Favela tem memória
Autoria: Palloma Menezes
Grynszpan e Pandolfi (2006) sugerem que, a partir da década de 1990, o movimento de recuperação, preservação e divulgação de memórias das favelas começou a ganhar vulto na cidade do Rio de Janeiro. Na visão dos autores, além do significativo aumento numérico dos projetos voltados para memória das favelas, ocorreu também, nas últimas décadas, a diversificação dos agentes direta ou indiretamente envolvidos.
Antes, o que se tinha era resultado principalmente de um esforço individual e, em geral, subproduto de algum trabalho distinto, de natureza acadêmica, religiosa, política, entre outras. Agora, ao lado de indivíduos, encontra-se um variado conjunto de agentes, organismos, organizações, instituições, tanto do setor público quanto do privado e do terceiro setor, nacionais e até internacionais. Além disso, a memória deixou de ser preocupação secundária, ou subproduto, para ocupar o centro mesmo das atenções de projetos desenvolvidos em favelas.
Cada vez mais é possível notar na cidade do Rio de Janeiro ações que permitem identificar a manifestação da vontade de memória, da vontade de patrimônio e da vontade de museu de diferentes grupos sociais. Hoje, há inúmeros projetos sociais dedicados justamente ao tema da memória em áreas faveladas. São projetos que, endógenos ou não, defendem a ideia de que a favela tem memória; que a favela é não apenas parte da cidade, mas parte historicamente relevante do urbano carioca; que investem na promoção da “autoestima” das populações faveladas.
Um exemplo desse tipo de projeto é o “Centro de História e Memória da Rocinha”, criado pela Ong “Rocinha Comunidade XXI” com o objetivo de construir uma história da Rocinha a partir da fala de seus moradores, dando ênfase, principalmente, à diversidade cultural da favela. Um projeto similar, de resgate da história da favela a partir de depoimentos dos moradores locais, foi realizado no espaço cultural Casarão dos Prazeres com patrocínio da Secretaria Municipal de Educação. No total, foram coletadas 60 histórias de vida de moradores dos Prazeres, além de 230 fotos e documentos. O material deu origem ao vídeo-documentário “Casarão dos Prazeres: Janelas de Histórias” e a uma exposição realizada no espaço cultural Casarão dos Prazeres, que fica dentro da própria favela, em Santa Teresa.
Outro projeto, que vem ganhando destaque na mídia desde a sua criação, é o site www.favelatemmemoria.com.br, construído pela Ong Viva Rio. Como é explicado no próprio site, o intuito do projeto é “valorizar as lembranças dos moradores mais velhos e resgatar experiências coletivas de participação política, associativa ou religiosa (...) fazer circular histórias do passado para reforçar laços, identidades e sonhos do presente”.
Somam-se aos projetos citados acima diversas publicações que também vêm buscando registrar aspectos da história e da memória das favelas cariocas. Alguns exemplos são: Coração do morro: histórias da Mangueira[1]; Maré: vida na favela[2]; Salgueiro, 50 anos de glória[3]; Jongo da Serrinha[4] e Histórias de favelas da Grande Tijuca contadas por quem faz parte delas : Projeto Condutores(as)de Memória[5].
Um dos mais bem-sucedidos projetos desse tipo é a “Rede Memória da Maré”, criada pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM, uma Organização Não-Governamental que surgiu em 1997, a partir da iniciativa da iniciativa de alguns moradores e ex-moradores das 16 comunidades que compõem o bairro da Maré. Esses moradores que criaram o CEASM tinham em comum a formação universitária, uma trajetória de militância em movimentos sociais nas favelas e o desejo de criar um programa voltado para o registro, preservação e divulgação da história local. A Rede Memória da Maré desenvolve, ainda, o Arquivo Dona Orosina Vieira, o Projeto de História Oral, a Exposição Itinerante Memórias da Maré e o Grupo Maré de Histórias - Contadores de Histórias da Maré. Como grande ápice dessas iniciativas levadas a cabo pelo CEASM, foi inaugurado, em maio de 2006, o Museu da Maré, que passou a disputar com o Museu Aberto da Providência o título de “primeiro museu em favela do Brasil” (Freire-Medeiros, 2006).
É importante lembrar que estes múltiplos projetos ligados à ideia de memória e patrimônio, que hoje estão espalhadas pelo território do Rio, não existem enquanto tal senão a partir do momento em que assim os classificamos em nossos discursos (Gonçalves, 2007). Nesse sentido, poderíamos questionar: como escolhemos os objetos que serão eleitos para ganharem o status de memória relevante ou patrimônio?
Segundo Gonçalves, muitos estudos sobre patrimônio dão “a sugestão implícita ou explícita de que a escolha desses objetos seria de natureza arbitrária, contingente, materializando o que seriam emblemas de tradições inventadas” (2007:28). Estes estudos indicam que as ações que levariam a tais escolhas seriam conscientes e intencionais, visando propósitos ideológicos e políticos em contextos sociais marcados pelos conflitos de interesses e valores.
Todavia, Gonçalves (2007) acredita que esta tese da “invenção dos patrimônios” vem se tornando uma verdadeira obsessão e questiona se não seria válido explorarmos a sugestão segundo a qual mais importante que a “invenção das tradições”, seria pensarmos na “inventividade das tradições” (Sahlins, 1999).
Ou, parafraseando a rica sugestão de Roy Wagner, se não será oportuno considerar se não são os “patrimônios culturais” que nos “inventam” (no sentido de que constituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construímos no tempo e no espaço. Em outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos materiais como “patrimônios culturais”, esses objetos estão por sua vez a nos “inventar”, uma vez que eles se materializam uma teia de pensamentos por meio dos quais nos percebemos individual e coletivamente (Gonçalves, 2007:29).
Dessa forma, os processos sociais e culturais que levam à escolha dos objetos que viram patrimônios escapariam em grande parte às nossas ações conscientes e propositais de natureza política e ideológica. Logo, na visão de Gonçalves, seria importante para o entendimento da natureza dos chamados patrimônios o trabalho de acompanhamento dos processos sociais e simbólicos de reclassificação que elevam determinados bens a esta condição de patrimônios (2007:29). Nesse sentido, torna-se cada vez mais importante mapear e analisar os processos de patrimonialização das favelas e de celebração da memória desses espaços e de seus moradores que, em alguma medida, têm nos ajudam a reinventar o sentido da cidade.
[1]Jovens alunos das oficinas de fotografia, vídeo e texto, da Casa das Artes da Mangueira lançaram em 2001 o livro “Coração do Morro: Histórias da Mangueira”, produzido integralmente por eles. No Núcleo de Cultura Audiovisual do projeto, 120 adolescentes da favela da Mangueira desenvolveram, ao longo de dez meses, um trabalho cujo resultado está documentado no livro e em três vídeos.
[2]O livro “Maré, vida na favela” foi escrito por Drauzio Varela, Paola Berenstein Jacques e Ivaldo Bertazzo e lançada em 2002 pela editora Casa da Palavra.
[3]"Salgueiro - 50 Anos de Glória", é um livro de Haroldo Costa lançado em 2003 pela Editora Record.
[4]O livro "Jongo da Serrinha - do Terreiro aos palcos", escrito por Edir Gandra, , foi lançado pela GGE - Giorgio Gráfica e Editora em 1995.
[5]“Quando memória e história se entrelaçam: a trama dos espaços na Grande Tijuca” foi organizado por Alexandre Mello Santos, Márcia Pereira Leite e Nahyda Franca. O livro foi lançado em 2003 pelo IBASE.