Comandante de UPP
Autoria: Palloma Menezes
A primeira experiência de comando em uma Unidade de Polícia Pacificadora
Antes de tornar-se a policial com o cargo mais alto no programa das UPPs, e a primeira mulher a ocupar uma posição estratégica na Superintendência de Planejamento Operacional da Seseg, Priscilla Azevedo era uma personagem não muito conhecida no cenário da segurança pública. Após ter sido convidada, no fim de 2008, para atuar na primeira favela “pacificada” da cidade e ter passado dois anos à frente da UPP do Santa Marta, Priscilla teve seu trabalho reconhecido dentro e fora da favela – e até mesmo fora do país.
Quando foi anunciado que a então capitã comandaria a ocupação do Morro Santa Marta, a imprensa carioca deu destaque ao fato de uma mulher assumir a responsabilidade de comandar uma tropa de 120 policiais, composta basicamente por homens. É importante lembrar que, naquele momento, o número de policiais femininas nas UPPs ainda era bastante reduzido. Assim, o fato de ser uma mulher e ainda comandar um grande número de policiais homens gerava uma certa surpresa. Todavia, esse estranhamento inicial logo foi substituído por um entusiasmo gerado por uma espécie de crença coletiva – compartilhada tanto por policiais, como pela população de um modo geral – de que a comandante teria uma aptidão especial para lidar com os moradores da favela por ser mulher.
A população do Santa Marta também parecia concordar com a ideia de que as policiais femininas são mais afáveis e passam mais confiança do que os homens. Por isso, os moradores mais críticos à atuação da polícia apontam que a escolha de uma mulher para o comando da UPP do Santa Marta teria sido uma “jogada de marketing do Governo”, uma espécie de “maquiagem” utilizada com o intuito de disfarçar a truculência que historicamente marca a atuação da PM nas favelas cariocas. Nas palavras de um jovem do Santa Marta: “o fato de ser uma mulher é estratégia meio que para convencer mais fácil as pessoas. Colocaram uma mulher lá, mulher negra, para o morador meio que se identificar com aquilo”.
É possível dizer que existia uma crença generalizada – entre policiais e os moradores – de que as mulheres que atuavam na UPP tinham uma maior predisposição para atuar no “social” e para se aproximar da população. Por isso, Mourão (2013)[1] sugere que a discussão sobre gênero nas UPPs é importante para o debate sobre certos aspectos centrais do projeto. Um desses aspectos é “a associação do ethos militar, guerreiro, forjado, como sugerem alguns autores, na gramática da virilidade violenta (Bourdieu,1998; Welzerlang, 2002; Calazans, 2004; Moreira, 2011), à dificuldade de conceber o policiamento de proximidade como sendo ‘verdadeiro trabalho de polícia’” (Mourão, 2013, p. 8).
Uma parcela dos policiais menosprezava o “trabalho social” desempenhado por alguns de seus colegas da UPP. Eles rotulavam os cursos, as atividades desenvolvidas com crianças e jovens e até mesmo o trabalho de mediação como um “trabalho de babá ou de assistente social”. E, ao apresentarem essa crítica, reclamavam também que não podiam “trabalhar de verdade” nas UPPs, que não podem fazer o “trabalho de policial militar”.
Como lembra Teixeira (2015) a mistura entre aquilo que é considerado como o trabalho de polícia propriamente dito e o trabalho como agente social, que ocorre nas UPPs, “exibe uma dinâmica repleta de ambivalências e de conflitos relativos a dois repertórios de significados que, em geral, disputam o protagonismo – e a legitimidade – das intervenções nos territórios da pobreza”. Os policiais que têm essa dupla atuação têm que lidar, por um lado, com “o tradicional repertório da guerra, que prioriza o conflito violento com as quadrilhas de narcotraficantes”; e, por outro, com “o repertório do social, que prioriza a ação preventiva, através do desenvolvimento de atividades que visam, dentre outros objetivos, à diminuição do envolvimento das pessoas com a criminalidade” (Teixeira, 2015, p.78).
