Observatório Cidade Integrada - bairro do Jacarezinho (relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 20h08min de 13 de outubro de 2022 por Clara (discussão | contribs)
Autoria: Observatório Cidade Integrada

Apresentação

O presente relatório apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou avaliar o Programa Cidade Integrada no bairro do Jacarezinho, com base na percepção e experiências dos moradores. O estudo foi realizado pelo conjunto de organizações parceiras que formaram o Observatório do Cidade Integrada, visando ao monitoramento independente do Cidade Integrada a partir da sociedade civil. Como será visto, tal monitoramento se fez necessário em virtude do grande volume de denúncias de violações de direitos humanos praticados por policiais militares que ocuparam o território para a implementação do programa.

O Cidade Integrada foi anunciado publicamente no dia 22 de janeiro de 2022, quando o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Claudio Castro, informou à imprensa que o bairro do Jacarezinho, zona norte da capital do estado, e a favela da Muzema, na zona Oeste da cidade, seriam contemplados com o programa. Ambos os territórios já se encontravam ocupados pela Polícia Militar desde o dia 19 de janeiro, data do Decreto nº 47928, por meio do qual o Governo do Estado instituiu o Programa Cidade Integrada. No entanto, a população local não fora consultada ou tampouco informada a respeito, de modo que as lideranças comunitárias tomaram ciência da existência do Cidade Integrada e dos projetos previstos para o território somente após divulgação pela imprensa.

O decreto que instituiu o programa fazia menção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) e enfatizava necessidade de elaborar estudos e coordenar ações em áreas de moradia de baixa renda, a fim de melhorar a qualidade de vida da população. O decreto discorreu sobre a importância de realizar investimentos em mobilidade urbana, habitação, construção e reforma de equipamentos públicos, gestão ambiental e políticas de promoção social para famílias em situação de vulnerabilidade. Constava, contudo, no decreto, que tudo isso seria realizado “sem aumento de despesa”. Assim, o Cidade Integrada foi instituído como um programa sem orçamento próprio, que consistia basicamente em retirar investimentos previstos para outros territórios e “concentrar a gestão dos benefícios, ações e projetos” em duas áreas específicas. Todos os projetos previstos para o Cidade Integrada já existiam anteriormente ao programa, entretanto, a proposta seria obrigar diversas secretárias de Estado a deslocarem seus recursos para as áreas escolhidas.

Divergindo bastante do que consta no decreto, o Cidade Integrada teve como seu principal foco a ocupação de favelas pela Polícia Militar, acionando um repertório de justificativas semelhante ao das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), isto é, o argumento de “retomada” pelo Estado de territórios até então controlados por grupos criminais armados, ligados a facções do tráfico de drogas e/ou milícias. Desde o seu anúncio inicial, o Cidade Integrada foi comparado ao programa das UPPs e houve inclusive expectativas de que o Cidade Integrada seria expandido para outros territórios como foram as UPPs, que chegaram a ser implementadas em mais de 40 favelas. No entanto, o Cidade Integrada revelou-se uma iniciativa de pequena escala, restrita a dois territórios pilotos e sem orçamento próprio, diferindo bastante das UPPs que contaram com volumosos investimentos públicos e privados disponíveis num período caracterizado pelo crescimento econômico do Brasil e de preparativos de segurança para a recepção da Copa do Mundo da FIFA (2014) e Jogos Olímpicos (2016).

Em seus primeiros anos, as UPPs dividiram as opiniões dos moradores e especialistas entre aqueles que ressaltavam a diminuição das mortes violentas, sobretudo as cometidas por policiais, nos territórios ocupados, e aqueles que criticavam as arbitrariedades praticadas pelas forças ocupantes contra a população local. Houve, contudo, consenso a respeito de, com o passar de poucos anos, os arranjos de poder locais terem se estabilizado por meio da negociação de acordos entre policiais e traficantes de drogas, que passaram a dividir o controle sobre o território das favelas. Diferentemente das UPPs, o Cidade Integrada não encontrou apoio entre especialistas no tema e, como será visto, tampouco entre os moradores do bairro. Não apenas se optou por reeditar uma experiência fracassada, como por fazê-lo de maneira precária.

