Uma marca da prática social nas CEBs foi a solidariedade e ajuda mútua entre as suas participantes, sendo frequentes os mutirões para a construção de casas e espaços comunitários. Tratava-se, em primeiro lugar, de uma questão de necessidade. As condições de habitação eram precárias, os bairros isolados da cidade, com pouca ou nenhuma infraestrutura. Poucas das suas vias principais eram asfaltadas e só nelas era possível encontrar alguma linha de transporte público. A falta de serviços públicos e a distância dos centros comerciais não só tornava a vida na periferia mais dura, como também tornava o custo de vida ainda mais caro do que no centro, como o próprio movimento demonstrou na sua primeira pesquisa de preços.
Da mesma forma que as comunidades se mobilizavam em mutirões para sanar ou minimizar seus problemas com habitação, essa realidade fez emergir outra prática do movimento: os mutirões de compras comunitárias, com viagens ao centro da cidade para fazer compras no atacado para um grande número de famílias. Mais que uma economia nos gastos, o movimento organizava a comunidade, fomentava a solidariedade entre as famílias e abria espaços de conscientização sobre o problema da carestia.
O mesmo espírito de solidariedade era fomentado através de atividades nos bairros, de festas a momentos de formação política. O movimento também investiu fortemente na construção de um imaginário popular sobre o custo de vida, produzindo cartilhas, charges, paródias de músicas, e até peças de teatro que circularam por várias cidades. Com todas essas ações, se colocou de forma ativa na disputa pública, contra os agentes do Estado, a respeito do problema da carestia.
A própria coleta de assinaturas não visava uma simples reivindicação unilateral para o Estado, mas servia, sobretudo, como meio de promoção do debate público. As assinaturas eram coletadas em mutirões no centro de São Paulo, mas também nos sindicatos, nas igrejas e nas casas das pessoas. O movimento formava equipes para passar de casa em casa, nos bairros, recolhendo assinaturas. Devido a essa capilaridade, mais de 95% das 1,3 milhão de assinaturas coletadas em 1978 vieram dos bairros periféricos de São Paulo. Era uma oportunidade não só para discutir o problema da carestia com a população, como também para convidar essas pessoas para novas atividades, fazendo crescer a base do movimento.
Simultâneo ao trabalho local, o MCV se fortaleceu por um esforço constante de articulação. Nos primeiros anos, os núcleos do movimento se expandiram para outras periferias de São Paulo e, em 1976, realizaram uma assembleia com mais de 4.000 pessoas no Colégio Santa Maria, na zona sul. Já em 1979, um Encontro Nacional do movimento reuniu representantes de Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador, entre outras cidades.
O movimento ainda sustentou, ao longo da maior parte de sua trajetória, uma série de princípios de organização interna para firmar o seu foco no trabalho de base. As reuniões de coordenação do movimento eram formadas por representantes dos núcleos locais, dando preferência a moradores dos bairros onde o movimento atuava. Cada representante tinha a obrigação de prestar contas com sua base sobre as decisões tomadas na coordenação. Dos agentes externos, como militantes de partido ou do movimento estudantil, era exigido o uso de uma linguagem simples nas reuniões e na produção dos materiais. O objetivo era garantir a participação efetiva das bases nas decisões do movimento.
Isso começou a mudar a partir de 1979, quando o movimento conquistou maior visibilidade e as lideranças com mais instrução política investiram fortemente na sua participação nas reuniões de coordenação do movimento. Depois da manifestação na Praça da Sé, o país viveu uma aceleração das lutas sociais, primeiro com a emergência das grandes greves e, logo depois, com a mobilização pelas Diretas e pela Constituinte. O trabalho de base local, característico das CEBs, foi gradualmente substituído pela emergência da luta política e institucional. Como consequência de uma confluência de fatores, o MCV foi perdendo sua força, até se dissolver em 1982.
A politização de um problema “doméstico”
Longe de assumir uma postura dócil nas suas mobilizações, o movimento não nutria falsas esperanças em uma colaboração por parte do regime militar. As autoridades foram chamadas para a manifestação de 1978 na Praça da Sé. Era evidente que não iam comparecer. Ao contrário, a manifestação foi reprimida pela polícia militar. Sem se abalar ou deixar-se surpreender, o movimento logo preparou uma comissão para levar pessoalmente, até Brasília, a carta com as folhas de assinatura.
As ações do movimento tiveram repercussão internacional e constrangeram os militares, que não puderam mais sustentar sua versão dos fatos. Ao longo da década de 70, os militares atribuíram o problema da carestia à ganância dos comerciantes, se eximindo da responsabilidade sobre a grave crise econômica que o país enfrentava. Mais que isso, o governo federal fazia campanhas publicitárias que jogavam o problema para as famílias, em particular para as mulheres. Uma propaganda oficial da campanha “Diga não à inflação”, de 1973, dizia que “mulher fica mais bonita quando pechincha e faz beicinho”. Cabia às mulheres usar seu “charme” feminino para negociar uma redução dos preços com os comerciantes.
As mães que se mobilizaram através do MCV inverteram a lógica cínica e machista dos militares, politizando um tema que era tratado como privado e familiar. O problema do preço dos alimentos, sentido no interior de cada núcleo familiar, passou a ser tratado como uma questão pública, no campo da economia política e da macroeconomia, que, portanto, deveria ser tratada politicamente, com intervenção pública adequada no âmbito federal.
A trajetória do movimento demonstra a força da mobilização. A iniciativa que partiu de um Clube de Mães de um bairro periférico de São Paulo, em menos de uma década, ganhou escala nacional e conseguiu levar mais de 20.000 pessoas às ruas, em um tempo de silenciamento, dura repressão e despolitização do espaço público. Mais que isso, o movimento formou uma base sólida nos bairros em que atuava.
Com todas as diferenças entre a nossa época e a do MCV, ele ainda nos ajuda a pensar estratégias para a mobilização popular no presente. Em primeiro lugar, suas mobilizações foram sustentadas por um extenso trabalho de base. Isso não se expressou simplesmente em ações de agitação e propaganda, mas em atividades constantes de todo tipo nos bairros. É essa constância e diversidade de ações que permitiu, ao longo dos anos, que a base do movimento formasse os laços de confiança e solidariedade necessários para a mobilização. Em segundo lugar, esse trabalho se fortalecia pela ação coordenada das comunidades. A articulação era feita de baixo para cima, sem um abismo hierárquico entre quem se mobilizava nos bairros e quem tomava as decisões gerais do movimento. A participação democrática no interior do movimento, garantida pelas suas próprias regras, fortalecia suas iniciativas locais, cuja capilaridade tornava possível ações coordenadas em escalas maiores.
Por fim, a história do movimento demonstra a centralidade do problema do aumento do custo de vida, que voltamos a enfrentar, e sua força como demanda popular aglutinadora. Esse não é um problema secundário, entre outros tantos. Por ser um problema de caráter estrutural e praticamente universal, afetando de maneira generalizada a vida material da classe trabalhadora, a carestia pode se tornar uma importante chave de mobilização de massas das camadas da população que vivem, cada vez mais precariamente, do próprio trabalho.
As demandas do MCV não foram atendidas, mas suas ações tiveram enormes repercussões. Foi esse movimento que constrangeu os militares de forma decisiva, marcando o início da abertura democrática no país, e inspirou a formação de novos movimentos e processos de mobilização popular. Foi por meio desse movimento que um número massivo de trabalhadores das periferias das grandes cidades, principalmente mulheres mães de família, puderam impor sua voz e afirmar sua dignidade, mostrando que se cresce em consciência quando se luta e se organiza.