Interlude da Segurança Pública
Autora: Beatriz Sousa
“Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu sinto medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado”
(Cidinho & Doca - RAP da Felicidade)
Ao pensar sobre a trajetória que tive até agora na disciplina e as reflexões feitas sobre Segurança Pública e a Criminologia, principalmente no estado do Rio de Janeiro, não pude deixar de lembrar de um clássico da cultura brasileira. A música “Rap da Felicidade” de Cidinho & Doca. Isso porque tanto o seu conteúdo quanto os autores refletem o enfrentamento e denúncia sobre o Estado de violência em que nos encontramos.
Crias da favela “Cidade de Deus”, Cidinho & Doca, no trecho destacado, relatam as autoridades, pode-se entender o Estado, a vida na favela atravessada pelo medo da violência sofrida nesse espaço. A questão que fica é: E se essa autoridade for a precursora dessa violência?
O que se tem hoje no Rio de Janeiro, como dito no documentário “Intervenção na cidade, militarização do medo”, é um programa de Segurança Pública que identifica a população negra, pobre e favelada como a causa de todo o seu problema. Então, o “desrespeito” e a marginalização dessa população faz parte desse projeto de violência. Cabe destacar, que essa lógica se dá a partir de uma construção histórico-social, que envolve, por exemplo, marcos como a escravidão no Brasil, sua abolição, e o Positivismo.
“Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não aguento mais essa onda de violência
Só peço à autoridade um pouco mais de competência”
(Cidinho & Doca - RAP da Felicidade)
Consoante a esta estrofe, ao documentário supracitado e ao texto “Psicologia e políticas de segurança pública: o analisador ‘Caveirão’”, os “tiros de metralhadora” são direcionados, pelo dispositivo de segurança do Estado: a polícia militar, ao inimigo interno. A criminalização do pobre, dito como esse inimigo a ser combatido, é fortalecida pelo Estado Penal. Nesse sentido, compreender o conceito de criminalização, incriminação e Estado Penal se faz importante.
A criminalização corresponde aos aspectos culturais, produzidos pelos processos de normatização, normalização, estigmatização, que visam a correção. Ainda que não tenham previsão legal de atribuição de penas, socialmente não são aceitos, podendo sofrer ataques e perseguição (DECOTELLI; CUNHA; BICALHO, 2016). Já a incriminação está relacionada à transgressão formal da norma, ligada ao Estado, que passa pelos processos de prevenção, investigação, julgamento e execução (SILVA; BICALHO, 2018).
No Brasil nunca houve uma expansão de um Estado de Bem-Estar Social, mas sim da expansão do neoliberalismo. Nesse contexto, o Estado Penal se sobrepõe ao do Bem-Estar Social, o que significa a redução de direitos às políticas de assistência social para os mais pobres e aumento da pobreza/miséria. De modo que acarreta o surgimento do Governo da Miséria, em que o meio de se lidar com a crescente da desigualdade é através do encarceramento dos pobres, resultando na sua criminalização e incriminação, uma vez que se criou um perfil de criminoso. Embora o Estado Penal tenha sido desenvolvido nos Estados Unidos, muito se aplica ao que vemos no Brasil e no Rio de Janeiro, aqui discutido.
“Pessoas inocentes que não tem nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela”
(Cidinho & Doca - RAP da Felicidade)
À vista disso, de que forma a população pobre e favelada foi culpabilizada de criminosa, de forma que “pessoas inocentes que não tem nada a ver, estão perdendo hoje o seu direito de viver”?
A partir da influência das correntes da Criminologia Positivista, Europa do séc. XIX, se instaura no Brasil a tese de “Periculosidade da pobreza”. Primeiramente, a Criminologia Positivista buscava explicar a causa da criminalidade por meio de métodos científicos. E, também, entendia o crime como um desvio da ordem do corpo ou do corpo social em que suas causas precisavam ser combatidas e prevenidas (BICALHO; KASTRUP; REISHOFFER, 2012).
