulta o seminário Cities, Classes and the Social Order, bem como o Four Cities Studies, um estudo urbano comparado de quatro grandes cidades latinoamericanas, a saber, Buenos Aires, Santiago do Chile, Montevidéu e Rio de Janeiro. Na ocasião, pôde realizar o trabalho de campo que resultaria no artigo Carreiras brasileiras e estrutura social: um estudo de caso e um modelo, apresentado originalmente em 1962 na Sociedade Antropológica de Washington, DC. Por sugestão de seu colega Bertrand Hutchinson, interessa-se em analisar o fenômeno do cabide entre o proletariado urbano, ao mesmo tempo em que Anísio Teixeira o leva para uma favela pela primeira vez[1] (Sieber, 1994; Viana, 2014; Lima e Viana, 2018; Viana, 2019).
No ano seguinte, integra os quadros da Universidade do Texas, onde lecionou cursos de antropologia e sobre o Brasil e América Latina. Nesse período, deu cursos de treinamento para os voluntários do Peace Corps Volunteers, agência de cooperação técnica criada por Kennedy em 1961, que envia jovens estadunidenses aos países empobrecidos para realizar atividades promotoras de desenvolvimento, tais como programas de saúde e ensino de língua estrangeira (Azevedo, 2007). Em agosto de 1965, vai para o Rio de Janeiro realizar trabalho de campo para sua pesquisa sobre os squatter settlements (Viana, 2014; Viana, 2019).
Elizabeth Leeds nasceu em 1942 no estado de Massachussets – EUA. Influenciada por seu pai, Abe [Abraham] Plotkin, jornalista do Boston Globe, Elizabeth Plotkin formou-se em Ciência Política pela Universidade de Boston em 1964. Sua mãe, Minna, era dona de casa até o período em que suas filhas ingressaram na faculdade, na década de 1960, tendo posteriormente atuado com agentes de saúde em áreas empobrecidas de Boston (Lima, 2011). Em relação a sua formação, destaca-se o viés etnocêntrico impresso no curso de ciência política, dada pela separação entre American Politics e Compared Politics, esta designando a política do resto do mundo. Após a trágica morte de John Kennedy, já formada, E. Leeds decide ingressar no Peace Corps Volunteers para um país latinoamericano, dado que tinha um bom conhecimento da língua hispânica. Após recusar prestar serviço na Etiópia, aceita ir ao Brasil, única opção latinoamericana disponível naquele momento (Lima e Viana, 2018; Viana, 2019). A agência já atuava na região Nordeste desse país desde 1961 e, no ano de 1963, foi firmado um convênio com o estado da Guanabara para executar programas de saúde e de desenvolvimento de comunidade nas favelas (Azevedo, 2007). Apesar de ter feito o curso preparatório no Experiment in International Living, em um programa intitulado Saúde Pública e Desenvolvimento, antes de viajar ao Brasil, tinha pouco conhecimento sobre o país, menos ainda sobre a complexidade de uma favela. Em seus relatos, afirma que a única referência que os jovens voluntários tinham sobre as favelas era o romance Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus (Lima, 2011; Lima e Viana, 2018; Viana, 2019).
O período de 1965 a 1969: as favelas como ponto de encontro dos Leeds e semente da antropologia urbana no Brasil
Por ocasião do serviço no Peace Corps, Elizabeth Plotkin estabeleceu residência no Tuiuti em janeiro de 1965. Ali, atuou em programas de saúde, aplicando vacinas, visitando moradores e dando aulas de língua estrangeira para estudantes da então Universidade do Distrito Federal. Anthony Leeds, através de contatos com os executivos do Peace Corps, consegue estabelecer moradia na mesma favela, onde chegou em agosto do mesmo ano. Desse modo conheceram-se e, dois anos depois, casaram-se. Neste ínterim, iniciaram as pesquisas nas favelas do Rio de Janeiro junto com os jovens voluntários do Peace Corps, moradores de favelas, pesquisadores brasileiros e estadunidenses. Além do Tuiuti, os Leeds realizaram trabalhos de campo em Ruth Ferreira, Barreira do Vasco, Nova Brasília, Brás de Pina, entre outras. No entanto, a favela do Jacarezinho foi o local privilegiado das pesquisas dos Leeds, onde fizeram trabalhos de campo entre 1966 e 1968, e onde residiram em 1967, sempre no período do verão do hemisfério norte.