Teixeira (2015) propõe chamar de “policial social” esses agentes das UPPs que mobilizam, simultaneamente, elementos desses dois repertórios. Creio que podemos tomar Priscilla como um típico exemplo do que Teixeira chama de “policial social” (2015). Na verdade, neste caso, tal termo pode ser considerado não só como um tipo sociológico, mas também uma categoria nativa, já que diversos moradores do Santa Marta se referiam à Priscilla como uma policial “mais social, mais humana que não é só policial, não é só militar”. Usando as palavras de Teixeira, sugiro que Priscilla “representa justamente o encontro, numa trajetória individual, entre essas duas propostas de intervenção: a “prevenção ao crime” e a “guerra do crime” (2015, p.84).
Priscilla narra que o início de seu trabalho no morro de Botafogo não foi fácil como já foi dito anteriormente. Ela conta que no começo ela não conhecia os moradores e eles também não sabiam quem ela era. Ao chegar ao Santa Marta para comandar o policiamento na favela, ela ressalta que se sentia “um monstro”, pois todo mundo ficava olhando quando ela passava, mas quase ninguém lhe dirigia a palavra. Apenas crianças aproximavam-se da Capitã.
Para tentar driblar as dificuldades iniciais, a comandante decidiu que era necessário se fazer presente no cotidiano do Santa Marta. Ela passou, então, a circular pelas ruas – tanto de dia, como de noite, em dias úteis ou nos fins de semanas –, se apresentando para os moradores e comerciantes do morro. Sempre que conhecia um novo morador, a comandante pedia para que ele anotasse o seu telefone e ligasse caso tivesse qualquer problema. Da mesma maneira, em suas falas públicas, Priscilla costumava passar os telefones de contato da UPP, além de seu telefone pessoal, para que a população pudesse entrar em contato diretamente com ela.
Além de se aproximar dos moradores “comuns”, a comandante também tentou estabelecer contato com as lideranças comunitárias do Santa Marta – como pastores, presidente de associações, coordenadores de ONGs etc. E, como no início ela não sabia quem eram as lideranças, Priscilla começou a participar das reuniões e eventos organizados por moradores do morro mesmo sem ser convidada.
É interessante notar que depois que conseguiu estabelecer contato com essas lideranças, Priscilla passou a expor publicamente esses vínculos. Ela sempre mostrava ter intimidade com lideranças que são conhecidas na favela para, assim, tentar ganhar mais confiança de outros moradores. Mas, por outro lado, como ela sabia que esse contato com a polícia tem um forte potencial “contaminador”, ela parecia também tentar responder antecipadamente às críticas que poderiam ser feitas a essas lideranças por estarem se aproximando da polícia. Para tentar “limpar” a imagem desses moradores, Priscilla em diversas falas públicas ressaltava que apesar de terem contato com ela, esses moradores não estavam atuando como informantes da UPP. Durante uma entrevista, quando falava sobre as denúncias que a UPP recebe, fez questão de interromper a frase para dizer “não é denúncia da associação de moradores, o Zé Mário não tem nada a ver com essa história”.
Embora Priscilla tenha conseguido conhecer e se aproximar de alguns líderes locais, como pastores, presidente de associações (de moradores e de comerciantes), coordenadores de ONGs e projetos sociais etc., outras lideranças negaram-se a estabelecer contato com a comandante. Em uma conversa informal com um líder comunitário do Santa Marta, ele relatou ter recebido da comandante um convite para participar de um famoso programa dominical de maior emissora de televisão brasileira. Ele fez questão de dizer, em seguida, que se negou a ir e que, mesmo que a polícia estivesse tentando comprar o apoio dele, ele não estava à venda.