A escolha dos territórios contemplados pelo Cidade Integrada não foi justificada com base em algum critério técnico, mas apenas como resposta midiática às tragédias ocorridas nessas favelas: a chacina policial do Jacarezinho em maio de 2021 e o desabamento em abril de 2019 de prédios construídos irregularmente na Muzema. A chacina do Jacarezinho, ocorrida no dia 6 de maio de 2021, consistiu na morte de 28 pessoas durante uma operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ). Esta foi a operação policial mais letal da história democrática do estado. Segundo relatos dos moradores, muitas dessas vítimas foram sumariamente executadas por policiais e seus corpos arrastados até as viaturas, deixando poças e rastros de sangue e vísceras nas ruas do Jacarezinho. Moradores vivenciaram experiências de terror dentro de suas próprias casas, invadidas por policiais em busca de suspeitos e com as paredes perfuradas por projéteis de fuzil.

Esta operação ocorreu durante a vigência de uma liminar do Supremo Tribunal Federal que restringiu as operações policiais a situações absolutamente excepcionais, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635 – a ADPF 635, popularmente conhecida como “ADPF das favelas”. Ciente da desobediência a uma decisão da mais alta corte do país, a polícia nomeou essa ação como “operação exceptis” – “exceção” em latim. Esta operação, contudo, não foi um fato isolado e sim um episódio emblemático do crescente descumprimento da decisão do STF e da escolha por perpetuar um modelo de política de segurança pública centrado no extermínio sistemático de jovens negros pobres e favelados. Tanto o Governador do Estado quanto o Presidente da República manifestaram publicamente o seu apoio à ação dos policiais, mesmo antes que as circunstâncias das 28 mortes fossem investigadas e diante de tantos indícios de abuso por parte da polícia.

A repercussão da chacina na imprensa e a comoção internacional gerada compeliram o Governo do Estado a oferecer alguma resposta à sociedade. Face à recusa do governo em punir os responsáveis pelo massacre, oferecer reparações aos familiares das vítimas e buscar ampliar os controles democráticos sobre a atividade policial, a ocupação do Jacarezinho pela Polícia Militar foi a resposta escolhida pelo governo. Como será visto, boa parte das ações anunciadas para o bairro do Jacarezinho não chegaram sequer a começar e algumas das ações iniciadas foram interrompidas.

A maioria dos moradores sequer tomou conhecimento de novos serviços oferecidos pelo Estado à população do bairro em razão do Cidade Integrada, mas a presença de policiais circulando pela comunidade impactou de sobremaneira as suas rotinas. Desde os primeiros dias de implantação do Cidade Integrada, foram muitas as denúncias de abuso da força por policiais contra os moradores recebidas tanto pela Associação de Moradores, quanto pelas organizações da sociedade civil que atuam no bairro do Jacarezinho.

Diante do súbito aumento das queixas de violência policial encaminhadas ao LabJaca e ao Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), essas entidades solicitaram a ajuda de organizações e coletivos parceiros, com os quais formaram um Observatório do Cidade Integrada para monitorar as violações de direitos humanos ocorridas no bairro do Jacarezinho. Ressalte-se aqui que não foi obtido acesso com segurança ao território da Muzema, de modo que o Observatório do Cidade Integrada se restringe, portanto, ao bairro do Jacarezinho. Dentre as atividades do Observatório, destacou-se a realização de uma pesquisa junto aos moradores do bairro, a fim de coletar as suas experiências e opiniões sobre o Cidade Integrada, colaborando assim com o trabalho de avaliação do programa. O presente relatório é, portanto, resultado de um esforço conjunto de diferentes organizações para levantar, produzir e analisar dados quantitativos e qualitativos, realizando assim um balanço da percepção e experiências dos moradores sobre os primeiros 5 meses do programa Cidade Integrada no bairro do Jacarezinho.

Avaliação do Cidade Integrada: o que dizem os moradores?

Quando considerada a opinião dos moradores do bairro do Jacarezinho sobre o Cidade Integrada, surpreende o alto índice de reprovação ao programa. Como pode ser visto no gráfico abaixo, a maioria dos entrevistados (62%) gostaria que o Cidade Integrada acabasse e 19% querem que o programa seja melhorado. Apenas 1% declarou-se satisfeito com o Cidade Integrada tal como se encontra.