Nesta década de 1960, os Leeds estabeleceram uma rede científica no qual seus membros dedicavam-se aos estudos dos squatter settlements no Brasil e na América Latina. O termo squatter settlement, ou assentamentos não controlados, era usado pelos Leeds para designar aglomerações de casas construídas sem autorização, sem planejamento em áreas cuja posse não era definida e desprovidas de melhorias urbanas como água, luz e esgoto. Nesta categoria sociológica estavam incluídos favelas, barriadas, slums, vencidades, bidonviles, entre outros tipos de habitações de baixa renda (Viana, 2014).
Nesta rede científica voltada para os squatter settlements, inseriram-se voluntários do Peace Corps, tais como Jim Wygand, Nancy Smith [Naro], Charles O'Neil, Judy Hoenack, Paul Silberstein e David Morocco, bem como intelectuais estadunidenses, como Peggy Rockefeller, Virginia Lampe e Janice Perlman, e pesquisadores brasileiros, tais como Lícia do Prado Valladares, Luiz Antônio Machado da Silva, Maria Laís Pereira da Silva, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Helio Modesto, bem como alguns moradores das favelas como Flávio Romano, morador do Jacarezinho, e Cecília, moradora de Nova Brasília.
Logo após seu casamento com Anthony Leeds, Elizabeth ingressou no mestrado em política da Universidade do Texas, em 1967. Sua tese de mestrado, defendida em 1974, teve como um de seus orientadores Alejandro Portes, um dos cientistas sociais que discordava da literatura dominante que apontava as habitações de baixa renda como problemas urbanos. Durante os anos de pesquisa de campo nas favelas, Elizabeth Leeds também colaborou com John Turner, em 1966, em seu trabalho de campo nas barriadas de Lima, no Peru. Desta experiência de campo, os Leeds fizeram uma comparação entre estes dois tipos de habitação de baixa renda, do qual resultou no estudo intitulado O Brasil e o mito da ruralidade urbana: experiência urbana, trabalho e valores nas 'áreas invadidas' do Rio de Janeiro e de Lima, integrante da obra A sociologia do Brasil urbano. Ao mesmo tempo em que se dedicava a sua pesquisa para o mestrado, Elizabeth Leeds colaborava com a pesquisa de Anthony Leeds sobre formação de capital nas favelas, elaborando e testando questionários quantitativos. Sua tese de mestrado, intitulada Forms of 'squatment' political organization: the politics of control in Brazil, deu origem ao capítulo Favelas e comunidade política: a continuidade da estrutura de controle social, publicado em colaboração com A. Leeds, componente do livro A sociologia do Brasil urbano. Somada às tarefas impostas pela pesquisa de mestrado – trabalho de campo, sistematização e análise de dados – Elizabeth Leeds também se encarregava dos cuidados com os filhos Jeremy e Jared Leeds, nascidos neste período.