Cabe ressaltar duas correntes dessa Criminologia: a Antropometria Criminal e a Sociologia Criminal. A primeira foi desenvolvida por Lombroso, em que a causa do crime estaria no próprio criminoso, criminoso nato. Então, o criminoso teria características biológicas específicas inatas, determinando sua propensão ao ato criminoso. E já a Sociologia Criminal, de Ferri, teve sua explicação da criminalidade voltada para o ambiente social que determinaria a predisposição ao crime.
Nesse sentido, acredito que pode-se entender a Periculosidade da pobreza, a propensão ao crime, tanto no âmbito individual quanto territorial/coletivo. Dado que se tem por Lombroso o direcionamento ao indivíduo criminoso e por Ferri ao ambiente social. Dessa forma, o pobre foi colocado em um lugar de risco a Segurança Pública e reafirmado por essas teorias científicas como um grupo de degenerescência e criminalidade inata. No Brasil, tem-se como exemplo o Movimento Higienista, a marginalização da cultura preta (capoeira, funk, religiões de matrizes africanas, etc), a favela.
Além disso, no documentário “Auto de Resistência”, é possível observar como essas forças agem sobre o corpo e o território do pobre periférico, favelado. Nele é mostrado casos de homicídio, assassinato, cometidos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Como o caso do Johnatha que foi morto, baleado nas costas, ao levar a namorada para casa, indefeso, e alegaram auto de resistência, legítima defesa. E o caso do Shauan, também inocente, que estava na rua com os amigos e os policiais atiraram apenas por ter visto ele correndo atrás do amigo. Neste caso, a vítima sobreviveu, mas por ter um projétil alojado no corpo, dificulta sua contratação por clubes de futebol, uma vez que é associado a uma vida criminosa.
Por esses exemplos, entende-se que a ação de segurança do Estado enxerga esses corpos e territórios como perigosos e sem valor, já que primeiro há uma intervenção violenta, levando muitas vezes à morte, sem garantir o direito da vítima responder em defesa ou de sobreviver.
Dessa forma, cabe pensar que não é apenas o Estado que age segundo os pensamentos deterministas, mas a Psicologia também é atravessada por eles. Então, de que forma o Psicólogo pode combater esse quadro? De que forma as políticas públicas de segurança podem ser antirracistas, mais justas, humanizadas? Acredito que a resposta para ambas as perguntas perpassa pelo reconhecimento de que suas práticas são atravessadas pelo racismo, preconceito, estigmatização, marginalização. De modo geral, buscar uma prática implicada, que sempre está realizando uma autocrítica e a transformando em ações. A partir disso, acredito ser possível, nesses “interlude” - intervalos da música e, aqui, da vida - de reflexão ativa, ainda que de forma gradual, fazer valer o refrão e o grito de luta da música de Cidinho & Doca:
Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
(Cidinho & Doca - RAP da Felicidade).
Referências:
AUTO DE RESISTÊNCIA. Direção: Lula Carvalho e Natasha Neri. Rio de Janeiro (BR): Kinofilme, 2018.
BICALHO, P. P. G.; KASTRUP, V. ; REISHOFFER, J. C. . Psicologia e segurança pública: invenção de outras máquinas de guerra. Psicologia & Sociedade (Online), v.24, p. 56-65, 2012.
CIDINHO; DOCA; MALBORO; SELVA. Rap da Felicidade. Rio de Janeiro: Columbia Records, 1994.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Intervenção na cidade, militarização do medo. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=BeaRTMRWjPE>. Acesso em: 02 nov. de 2022.
REBEQUE, C.C. ; JAGEL, D. C. ; BICALHO, P. P. G. . Psicologia e Políticas de Segurança Pública: o analisador Caveirão. PSICO (PUCRS. ONLINE), v.39, p. 418-424, 2008.
SILVA, C. A. F. ; BICALHO, P. P. G. . Inverter a intervenção: contra as práticas de administração da pobreza no Rio de Janeiro. In: Ângela Soligo; Pedro Paulo Bicalho; Horário Maldonado; Francisco Portugal. (Org.). Formação em Psicologia para a transformação Psicossocial da América Latina. 1ed.Rio de Janeiro: Alfepsi, 2018, v. 02, p. 241-255.