Para tentar driblar essas dificuldades iniciais de aproximação e as “resistências” de algumas lideranças, Priscilla notou que além de participar das reuniões organizadas pelos próprios moradores, ela também precisava começar a organizar reuniões para debater com a população temas que iam muito além da questão do policiamento, como problemas relacionados ao recolhimento do lixo, ao fornecimento de luz, água etc. No entanto, algumas lideranças da favela se negavam a participar desse tipo de encontro. Isso ficou muito claro para mim no fim de uma reunião sobre o Programa Saúde da Família realizada no Polo de Inclusão Social Padre Velloso na qual havia diversos moradores da favela. Nessa ocasião vi a comandante se aproximar de um líder comunitário do Santa Marta para se apresentar e questionar por que ele preferia se manter afastado da UPP e não participar das reuniões que ela organizava. De um modo bastante ríspido o líder comunitário disse para a comandante que não tinha “nenhum assunto para tratar com a polícia”. E acrescentou: “se eu precisar dialogar com o Governo, vou direto à secretaria que trata da questão que eu preciso resolver. Seu eu precisar falar de educação, vou na secretaria de Educação, se precisar falar de saúde, vou na secretaria de Saúde, porque não concordo que a polícia resolva questão que não é de polícia”. Priscilla ainda tentou insistir, mas ele permaneceu irredutível se mostrando avesso a dialogar com a comandante sobre problemas que não fossem “de polícia”.
Além de tentar dialogar com as lideranças e com a população adulta, Priscilla notou que era importante promover outras atividades para tentar conquistar também as crianças do morro. Ela começou, então, a organizar uma série de atividades dirigidas ao público infantil, que acabaram tornando-se o alvo principal da política de aproximação desenvolvida por ela.
Uma “ferramenta de aproximação” utilizada por Priscilla, posteriormente usada por outros comandantes, foram as excursões, os passeios e as festas na favela. No Santa Marta, além da distribuição de presentes em datas festivas – como Natal, Dia das Crianças, Páscoa etc. –, Priscilla começou a organizar excursões para levar as crianças para shows no Maracanãzinho, para visitar o quartel do Bope e assistir, por exemplo, espetáculos em um circo na Quinta da Boa Vista. Por considerarem que parte da juventude já estava “perdida para o tráfico” (Leite e Machado Da Silva, 2013), os comandantes de UPPs preferiram, desde o início do projeto, investir mais na organização de atividades voltadas para o público infantil.
As atividades de aproximação eram realizadas prioritariamente com os idosos e, principalmente, com as crianças. A interação estabelecida entre alguns comandantes de UPPs, como Priscilla, e as crianças, assemelhava-se àquela que antes era estabelecida entre os “pequenos” e os “donos do morro”. Uma das primeiras atividades organizadas pela polícia logo após a ocupação da polícia foi a distribuição de presentes para as crianças da favela no Natal de 2008.
Assim como os traficantes faziam no passado, Priscilla, além de organizar a distribuição de presentes no Natal, também promovia festas ou atividades recreativas em outras datas comemorativas, como o dia do seu próprio aniversário. Em entrevista dada na Rádio Santa Marta em 2010, Priscilla contou que para celebrar seu aniversário organizou um passeio para levar as crianças da favela para visitarem o Bope. Na entrevista ela disse que “foi muito bom, foi um grande presente de aniversário que Deus me deu, passar o dia do meu aniversário com 200 crianças aqui do morro em um batalhão de polícia”.
A partir da realização dessas atividades e do estabelecimento de uma relação mais próxima com as crianças, comandantes como Priscilla acabaram tornando-se uma nova referência para as crianças do morro, que passam, por exemplo, a cantar para eles os mesmos funks que antes cantavam para o “chefe” do tráfico na favela, exaltando o poder de quem manda no morro.
Além das festas e excursões, outras atividades que tomaram as crianças e os jovens como público preferencial foram os cursos que começaram a ser ministrados pelos próprios policiais da UPP. Como explica Priscilla, “tudo começa com o comandante recrutando, por exemplo, um policial que é professor de inglês, outro que é professor de violão, outro que pode dar aulas de artes marciais e, assim, os cursos vão sendo criados”. Embora algumas pessoas teçam críticas alegando que policiais não deveriam fazer esses tipos de atividades na favela, pois essa não seria a função da polícia, Priscilla ressaltava que essas atividades são importantes para ajudar os policiais a se aproximarem, especialmente, das crianças.