Em 1968, Anthony Leeds realizou uma pesquisa para o CENPHA – Centro Nacional de Pesquisas Habitacionais, órgão ligado ao BNH – Banco Nacional de Habitação, após convite de sua então diretora, Josephina Albano. Tendo como objeto a formação de capital nas favelas, foi pensada para ser realizada de modo comparativo, incluindo favelas no Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Recife e Belém (Viana, 2014). Ainda que a pesquisa não pudesse ser realizada tal como fora desenhada, devido a empecilhos no repasse de recursos financeiros, e restrito a dados de somente quatro favelas do Rio de Janeiro, A. Leeds conseguiu entregar o relatório final. Desta pesquisa, Anthony Leeds pôde calcular o volume de capitais circulantes nas favelas, cuja análise de seus resultados parciais se encontra na comunicação feita em agosto de 1968 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, intitulada Quanto vale uma favela (Viana, 2014; Cavalcanti, 2018; Leeds, 2018). Este estudo foi publicado em 2018 na revista Sociologia e Antropologia, em dossiê temático sobre o autor (Leeds, 2018; Cavalcanti, 2018). Em 1969, Anthony Leeds leciona no que seria o primeiro curso de pós graduação em antropologia urbana no Brasil, no Museu Nacional. Neste ano, ao lecionar as disciplinas Antropologia Urbana e Ecologia Humana, tem como alguns de seus alunos, Gilberto Velho, Yvonne Maggie, Luiz Antônio Machado da Silva e Paul Silberstein (Viana, 2014; Viana, 2019).
É importante salientar que neste período as favelas passaram por processos sociais e políticos importantes. São eles: as remoções; a urbanização de Brás de Pina pela CODESCO – Companhia de Desenvolvimento de Comunidades; as eleições para as associações de moradores, a exemplo da associação do Jacarezinho, amplamente divulgada nos jornais da época; o fortalecimento e a perseguição a lideranças da FAFEG – Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara em plena ditadura militar; a atuação da UTF – União dos Trabalhadores Favelados nas favelas; a atuação de projetos e agências internacionais nas favelas como o PC, ACB – Ação Comunitária do Brasil, Brasil Estados Unidos Movimento de Desenvolvimento e Organização de Comunidade – BEMDOC/Unites States Agency for International Development – USAID; a consolidação da infraestrutura das favelas como a distribuição das redes de luz e água; entre outros processos (Lima, 1989; Viana, 2019).
Todos estes foram permeados pelas discussões levadas a cabo pelas ciências sociais e apropriadas por governos e agencias internacionais. Tanto desenvolvimento quanto teorias da cultura da pobreza e da marginalidade eram discutidas entre cientistas sociais, técnicos e administradores públicos quando se tratava de moradias de baixa renda. As favelas, nesse sentido, eram tratadas como problemas urbanos pela maior parte dos profissionais que lidavam com este tipo de habitação. No entanto, os Leeds e seus colaboradores formaram um contraponto a estas teorias, comprovando cientificamente que as favelas eram boas soluções urbanas encontradas pelos trabalhadores perante as péssimas condições sociais e econômicas a eles impostas. Afirmavam que suas casas traziam boas adaptações urbanas e que nas favelas circulava volume considerável de diversos capitais e recursos – humanos, materiais, financeiros e políticos. No que tange a organização política dos moradores, a teoria da cultura da pobreza responsabilizava a apatia política dos pobres pela reprodução da pobreza. Tal afirmação teve seu contraponto nas pesquisas realizadas pelos Leeds, uma vez que mostravam empiricamente a complexidade e a diversidade das organizações políticas dos moradores, bem como a astúcia e destreza na interlocução com políticos, seus partidos e os administradores públicos.
A colaboração científica dos Leeds nos anos 1970 e 1980
Em 1974, Elizabeth Leeds concluiu seu mestrado na Universidade do Texas. Em 1972, Anthony Leeds desvinculou-se desta universidade e passou a integrar os quadros da Universidade de Boston. Antes de realizarem a mudança para o estado de Massachussets, a família Leeds passou o ano de 1972 na Inglaterra. Neste país, Anthony Leeds trabalhou no Centro Latinoamericano da Universidade de Oxford, bem como ofereceu cursos e conferências em outras universidades, tais como de Glagow, Leeds, Essex, Sussex, entre outras (Leeds, 1984). Na Universidade de Boston, onde trabalhou até o final de sua vida, desenvolveu pesquisas sobre temas variados, tais como sociobiologia, história da ciência, teoria geral dos sistemas, bem como integrou o programa de estudos urbanos desta universidade, dedicando-se a pesquisas nesta área, e deu continuidade aos seminários informais, reunindo estudantes, professores e pesquisadores de outras áreas além das ciências sociais (Donahue, 2018).
