Entre o individualismo e a solidariedade - dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro (resenha)
Autor: Thiago Falheiros
Referência
LEITE, Márcia. (2000), “Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15 (44):73-90.
Breve contextualização
Márcia Pereira Leite é Graduada em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976), mestre em Ciência Política pelo IUPERJ (1993) e doutora em Sociologia e Antropologia pelo Programa de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). Pós-doutorado em Sociologia Urbana no IUPERJ e na EHESS/CADIS (2007/2008). É professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DCS/PPCIS) e pesquisadora do CNPq.
No referente artigo, a autora tem como objetivo apresentar a construção do cenário de violência e insegurança na cidade do Rio de Janeiro, articulando os conceitos de cidadania e metáfora da guerra. O artigo foi publicado em 2000, de forma que há cerca de duas décadas a capital fluminense experimentava fortes transformações em seu tecido social, com o aumento exponencial nas taxas de criminalidade, demandando não apenas interpretações sobre suas origens e efeitos, como respostas de combate e prevenção por parte do Estado. Leite divide seu texto em cinco seções: a primeira traz uma contextualização da magnitude que os casos de violência no Rio de Janeiro tomaram no contexto nacional, levantando duas principais perspectivas de interpretação e enfrentamento da violência, debatidos nas três seções seguintes: a primeira que visa a disciplinarização das chamadas "classes perigosas", além da sua incompatibilidade com as noções de cidadania e direitos humanos; e a segunda, que se contrapõe como uma alternativa de conjunção entre políticas de cidadania e segurança. A quarta seção traz um breve exame sobre os projetos de pacificação do Rio de Janeiro e, por último, a seção com suas principais considerações sobre os assuntos abordados.
Principais argumentos
Em todo o decorrer do texto a autora faz uso de uma lógica de dualidade na construção de seus argumentos. Ela inicialmente aponta o contraponto entre a ideia de "Cidade Maravilhosa" atribuída ao Rio de Janeiro, tida como alegre, integradora e solidária, mas que vive o negligenciamento dos conflitos sociais. Como o aumento exponencial da criminalidade ela aponta a cisão da favela e o asfalto, onde a primeira era tida como o lócus da violência, enquanto a última abrigaria os "cidadãos de bem". Ainda dentro desta dicotomia espacial, se inserem outras dualidades como traficante x trabalhador; favelado x cidadão; aceitável x combatível; entre outros. É dentro dessa lógica de jogo de soma zero que se insere a metáfora da guerra de todos contra todos, de forma que risco de "favelização" da cidade era iminente, necessário assim disciplinar esses estratos sociais a qualquer custo.
A autora assim explora a primeira perspectiva de combate e resolução da criminalidade, a qual basicamente previa uma solução violenta para o problema da violência. Aqui ela cita as experiências de São Paulo e Rio de Janeiro no combate ao aumento da violência. Na primeira houve uma postura evidente de atribuição de culpa da violência aos fluxos migratórios das regiões Norte e Nordeste do país, com uma propaganda abertamente xenofóbica de "repatriação dos bandidos". Já no Rio de Janeiro havia o referendo de políticos, setores da mídia e algumas parcelas da população para que a atuação das forças policiais e governamentais fossem mais duras, a fim de conter a escalada da criminalidade. Deste modo, Leite aponta a revalorização dos direitos civis e o encolhimento da ideia de cidadania. Essa representação do conflito social como guerra, que articula ideias de lados inimigos, confronto e extermínio do adversário, daria margem para as ações policiais arbitrárias e as violações dos direitos humanos serem interpretadas como simples “excessos” ou “acidentes de percurso inevitáveis” rumo à segurança. Aqui a autora cita alguns episódios de chacinas e prisões ilegais, não percebidos de forma tão negativa por parte da população.
Ainda tratando deste ponto, Leite cita a postura particularista e intolerante adotada por muitas pessoas em relação aos direitos humanos (ou pelo menos o que eles entediam como direitos humanos) quando se tratava de presos ou criminosos. Em muitos episódios os direitos eram interpretados como "privilégios" dados aos criminosos ou uma inversão de valores, onde os "verdadeiros cidadãos" eram vítimas da violência, enquanto os bandidos gozavam de melhores condições. Seguindo esse raciocínio de merecedores x não-merecedores, o desrespeito aos direitos civis de presos, criminosos e moradores das favelas não seria entendido como ataque à cidadania. Essa ausência de direitos não apenas estaria na ação truculenta da polícia, como também englobaria o acesso precário à justiça.