Na Cidade de Deus, esta mesma estratégia de aproximação foi também utilizada desde o início da implementação da UPP. Os policiais da UPP da aludida favela narram que tudo começou de um modo bastante improvisado e aos poucos foi se expandindo. Segundo relatos, um sargento, que dava aula de futebol, foi o primeiro a começar a oferecer atividades para os jovens. No início, contudo, relata um policial: “ele ficava na praça ali, sozinho. No primeiro dia só conseguiu um menino para brincar com ele, ficava brincando, chutando bola. Aí depois veio mais um, ia chamando, não queriam ir. Aí, depois de um tempo, que ele conseguiu. Hoje já tem 400 crianças e tem que negar matrícula”. Depois disso, os oficiais começaram a identificar outros policiais que poderiam atuar da mesma maneira.
Os policiais apontavam que a realização de cursos era importante para ajudar a UPP a “conquistar” a população. Como narrou um policial da Cidade de Deus durante uma entrevista: “quando a gente acaba levando um projeto social para as crianças (...) os policiais acabam tendo essa interação com as crianças e aí, a partir disso daí os pais acabam também abraçando, acabam entendendo o nosso projeto aqui”.
“A comandante é mãezona, mas quando precisa, ela bate feito homem”
As “ferramentas de aproximação” permitiam, portanto, que uma parte da população das favelas mude a imagem negativa que tinha dos policiais no passado. No Santa Marta, por exemplo, a comandante Priscilla por ter se dedicado a desenvolver “ferramentas” para se aproximar, especialmente, das crianças da favela, ganhou a fama de “mãezona”. Diversas vezes ouvi tanto moradores como policiais dizendo que a comandante tinha conseguido “ganhar a população” porque era sensível, atenciosa, carinhosa e procurava ajudar muitos moradores em questões que não eram consideradas propriamente “trabalho de polícia”. Todavia, é interessante notar que, ao mesmo tempo, circulavam rumores pela favela de que “Priscilla é mãezona, mas quando precisa, ela bate feito homem”. Esse rumor sintetiza como as ações da policial transitavam entre a prevenção e a repressão como definiu um morador do Santa Marta. Como sintetizou um morador da favela:
A polícia é de aproximação mas na hora que ela tiver que ficar desaproximada, vai desaproximar! (risos) Ué, não vai? (...) “Poxa, o cara era bonzinho!”, entendeu? Mas na hora que precisar vai ser malzinho e vai fazer o que tem que ser feito, vai reprimir e não vai ficar só na aproximação. (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)
Os rumores sobre Priscilla circulavam no Santa Marta acompanhados de relatos de que a comandante já teria batido em alguns jovens “envolvidos com o tráfico” na favela. Certa vez ouvi um morador comentando que já tinha visto a comandante dando muito chute em um jovem perto da quadra da Escola de Samba. Segundo ele, o cara estava “meio doidão e quis encarar policiais que vieram falar com ele, ele quis crescer para cima dos caras, mas deu azar de Priscilla estar chegando nessa hora e aí ela, não teve pena e esculachou”.
O fato de Priscilla não atuar apenas na prevenção e no trabalho de aproximação, mas também mediar conflitos e “ser firme”, “tomar atitude quando tem que tomar” e “não fugir do trabalho pesado” era visto com bons olhos por boa parte de seus colegas de trabalho e também dos moradores da favela. Certa vez um policial que trabalhou desde o início da implementação da UPP no Santa Marta relatou que gostava da comandante porque “na hora de fazer ronda de noite, ela pegava a pistola dela e descia o morro andando com a gente. E se tivesse qualquer problema, ela resolvia”. Em outra ocasião ouvi uma moradora dizendo que ela gostava do jeito da comandante “porque não pode dar mole para vagabundo, não! Senão, ninguém respeita a polícia e vira bagunça”.
A fama de “durona” de Priscilla se espalhou não só pelo Santa Marta, mas ganhou também destaque na grande mídia. Quando a policial ganhou o “Prêmio Internacional Mulheres de Coragem 2012”, por exemplo, foi divulgada uma reportagem no jornal O Globo na qual era dito que, no início da ocupação, a comandante chegou a andar de fuzil pelas vielas do morro e que depois da “pacificação”, adotou a pistola, “mas a arma da major sempre foi mesmo a conversa. Junto com a repreensão no olhar, era imbatível. Pode parecer politicamente correta, mas, dizem, que se transformava em operações policiais. Com a adrenalina, sobravam até palavrões”.