Entre os anos de 1973 e 1974, com a família instalada em Dedham – MA, Elizabeth Leeds concluiu a sua tese de mestrado, intitulada Forms of 'squatment' political organization: the politics of control in Brazil. Através das entrevistas realizadas com as lideranças das associações dos moradores de favelas, a cientista política deu enfoque nas estratégias políticas das lideranças das favelas em suas relações com o estado, mostrando a destreza política destes atores, na contramão da literatura vigente sobre o clientelismo cuja ênfase recaía na inabilidade política dos moradores. No ano seguinte, iniciou o seu doutorado (PhD) no MIT – Massachussets Institutte of Technology sobre política de emigração.
A década de 1970 para os Leeds foi marcada pela pesquisa de ambos em Portugal e pela imersão artística de Anthony Leeds. Diante do endurecimento da ditadura militar no Brasil, vivenciado pelo casal nos dois últimos anos da década anterior, os Leeds avaliaram que não seria um bom momento para voltar a pesquisar as favelas, menos ainda a sua vida política e as suas relações com o estado (Lima e Viana, 2018; Donahue, 2018; Viana, 2019). Logo após o retorno da Inglaterra, período no qual a família também viajou pela Europa, avaliaram a possibilidade de pesquisar em Portugal, uma vez que dominavam o idioma. Em 1976, Elizabeth Leeds fazia um estudo piloto em Portugal, por 6 semanas, visando a elaboração de sua tese de doutorado, iniciado em 1975. Em 1977, a família mudou-se para Portugal, onde permaneceram até o ano seguinte.
Em Portugal, o casal pesquisava a emigração, mas em diferentes perspectivas. Enquanto Elizabeth Leeds pesquisava os impactos econômicos e políticos da emigração dos trabalhadores, sob o ponto de vista governamental e dos donos de fábricas, Anthony Leeds pesquisava sob a ótica dos próprios trabalhadores, ou ainda, a estratégia utilizada por estes para sua sobrevivência, num período logo após a deposição da ditadura salazarista. Deste trabalho de campo e vivência resultaram a tese de doutoramento de Elizabeth Leeds, intitulada Labor export, development and the state: the political economy of Portuguese emigration (1984), bem como os textos apresentados no Simpósio Burg Wartenstein, de número 73, intitulado Shanty Towns in developing nations, realizado entre 1 e 10/7/1977. São eles: 1- Solutions to dislocation in the case of Portugal: squatters vs. emigrants, de E. Leeds, e The metrópole, the squatment and the slum: some thoughts on capitalism and dependency, de A. Leeds (Viana, 2019).
Anthony Leeds avaliava este período como aquele em que mais se dedicou às artes (Leeds, 1984). Além de ser músico – cantava e tocava violoncelo – praticava fotografia e escrevia poemas (Sieber, 1994; Donahue, 2018; Leeds, 1984). Alguns de seus poemas e fotografias foram publicados na obra Cities, classes and the social order, organizado por Roger Sanjek (1994). Na segunda edição de A sociologia do Brasil urbano, revista e ampliada, há um caderno de fotografias de seu acervo, muitas de autoria de Anthony Leeds feitas na década de 1960, mostrando sua intimidade com esta linguagem artística. Os poemas The FMI helps Portugal e Casal Ventoso, de 1978, constituem bons exemplos da articulação entre a linguagem poética e a observação e análise científicas. Nesse sentido, é importante destacar o lugar que a arte ocupava na sua crítica epistemológica da antropologia. Em seu argumento, nestas formas de expressão dos sentimentos humanos há elementos que não são perceptíveis no trabalho de campo ou na coleta de dados. Dito de outro modo, a fotografia e a poesia trazem verdades epistemologicamente mais firmes, pois expressam coisas que são retiradas das etnografias (Leeds, 1984).
