A Comunidade do Horto e a Luta por um Território Ancestral no Contexto do Racismo Ambiental (artigo)
Autoria: Carolina Câmara Pires dos Santos, Emerson de Souza, Emilia Maria de Souza, Paula Máximo de Barros Pinto, Rafael da Mota Mendonça.
Artigo publicado pela RioOnWatch e cedido gentilmente à WikiFavelas.
Mega operação
No dia 30 de junho, às 5h da manhã, nós, moradores da Comunidade do Horto, fomos para a entrada da comunidade com a informação de que haveria uma mega operação da Justiça Federal para a entrega de notificações aos moradores. Embora tivéssemos recebido a informação de que não seria uma operação para remover famílias, mas sim para a entrega de notificações, ficamos todos apreensivos com a possibilidade de remoção. Fomos surpreendidos com a quantidade de policiais que estavam na comunidade para fazer a operação: tinha Polícia Militar, Polícia Federal e, também, Polícia Civil.
Na entrada da comunidade, na Rua Pacheco Leão Nº 1235, a polícia chegou com arma na mão falando para a gente abrir o portão. Não reagimos, pois recebemos a informação de que não seria remoção. Vieram para entregar notificações. As famílias que moram nas localidades da Major Rubens Vaz e da Vila São Jorge foram as que mais receberam notificações, além das notificações nas outras áreas da comunidade. Os moradores relataram episódios de violência policial durante a entrega dos mandados.
O que não entendemos é que também havia notificações para a área da Dona Castorina, que está em processo de regularização fundiária junto à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e as famílias que residem na localidade não têm processo de reintegração de posse. Entramos em contato com a SPU e não obtivemos resposta, gostaríamos de entender o que a SPU pretende fazer com esta área.
Em razão desta operação dos oficiais de justiça para entrega de notificações na comunidade, organizamos um grande ato em defesa do Horto na Rua Jardim Botânico. Teve a participação de muitos moradores, jovens e adultos, e parceiros da comunidade. Estamos nessa jornada de mobilizações pela permanência da comunidade do Horto.
Não podemos esquecer que a operação da Justiça Federal, no sentido de dar andamento ao processo de remoção da comunidade, aconteceu em um contexto de descontrole da pandemia da Covid-19 no Brasil, que ultrapassou a terrível marca de mais de 550.000 mortes. Em sentido contrário à orientação da Organização Mundial da Saúde para que as pessoas fiquem em casa, o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico (IPJB) insiste em impulsionar a remoção das mais de 600 famílias da comunidade do Horto.
O andamento das ações de reintegração de posse, bem como a entrega de mandados de desocupação voluntária, sob pena de reintegração forçada, vai de encontro à decisão do Supremo Tribunal Federal no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 828 (ADPF 828), que suspende remoções durante a pandemia e as medidas administrativos e judiciais que resultem em despejo.
O Projeto de Remoção da Comunidade do Horto Inserido em uma Lógica Racista de Organização da Cidade do Rio de Janeiro
A Comunidade do Horto, situada no bairro Jardim Botânico, Zona Sul, é guardiã de uma história ancestral. Seu desenvolvimento foi possível graças à resistência de um povo que chegou ao Brasil escravizado, vindo de vários países da África, e que, ao longo dos anos, se constituiu graças à bravura das mulheres e homens que sobreviveram aos horrores da escravidão e contribuíram com seus saberes e heranças culturais. Não há como falar do Horto sem lembrar dos engenhos que ocuparam essas terras, no período colonial, e da mão de obra escravizada que o desenvolveu. Desse modo, a ancestralidade de origem africana evoca, ainda hoje, uma resistência que passa necessariamente por questões de gênero e raça e, assim, compõem a complexa história de construção deste território.
O caso da Comunidade do Horto é um dos mais perversos gerados pela política de remoção instaurada na cidade do Rio de Janeiro. Esta política racista e excludente é promovida pelas elites como solução para reordenar o espaço urbano, sempre de acordo com os interesses econômicos dos empresários e investidores que lucram com a especulação imobiliária, expulsando pessoas negras e de baixa renda de áreas consideradas nobres e reassentando em lugares distantes, muitas vezes sem devida infraestrutura. Antes de aprofundar no caso do Horto é necessário pontuar algumas questões.
A cidade do Rio de Janeiro passa por conflitos fundiários desde o final do século XIX. Historicamente, o surgimento de cortiços e favelas está atrelado ao fim da escravidão, no qual não houve nenhum tipo de política pública que pudesse amparar a massa de trabalhadores negros oriundos do sistema escravista. A partir disso, as favelas cresceram e se desenvolveram como solução para suprir o déficit habitacional, em um panorama de desvantagem racial. Nesse contexto, o desejo de eliminar territorialidades negras dos bairros considerados nobres foi materializado e executado através das remoções que, amparadas pelo racismo estrutural e institucional operantes nos âmbitos administrativo e judiciário, realocam pessoas negras para áreas distantes da região central da cidade.
Favelas sempre foram alvo das políticas de remoção, porque são consideradas como territórios negros. A composição da população moradora dessas localidades foi e continua sendo, majoritariamente, negra. Portanto, fazer desaparecer da “cidade maravilhosa” espaços identificados como negros é uma política adotada de maneira constante. O caso da Comunidade do Horto não é diferente.