Já em relação à segunda perspectiva, a autora cita o movimento crescente de atores como ONGs, grupos religiosos e movimentos sociais, na busca por difundir um pensamento de soluções pacíficas e democráticas para o problema da violência e da segurança pública, prevendo o respeito aos direitos humanos e o controle policial por parte da sociedade civil, visto que as ações baseadas em mais violência tidas até agora não tinham reduzido a criminalidade. Aqui ela cita ações que visavam essa integração entre asfalto e favela, além da participação da sociedade nas discussões sobre as políticas de segurança pública em curso e caminhos alternativos à metáfora da guerra. Leite inclusive afirma que essa busca por soluções mais pacíficas no combate à violência estiveram presentes nas pautas das eleições governamentais de 1999. Em suma, ela aponta que a associação entre favela, marginalidade e violência persiste no discurso da cidade, ainda mais quando há um aumento da criminalidade. Entretanto se observa uma alteração nas formas de enfrentamento, onde as soluções violentas não são as principais alternativas.
Apreciação crítica
Um dos principais pontos que a autora chama a atenção no texto é como entendimento de cidadania política foi se ressignificando ao longo dos anos no imaginário social da sociedade do Rio de Janeiro, de modo que inicialmente o título de cidadão detentor de direitos não estava acessível aos moradores de periferia, tendo em vista a noção de que estes espaços eram os produtores da violência. Entretanto acredito que esse acesso já não era garantido bem antes do recrudescimento da violência. O fenômeno apenas ampliou os conflitos sociais já existentes, mas que viviam abafados sob uma falsa ideia de Rio de Janeiro integrado, cartão-postal do país.
Leite inclusive ressalta no final do artigo que vê com bons olhos esse movimento de resgate da solidariedade e da integração trazido por essa perspectiva de cidadania em conjunto com a segurança pública, impulsionando a participação civil na construção de políticas de segurança, pensando na cidade como um segmento único. Porém ela aponta seu receio para os riscos dessas frentes de atuação atingirem apenas os efeitos dos problemas sociais vivenciados nas cidades, e não suas causas. Essa preocupação é extremamente atual quando pensamos nas políticas de segurança pública implementadas no Rio de Janeiro na última década visando a redução da criminalidade por um viés pacífico. Em um primeiro momento, o que se obtém são resultados positivos, com a redução de indicadores e o alcance de metas. No entanto, o que se observa posteriormente são projetos em processo falência, e aqui se pontuam as mais diversas hipóteses: mau-planejamento, descontinuidade no acompanhamento da política pública, evasão de recursos, entre outros. Porém, chamo a atenção justamente para a atuação superficial das políticas de segurança, como se a violência fosse um problema que se resume em si mesmo.
Pensar no enfrentamento da violência de forma isolada, em espaços com um histórico de décadas de negação, sob a égide de que dessa maneira a população poderá experimentar uma cidadania plena, é, no mínimo, ingênuo. A autora inclusive lança mão do uso de dados empíricos durante toda a sua exposição para demonstrar que esses territórios, tidos como produtores da violência, também carregam uma maior defasagem em relação a aspectos socioeconômicos. Pensar talvez na violência como um elemento sintomático da negação da cidadania pode auxiliar em outras formas de visualização do problema.
Outros verbetes e referências relacionadas
ABREU, H.B. (1994), A cidadania na sociedade capitalista. Um estudo sobre a legitimação da ordem. Tese de doutorado, Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
CPDOC-FGV e ISER. (1997), Lei, justiça e cidadania. Direitos, vitimização e cultura política na região metropolitana do Rio de Janeiro. Sinopse dos resultados de pesquisa, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV/ISER.
MARSHALL, T. H. (1967), Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar.
ZALUAR (1995), “Crime, medo e política”. Sociedade e Estado, X, 2.