Em 1978, estimulados por seu antigo aluno, Gilberto Velho, os Leeds publicam A sociologia do Brasil urbano pela editora Zahar, com tradução de Maria Laura Viveiros de Castro. Único livro dos autores e que ainda hoje é referência importante nos estudos urbanos latinoamericanos e, principalmente, sobre as favelas. Em 2015, o livro ganhou uma segunda edição ampliada, organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima, publicado pela editora Fiocruz.
A retomada do campo no final dos anos 1980: revisitando o Brasil durante o processo de redemocratização
Na metade da década de 1980, quando a redemocratização do Brasil estava sendo encaminhada pelas forças políticas do país, entre as quais os movimentos sociais assumiram papel de destaque, os Leeds puderam retornar ao país em 1986 e 1988. Nestes dois períodos, projetaram retomar seus objetos de estudos neste novo contexto político – as favelas, as organizações de seus moradores e as suas relações com o estado. Anthony Leeds, além destes objetos de estudo, também se preparava para revisitar o seu estudo sobre carreiras brasileiras. Durante estes anos, coletaram diversos materiais produzidos pelas entidades da sociedade civil organizada e viram o surgimento de novas personalidades que se destacaram na vida política partidária, como a então líder comunitária da favela da Babilônia, Benedita da Silva pelo Partido dos Trabalhadores. Elizabeth Leeds, por sua vez, teve a oportunidade de iniciar a pesquisa sobe segurança pública e direitos humanos, uma vez que constatou a intensificação do trafico de drogas e da ação da polícia e o enfraquecimento das associações de moradores no período da redemocratização do Brasil. O trabalho de campo levado a cabo pela cientistas política envolveu entrevistas com antigas lideranças das favelas, bem como com os fundadores do Comando Vermelho, além da coleta de dados oficiais.
Entre o final dos 1970 e a década de 1980, ao mesmo tempo em que processava a redemocratização, as favelas viviam um período de intensas mudanças. Se por um lado se fortalecia o tráfico de drogas ilícitas, também havia intensa movimentação diante das novas políticas habitacionais. Nesse período, vimos surgir alguns programas governamentais, como o Promorar, instituído pelo Ministério do Interior em 1979 com o intuito de erradicar as “submoradias” das favelas, e um de seus integrantes, o Projeto Rio. Este propunha-se a aterrar algumas áreas da Baía de Guanabara para reassentamento das famílias moradoras das favelas localizadas desde a Ponta do Caju até Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Outro programa, o Fala Favela, executado pela SEAC – Secretaria Especial de Ação Comunitária, implantada em 1987 pelo governo José Sarney, foi um programa de apoio e assistência social prestado às comunidades faveladas. No nível estadual, vimos o programa Cada família, um lote, do governo Leonel Brizola. Na outra ponta, a sociedade civil se organizava em prol da defesa dos direitos dos moradores de favelas. Nesse sentido, vimos a movimentação de entidades como a FAFERJ – Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro e o o Movimento de Defesa dos Favelados – MDF.
No retorno desta segunda estadia no Brasil, sistematizando as informações coletadas, Anthony Leeds sofre o segundo ataque do coração e não resiste, deixando trabalhos em andamento.