Nesta reportagem do jornal O Globo, assim como em várias outras matérias que traçaram um perfil de Priscilla, havia quase invariavelmente uma referência ao sequestro sofrido por ela em 2007. O fato de a PM ter conseguido fugir e ainda ter participado da operação que prendeu a quadrilha de bandidos que a havia sequestrado é recorrentemente acionado tanto pela mídia como pelos próprios moradores do Santa Marta para compor a imagem de Priscilla como uma “mulher de coragem”:
O título faz sentido. Em 2007, ela sofreu um sequestro-relâmpago. Foi levada com uma arma enfiada na boca até uma favela em Niterói. Quando a identificaram como policial, ela apanhou. Na cara. E muito. Ficou cheia de hematomas. Mas conseguiu fugir. Catou um por um de seus detratores; só falta um. Um dia chega o dia dele. (Trecho da reportagem “Primeira mulher a comandar uma UPP é uma das dez a ganhar prêmio internacional nos EUA” divulgada em 06 de março de 2012 no jornal O Globo).
Entre os moradores circula um rumor de que Priscilla teria sido violentada quando foi sequestrada. Por isso, quando ela conseguiu fugir, teria ligado para o governador e teria pedido autorização para ir lá e “acabar com os caras” que a sequestraram. Quando me contou essa história, um morador do Santa Marta disse que esse caso foi importante para construir a fama de Priscilla. Isso porque, por um lado, ela “ganhou moral” entre os policiais por ter ido atrás dos bandidos e ter mostrado que tem disposição para matar e, por outro, passou a ser temida pelos bandidos que sabem “ela não perdoa quem anda na vida errada”. Já outro morador comentou que ele achava que ela mesma tinha inventado essa história “só para o povo acreditar que ela é brava e passar a ter medo dela”.
A fama de “durona” de Priscilla acabou fazendo muitas pessoas afirmarem que ela se portava como a nova “dona do morro”. Isso era visto de modo positivo, por uma parcela da população – já que muitos consideravam bom que a policial passasse a ser uma referência para a nova geração da favela. Todavia, essa mesma atitude era criticada por uma outra parcela dos moradores. Um jovem me disse em uma conversa que “Priscilla não é essa pessoa que parece ser, simpática. Se fosse para definir Priscilla, definiria como muito autoritária”. Outro adjetivo comumente utilizado pelos moradores para caracterizar Priscilla era “mandona”. Quem a chamava assim, geralmente, reclamava que ela queria “se meter em tudo” e “mandar em todos” dentro da favela.
Em 2011, pouco antes de deixar o comando do Santa Marta, a major Priscilla concedeu uma entrevista em um programa ao vivo da Rádio Comunitária Santa Marta. Nessa ocasião, a comandante respondeu perguntas de ouvintes que participaram do programa pelo telefone e, aproveitou o espaço para mandar um recado para alguns moradores da favela:
Queria aproveitar um espaço para fazer um pedido aos moradores ali dos prédios da estação 3 que têm os apelidos de Jambalai e Bangu 3 (risos). Em nome de Jesus, precisamos nos reunir para conversar. Esse prédio aí parece que tem um espírito aí nesse prédio da confusão. Isso aí tem que acabar (...). Tem uma moradora que estende o lençol aberto, não sei se seca mais rápido, não tem necessidade, atrapalha o vizinho debaixo. Tinha uma senhora que tinha que fazer uma comida de uns cachorros, mas ainda bem que isso já foi resolvido em nome de Jesus (...). Então a gente tem que fazer uma reunião para acertar uma coisa. Espero que esteja rolando tudo bem. Já ouvi que tem gente colocando som alto altas horas da noite. É uma falta de respeito e consideração com vizinhos (...) Aí toda hora, principalmente final de semana chamam a PM para ir lá resolver esses problemas. E agora já que me chamaram uma vez, eu me meto sim e vou me meter sempre (locutor coloca barulho de sirene de polícia). A gente tem que conversar e resolver esse problema porque não é possível. Já estão há dois anos juntos e não sabem que não podem secar lençol tapando a frente do vizinho? Quer ter cachorro em apartamento? Tem que limpar, não pode ter o cheiro, porque aí eu trago minha família lá da Paraíba para passar o reveillon aqui e está aquele cheiro de cachorro podre? (Trecho de entrevista de Priscilla em um programa da Rádio Comunitária Santa Marta)