Dentre as críticas dos moradores ao Cidade Integrada destacaram-se as violações praticadas por policiais contra os moradores e as frequentes perseguições a suspeitos que, não raro, resultavam em disparos de arma de fogo efetuados por policiais nas ruas das favelas. Os comerciantes e trabalhadores do comércio relataram que esses incidentes teriam sido responsáveis por uma queda por eles estimada como da ordem de 70% no faturamento de seus comércios desde o início da ocupação pela Polícia Militar em janeiro de 2022. O bairro do Jacarezinho é um importante centro comercial que atende bairros vizinhos e, segundo os comerciantes, os clientes de fora do Jacarezinho não estariam mais vindo fazer compras no local, pois a presença de policiais no território teria intensificado a sensação de insegurança. Não foi possível levantar dados de balanço das empresas que corroborassem as alegações dos comerciantes, mas foi possível confirmar que há percepção de maior insegurança.

Quando perguntados sobre se sentirem ou não mais seguros com a presença de policiais na comunidade, apenas 10% dos entrevistados responderam que se sentiam mais seguros e 69% responderam que se sentiam mais inseguros. Temos, portanto, que uma política de Estado que se propunha a oferecer segurança à população do bairro teve o efeito contrário de contribuir para o aumento da sensação de segurança entre os moradores. Abaixo o gráfico com a distribuição das respostas a esta pergunta:


Um dos impactos dessa sensação de insegurança foi a percepção de que as atividades de lazer na comunidade foram prejudicadas. A maioria dos entrevistados (73%) compartilha dessa percepção e muitas foram as atividades consideradas afetadas, como festas nas ruas, festas dentro de casa, frequentar bares, crianças brincando nas ruas, conversas com amigos na rua, a ida e a volta de eventos, o comércio local e o futebol.

As frequentes menções à ocorrência cotidiana de “correrias” – isto é, das situações em que a suspeitos corriam da polícia que às vezes atirava para conter sua fuga – levaram os moradores a aumentar as suas cautelas. Segundo uma moradora entrevistada: “Antes minhas crianças brincavam na rua ou na pracinha. Agora só ficam dentro de casa, porque quando a polícia passa dando tiro é um desespero e nem sempre a gente chega na hora ou tem um vizinho para colocar ele para dentro de casa”. É assustadora a percepção partilhada por metade dos moradores de que a presença da polícia teria prejudicado o lazer das crianças, que não poderiam mais brincar na rua como antes. Em vista da gravidade dos impactos da violência sobre o desenvolvimento e saúde da criança, abordamos esse tema e maiores detalhes em nota anexa ao relatório.

Além de se ver em meio a tiroteios, os moradores criticaram também posturas autoritárias por parte da polícia. Um entrevistado relatou que: “Antes eu parava no bar para tomar uma cerveja no fim de semana. Agora nem em casa a gente pode tomar cerveja, porque se o som estiver alto eles acham que é festa e proíbem.” Muitos moradores relataram que o projeto não trouxe melhorias para o Jacarezinho, porque: “Nada de concreto veio para cá, tudo o que teve de melhoria foi para Manguinhos, como o CEFET por exemplo. Aqui nem tem colégio para todos. No papel o projeto é até bom, mas não se realiza.” Notou-se uma disseminada percepção de que o Cidade Integrada se limitava a uma ocupação do território pela Polícia Militar e de que nada além disso seria oferecido pelo Estado à comunidade. Essa percepção se evidencia também no fato de a maioria dos moradores não ter tomado ciência de serviços, projetos sociais ou equipamentos novos oferecidos pelo Estado ao bairro: 58% não sabiam de nenhum programa ou serviço novo oferecido, não conseguindo desta maneira serem beneficiados.

O projeto apresentado para o Cidade Integrada previa a implementação de políticas públicas visando à formação, educação, assistência social, ampliação de ruas, drenagem de rios, entre outros tantos benefícios para os moradores das comunidades abrangidas pelo programa, promovendo assim uma suposta “integração” com a cidade. É bem verdade que algumas ações chegaram a ocorrer, mas a grande maioria do que fora previsto não saiu do papel.