A vida continua: Elizabeth Leeds e o legado para o futuro das ciências sociais
Com o falecimento de seu colaborador e esposo, Elizabeth Leeds dá continuidade a suas pesquisas. Já na década de 1990, após constatar a perda do peso político das associações de moradores das favelas para o tráfico de drogas ilícitas, e tendo reunido entrevistas com atores políticos envolvidos na formação de facções criminosas e no comércio de cocaína nas favelas, Elizabeth Leeds prepara a elaboração do artigo Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: ameaças à democratização em nível local, publicado em 1996 na Latin American Review e na coletânea de artigos organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito, Um século de favela, em 1998. A elaboração do artigo foi feita entre os anos de 1987 e 1995, período em que retornava ao Brasil para realizar as entrevistas com funcionários do governo, lideres comunitários de 25 favelas e detentos em três prisões cariocas (Leeds, 1998). Entre 1989 e 1997, Elizabeth Leeds foi diretora executiva do Centro de Estudos Internacionais do MIT.
Entre 1997 e 2003, Elizabeth Leeds atuou no escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro, onde exerceu o cargo de agente do programa para governança e sociedade civil, desenvolvendo a iniciativa de monitoramento democrático. Neste período, conseguiu levar recursos para o estabelecimento de programas e núcleos de pesquisa voltados para a segurança pública, tais como o NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas, da UFF, e o CRISP – Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, da UFMG. A exemplo dos programas de justiça criminal das universidades estadunidenses, nos quais os policiais estudavam, sua atuação na Ford voltou-se para a construção de parcerias entre universidades e a polícia. Tinha como finalidade apoiar projetos de mudança na polícia, visando a reforma ou a democratização desta instituição (Leeds, 2018).
Como resultado deste esforço, em uma conferência da ONG Conectas – SP, Elizabeth Leeds, junto com outros pensadores da segurança pública, tomaram a iniciativa de reunir policiais e acadêmicos de todo o país para avaliarem os rumos da segurança pública. Com esta reunião na ONC Conectas e com o apoio da Fundação Ford, foram plantadas as sementes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e sua consolidação enquanto uma entidade. Em conjunto com as diversas entidades e acadêmicos,o FBSP é criado em 2005, do qual Elizabeht Leeds é, atualmente, presidente de honra. Em dezembro de 2014, recebeu das mãos da então Presidenta da República, Dilma Roussef, o prêmio direitos humanos 2014, dado ao FBSP[2]. Anualmente, Elizabeth Leeds vem ao Brasil participar da reunião do FBSP.
Atualmente, Elizabeth Leeds é membro senior no WOLA – Washington Oficce of Latin America, especializada em citizen security e direitos humanos no Brasil. Esta entidade de advocacy surgiu em 1973 após o golpe militar no Chile com o intuito de observar e analisar a onda de ditaduras militares na América Latina, bem como a participação dos EUA. Sendo uma organização civil voltada para a defesa dos direitos humanos nas Américas, o WOLA parcerias com outras organizações, acadêmicos, empresários, artistas entre outros atores (Viana, 2019). Também é pesquisadora associada do Centro de Estudos Internacionais - CIS do MIT.
Em 2009, Elizabeth Leeds doou parte do arquivo pessoal privado de Anthony Leeds para a Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz[3]. Há, ainda, uma parte depositada no National Anthropological Archives do Smithsonian Institute. Com a constatação da presença de documentos produzidos e acumulados por Elziabeth Leeds no Fundo Anthony Leeds depositado na COC, criou-se a Coleção Elizabeth Leeds[4]. Em 2015, as fotografias e documentos produzidos e acumulados no contexto das pesquisas de Anthony e Elizabeht Leeds nas favelas foram transformadas no evento O Rio que se queria negar: as favelas brasileiras no acervo de Anthony Leeds. O evento era constituído pela exposição de fotografias e documentos do acervo da COC, bem como pelo seminário homônimo e pelo lançamento da segunda edição da obra A sociologia do Brasil urbano.
Não menos importante, cabe registrar um legado importante dos Leeds: as novas gerações de pesquisadores que se inspiram em seus trabalhos e as pesquisas resultantes de décadas de intensa colaboração científica.
Referências
AZEVEDO, C. Em nome da América. Os Corpos da Paz no Brasil. SP, Alameda, 2007.