O depoimento acima mostra como questões que a princípio não eram consideradas “problemas de polícia” acabam se tornando no contexto pós-“pacificação”. Este alargamento da categoria “problema de polícia” pode ser notado em outro trecho da entrevista de Priscilla na Rádio Santa Marta, no qual a policial deu parabéns para uma moradora que estava fazendo aniversário naquele dia e alertou “que Deus te abençoe, que te dê um namorado honesto, correto e trabalhador, porque se não for, não vai namorar, eu estou vigiando, eu e Seu Manuel não vamos deixar”. Essa fala evidencia como a comandante passou a interferir em questões que iam muito além do que, tradicionalmente, é entendido como “função da PM”,
Se no caso acima, Priscilla poderia ser criticada por estar “se metendo onde não foi chamada” ou por estar interferindo em questões que não são “de polícia”, pude observar outros casos em que esse tipo de interferência era solicitada pelos próprios moradores da favela. Certa vez, eu estava perto da primeira estação do bondinho do Santa Marta acompanhando Juca – um morador do Santa Marta que tinha pedir autorização para a realização de um evento na favela – quando Mota, um outro morador que eu também já conhecia há algum tempo, se aproximou da comandante junto com o filho. Ele pediu desculpa por interromper a nossa conversa, mas disse que o assunto era urgente.
Mota começou a explicar, então, que precisava da ajuda da comandante porque o filho dele “não tinha jeito, era um vacilão, um mentiroso” e ele não sabia mais o que fazer para lidar com o jovem. Ele relatou que o filho estava faltando o curso e que, logo, ia perder a bolsa que recebia. Priscilla perguntou quantos anos tinha o menino – que estava parado em pé ao lado do pai, que respondeu que o menino tinha 16 anos. Priscilla se virou, então, para o menino o começou a falar que ele deveria dar valor ao pai que tem, porque ninguém ia amá-lo como ele é amado em casa e disse que se ele continuasse assim nesse caminho errado, daqui a pouco começaria a ser “esculachado na rua”, ia acabar “levando tapa na cara de policial”. Ela perguntou se era isso que ele queria. O menino, muito constrangido e com vergonha por estar levando um sermão perto do “pé da escada” – onde há um grande movimento de pessoas –, apenas balançou a cabeça indicando que não. Para tentar resolver o problema que lhe foi apresentado, Priscilla disse para o pai que, se ele autorizasse, ela iria arranjar um emprego para o menino. A comandante disse que achava que o jovem ia mudar de comportamento depois que começasse a trabalhar porque ia ver “o duro que tem que dar para ter o próprio dinheiro” e assim passaria a valorizar mais a família. O pai gostou da ideia e eles combinaram que na semana seguinte, depois que passasse o feriado, o jovem iria procurar Priscilla para resolverem os detalhes sobre o trabalho que ela arranjaria para ele.
Alguns minutos depois, quando nos afastamos da comandante e de Mota, Juca começou a criticar o morador que tinha ido pedir a ajuda da comandante. Ele disse que na opinião dele “é muito triste ver que um pai não tem autoridade dentro de casa e que tem que pedir ajuda para uma pessoa de fora resolver os problemas da família”. Juca disse que ficou “chocado” com a cena que presenciamos, porque na opinião dele aquela era uma “questão de família” e não “de polícia”. Ele também criticou Priscilla, dizendo que ela agia como se fosse a “dona” do morro, querendo resolver tudo no morro, assim como o “pessoal da boca” fazia no passado.