O decreto nº 47.928 de 18 de Janeiro de 2022, é onde está disposto todo o projeto, a sua finalidade, forma de implementação, e os meios a serem utilizados para colocar em prática todas as políticas públicas visando à promoção da integração social. Além das diretrizes focadas na segurança pública, consta em seu artigo 4, os seguintes programas de integração social:

• SuperaRio - auxílio emergencial do Estado do Rio de Janeiro, com valor entre R$299,73 e R$380,00;

• Vale gás - pagamento do valor de R$200,00, podendo ocorrer acréscimos em caso de filhos menores;

• Projeto aplicativo conecta social;

• Desenvolve mulher e Renda melhor – capacitação profissional com foco no empreendedorismo e geração de renda própria;

• Mercado produtor (agro) – parceria com os municípios fluminenses para construção e gestão de mercados, incentivando o consumo da produção local pelos moradores do entorno.

• Casa legal – programa de regularização de títulos de propriedade;

• Projeto Reciclação – para a gestão de resíduos e geração de renda;

• Casa da gente – Programa Estadual de Habitação de Interesse Social;

• Renda Melhor Jovem – incentivo financeiro para jovens matriculados no ensino médio regular e que estão em situação de extrema pobreza.

• Horta comunitária – para a produção de alimentos orgânicos;

• Na régua - reformas em casas para os moradores terem condições dignas de moradia, com previsão de 110 casas a serem reformadas no Jacarezinho.

Importante destacar que a maioria dos programas e projetos listados já existiam em diferentes pastas do governo, não se tratando de programas elaborados de maneira exclusiva, em atenção às particularidades do bairro e necessidade da população do Jacarezinho. Note-se ainda, que a maioria dos serviços foram sendo descontinuados e retirados do decreto por meio novos decretos. No último decreto publicado, de nº 48.148 de 04 de julho de 2022, o programa conta apenas com dois serviços a serem fornecidos, sendo eles:

• Horta comunitária – um projeto da Secretaria de Agricultura que já existia na comunidade antes do Cidade Integrada;

• Na Régua – um projeto de obras e reformas de até 15 mil reais e para famílias com renda mínima de 3 mil reais.

Houve ainda o cancelamento sem aviso prévio de alguns dos poucos projetos que chegaram a ser implementados, executados e que haviam contado com adesão da população. Foi o que ocorreu com o Desenvolve Mulher, programa que visava à formação profissional para as mulheres da comunidade em cursos como de trancista, micropigmentadora, entre outros. Fora este um dos poucos programas que haviam funcionado efetivamente. No entanto, segundo informado por moradores entrevistados, os professores do curso profissionalizante estavam com salários atrasados e acabaram abandonando os postos de trabalho. O pagamento de bolsas previsto para as alunas também não ocorreu.

Deve ser ressaltada também a falta de transparência sobre as despesas executadas com o Programa Cidade Integrada. Nossos pesquisadores tentaram encontrar nos portais de transparência disponibilizados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, mas não conseguiram encontrar nenhuma previsão orçamentária para o projeto Cidade Integrada, muito menos prestação de contas dos valores gastos até o momento. Como constava no decreto inaugural, o programa seria realizado “sem aumento de gasto”. Ainda assim, não é possível saber quais os valores dos programas de diferentes secretarias de Estado que foram executados em despesas realizadas no bairro do Jacarezinho. No portal do programa SuperaRio, por exemplo, é possível encontrar os nomes e valores recebidos pelos beneficiários, porém como não há uma categoria de busca específica por bairro, apenas dos beneficiários do município do Rio de Janeiro, não foi possível identificar a quantidade de moradores beneficiados e nem os valores pagos.

Como mencionado anteriormente, o projeto não foi pensado especialmente para o bairro do Jacarezinho e não ouve escuta aos moradores. Isso ficou demonstrado quando perguntado aos moradores se eles ficaram sabendo ou participaram de reuniões referentes ao projeto cidade integrada. Muitos ficaram sabendo que o Governador esteve na quadra próximo à comunidade, mas não sabem o que motivou a sua vinda e nem se ocorreram novas reuniões.

Embora menores de idade não tenham sido entrevistados, incluímos uma pergunta a respeito de agressões a menores por parte dos policiais e 37% dos entrevistados afirmaram ter visto isso ocorrer. Outros 27% disseram apenas ter ouvido relatos de que isso ocorre. Alguns descreveram cenas como a de policiais atirando na direção de um adolescente e de policiais batendo com a cabeça de um adolescente num capô de carro.

Experiências de violência policial durante o Cidade Integrada

Considerações Finais

Anexo: relatório completo

Ver também