CAVALCANTI, M. Comentário “Quanto vale uma favela”: economia, trabalho e a cidade na vida cotidiana. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v08.03: 831-848, set-dez, 2018
DONAHUE, K. Anthony Leeds: beyond Brazil. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v.08.03: 807-830, set-dez, 2018.
LEEDS, A. “Thales de Azevedo's influence on Brazilian's studies by North-Americans: a personal note”. Universitas. Salvador, Números 6/7. Maio a Dezembro. 1970.
LEEDS, A. & LEEDS, E. A Sociologia do Brasil Urbano. 2 edição. Org. Nísia Trindade Lima e Elizabeth Leeds. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2015.
LEEDS, E. Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: ameaças à democratização em nível local. In: ZALUAR, A. e ALVITO, M. Um século de favela. Rio de Janeiro, FGV editora, 1998.
LEEDS, E. Anthony Leeds: antropologia das interações ecológicas e estudos urbanos. Entrevistas com Elizabeth Leeds e Luiz Antônio Machado. Entrevista concedida a Nísia Trindade Lima e Rachel de A. Viana. Sociologia e Antropologia, v08.03, set-dez 2018.
Leeds, A. Draft autobiography. NAA/Anthnony Leeds Papers/series 6/subseries biographical materials/Box 33/ Draft Autobiography. 1984.
LIMA, Nísia V. T. Movimento de favelados do Rio de Janeiro - políticas do estado e lutas sociais (1954-1973). Tese de mestrado apresentada ao IUPERJ. Orientador: Luiz Antônio Machado da Silva. 185f. Rio de Janeiro, 1989.
LIMA, Nísia. V. T. História das favelas e da sociologia do Brasil urbano: contribuições a seu estudo a partir da trajetória de Anthony Leeds. Relatório final do projeto apresentado à FAPERJ na modalidade APQ1. Rio de Janeiro, RJ. 2011.
LIMA, N. T. e VIANA, R. de A. Entre latifúndios e favelas: o Brasil urbano no pensamento de Anthony Leeds. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 08, n. 003, set-dez. 2018.
SANJEK, R. “The holistic anthropology of Anthony Leeds”. In: LEEDS, A. Cities, classes and the social order. Nova York: Cornell University Press. Edited by Roger Sanjek, 1994, pp. 27-45.
SIEBER, R. T. “The life of Anthony Leeds: unity in diversity”. In: LEEDS, A. Cities, classes and the social order. Nova York: Cornell University Press. Edited by Roger Sanjek,1994, pp. 3-26
VIANA, Rachel de A. Antropologia, desenvolvimento e favelas: a atuação de Anthony Leeds na década de 1960. 210 f. Orientadora: Nísia Trindade Lima. Dissertação (Mestrado em História das Ciências), Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2014.
VIANA, R. de A. Nas redes da etnografia de Anthony Leeds: sua construção a partir de diferentes vozes. Dossiê de qualificação de doutoramento. Orientadora: Nísia Lima. Rio de Janeiro, PPGHCS/COC/Fiocruz, dezembro de 2016.
VIANA, R. de A. Encontros etnográficos e antropologia em rede: a favela do Jacarezinho e a pesquisa de Anthony e Elizabeth Leeds na década de 1960. 343f. Orientadora: Nísia Trindade Lima. Tese (Doutorado em História das Ciências), Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2019.
- ↑ Em email de Elizabeth Leeds para Rachel Viana, a cientista política relata ter a lembrança de que fora José Arthur Rios quem levou Anthony Leeds a uma favela pela primeira vez.
- ↑ Cf. <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/dilma-rousseff/fotos-gestao-dilma-rousseff/fotos-dilma/cerimonia-de-entrega-do-premio-direitos-humanos-2014/cerimonia-de-entrega-do-premio-direitos-humanos-2014-11/view>
- ↑ Disponível em: <http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/fundo-anthony-leeds>
- ↑ Disponível em: <http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/fundo-elizabeth-leeds>