Comandante como liderança carismática e o problema da rotinização
Apesar de todas as críticas feitas à Priscilla, é inquestionável que a comandante conseguiu uma grande aprovação dentro e fora do Santa Marta. O presidente da associação de moradores do Santa Marta conta que, através das estratégias de aproximação que passou a usar, a policial conseguiu conquistar uma grande parte da população da favela. Ele narra que ela se tornou capaz de mobilizar até mais gente para participar de eventos, reuniões, festas e outras atividades do que ele próprio e outras lideranças tradicionais da favela conseguiam:
No primeiro ano a relação entre a polícia e os moradores se deu de forma dificultosa. Eu posso dar um exemplo muito prático: eu para regimentar 50 crianças para fazer um movimento qualquer na comunidade, eu tenho a maior, uma enorme, dificuldade. A Priscilla faz um evento ela leva 300 crianças. Aí você já vê a diferença. (…) A Priscilla faz um evento na quadra vão mais de 500 pessoas. A gente pede uma passeata não vão 20 pessoas. A gente pede uma passeata, um movimento para lutar pelo direito do morador e eu não consigo colocar 50 pessoas lá embaixo. A Priscilla faz um movimento, coloca 300, 400 pessoas na quadra. Então, quem está certo, quem está errado? Essa é a interrogação. (Trecho de entrevista com Zé Mário, presidente da Associação de Moradores do Morro Santa Marta)
Por conseguir conquistar muitos moradores da favela e a opinião pública, entre 2009 e 2010, Priscilla acabou passando a ser considerada a “cara” da “nova” polícia que a UPP representava. Como apontou Itamar Silva, um importante líder comunitário do Santa Marta, Priscilla acabou tornando-se “o maior símbolo da UPP”:
Mulher, negra, elegante, boa oratória, mansidão na voz e delicadeza no trato com moradores, ela contrastaria com a respeitabilidade exercida sobre seus comandados e a firmeza no enfrentamento dos remanescentes do tráfico que permaneciam no território. Respeitada por homens e mulheres, invertia a lógica que construiu a imagem do PM junto aos moradores de favela. O tempo que comandou o Santa Marta lhe rendeu o estrelato – capa da revista Veja, perfil publicado em vários meios de comunicação, entrevista na televisão como celebridade, prêmio internacional da ONU, reconhecimento do governo dos Estados Unidos e por aí vai. (Trecho de artigo de Itamar Silva, intitulado “O maior símbolo da UPP à frente da Rocinha” )
Considero que seja possível dizer que a policial, ao longo dos dois anos que comandou a UPP do Santa Marta, apresentou-se como “liderança carismática”. Julgo que, pelo menos, quatro pontos de contato podem ser estabelecidos entre a liderança exercida pela comandante e o “tipo puro” de dominação carismática descrito por Weber (1972). O primeiro ponto é que a liderança baseada no carisma “envolve um governo pessoal e não impessoal” (Bendix, 1960, p.238). Nesse sentido, vale lembrar que o comando de Priscilla era bastante marcado pela pessoalidade.
Durante um dos cursos organizados pela UPP, em uma conversa informal, ouvi a comandante comentando que estava precisando muito tirar férias, mas que não podia se ausentar da favela porque “vagabundo no morro” sabe quando ela está lá ou não no morro. E quando ela não estava, “eles ficam falando para todo mundo que “o morro está tranquilão” e que podem fazer o que quiserem porque a comandante não está na favela”. Esse caso ajuda a evidenciar como a própria comandante parecia acreditar que era a única capaz de resolver uma série de problemas da vida cotidiana no Santa Marta e que, portanto, sua presença era indispensável para a manutenção da ordem na favela.
Além da pessoalidade, há, pelo menos, três outros elementos que compõem “tipo ideal” de liderança carismática apresentado por Weber (1972) que também aparecem na liderança exercida por Priscilla no Santa Marta. O primeiro é que a liderança carismática “domina outros porque, através de sua pessoa, tornou-se manifesta uma missão, que, com muita frequência, revoluciona a ordem estabelecida”. O segundo elemento é que esse tipo de liderança, geralmente, “é produto da crise e do entusiasmo”. E o terceiro a emergência deste tipo de liderança, posteriormente, gera “implicações no problema da sucessão” (Bendix, 1960, p.238).
Priscilla chegou ao Santa Marta em um momento de crise – gerado pela implementação da UPP – com a missão de “pacificar” a favela. Como líder da polícia, ela exigia obediência com base nesta missão que ela acreditava que era seu dever desempenhar. Como líder carismática, ela conseguiu “dominar” a favela porque, através de sua pessoa, tornou-se manifesta a sua missão e sua intenção de revolucionar a “ordem” estabelecida pelo tráfico anteriormente. E, assim, conseguiu um “grau de compromisso por parte dos discípulos sem paralelo nos outros tipos de dominação” (Bendix, 1960, p.238). Mas é importante lembrar que como
a liderança carismática é uma resposta exclusivamente pessoal a uma crise na experiência humana; aqueles que sucedem ao líder carismático enfrentam, portanto, o problema de preservar um carisma pessoal após o fim do líder e da crise, quando as necessidades diárias entram novamente em evidência. (Bendix, 1960, p.239)
É importante ressaltar que quando Priscilla foi convocada a assumir o comando da Coordenadoria Geral de Programas Estratégicos das UPPs, outro policial que trabalhava na UPP do Santa Marta tornou-se o responsável pela UPP da primeira favela “pacificada” do Rio de Janeiro. E essa transição foi marcada por forte turbulência. Assim que ele assumiu o cargo, começaram a circular rumores de que antes de atuar na UPP, ele era policial do segundo batalhão (localizado em Botafogo perto do Santa Marta) e de que ele tinha envolvimento com milicianos:
Falam das histórias dele... Dizem que ele é um ex-miliciano e [as pessoas] têm medo de que ele faça aqui o que ele fazia onde ele comandava, antigamente. Ou seja, uma milícia. (…). Eu, pela minha parte, não vejo ele circulando pela comunidade tanto quanto Priscilla. Ela, antigamente, circulava pela comunidade, andava para cima e para baixo, estava sempre interagindo com as pessoas, independente de querer saber da vida das pessoas ou não. Ela andava, batia papo, sumia uns tempos, mas [estava] ali na comunidade sabendo o que estava se passando. Eu não vejo ele fazendo isso. (Trecho de entrevista com uma moradora do Santa Marta).
O comando desse novo policial na UPP do Santa Marta não durou muito tempo e quando ele saiu circularam rumores de ele teria sido afastado porque estaria envolvido em um esquema de corrupção na favela. Embora tal informação não tenha sido confirmada oficialmente, o Capitão Rocha que passou a comandar a UPP do Santa Marta confirmou durante uma entrevista que fiz com ele que foi chamado para atuar na favela porque “o capitão daqui já tinha passado por um desgaste com o comando das UPPs”.
Rocha explicitou ainda que o fato dele ter substituído o capitão anterior que tinha uma péssima reputação e era considerado como um comandante “ausente”, que não dialogava com a população, facilitou o trabalho dele. Na opinião de Rocha – que tinha um perfil mais próximo ao de Priscilla e buscava se aproximar dos moradores – o tempo em que esse outro capitão atuou como comandante da UPP do Santa Marta foi importante para os moradores verem que “a questão do comando influencia na administração da UPP”.
Vale lembrar que o peso da influência do comandante na administração das UPPs tinha relação direta com a pendência de critérios claros que estabelecessem a forma como o chamado “policiamento de proximidade” deveria funcionar cotidianamente nas favelas “pacificadas”. Essa falta de institucionalização do projeto das UPPs gerou, pelo menos, dois efeitos bastante negativos. O primeiro foi que essa ausência de critérios dificultava a realização de avaliações sistemáticas e periódicas do trabalho dos policiais, assim como dos comandantes de diferentes UPPs. E o segundo efeito foi que todas decisões tomadas ficavam a cargo do comandante de cada unidade, o que acabava fazendo com que o policiamento variasse bastante de favela para favela e mesmo de um momento para o outro em uma mesma UPP, dependendo do humor do comandante em cada situação.
Como criticou Cano (2014), durante todo o período de existência das UPPs tudo dependeu, portanto, “da vontade e da inclinação do comandante local. Não houve um esforço de institucionalizar essa relação”. E, desse modo, as tomadas de decisão nas UPPs sempre foram muito pessoalizadas e o comando muito baseado no carisma do comandante de cada unidade, o que gerou uma série de implicações no problema da rotinização do projeto.
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