Drogas na Cidade de Deus
Autora: Maria de Lourdes da Silva
Origens da Cidade de Deus
A história da Cidade de Deus começa com uma ação violenta do Estado: a remoção compulsória de favelas das áreas “nobres” da cidade do Rio de Janeiro. Promovida às custas de invasões de domicílio, despejo dos moradores e incêndios criminosos, a proposta era realocar populações inteiras em conjuntos habitacionais construídos em regiões distantes, de difícil acesso aos locais de emprego e ocupação dessas populações. Assim como as favelas de origem, contudo, esses conjuntos habitacionais também não contavam com infraestrutura de serviços, eram desassistidas de serviços públicos essenciais e contavam com escasso sistema de transporte público. O leitmotiv das remoções de favelas era a valorização dos terrenos ocupados, associado ao esforço de ordenamento do espaço da cidade pelo Estado, sempre precário, seletivo e excludente. Esse modelo de comprometimento do Estado republicano brasileiro com a modernização tem nas reformas Pereira Passos o primeiro grande investimento à modelagem do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. Orientado às necessidades do capital e interesses das elites, não constava da proposta o fornecimento de serviços essenciais à população, como saneamento básico, água encanada, eletricidade, educação, saúde, trabalho e segurança, exceto esse último item, a força policial foi o único serviço ofertado de modo ostensivo pelo Estado desde o início.
Os demais serviços foram sendo criados aos poucos e à medida em que novos conjuntos habitacionais eram agregados pelo Estado ao projeto inicial. A Cidade de Deus não foi construída de uma única vez e por um único expediente. A distribuição discricionária dos serviços prestados pelo Estado à comunidade permanece como uma estratégia de ação, denunciada, nesse espaço, por sua presença precária e seletiva ao longo das décadas subsequentes, estabelecendo um padrão de asfixia lento e constante das populações que ali vivem, exilando gerações sucessivas do desenvolvimento e do uso pleno de suas potencialidades.
Aspectos da remoção das favelas originárias que compuseram a Cidade de Deus indicam a fragmentação dessas populações, incluindo separação de núcleos familiares, obrigando-os a reestruturação dos laços societários, especialmente quanto à vizinhança. Em Cidade de Deus acresce o fato de diferentes glebas terem sido construídas em diferentes momentos do percurso de formação da comunidade e tenha sido um dos fatores pelo qual ela tenha estabelecido uma identidade social local mediada por essa vizinhança: Quadra 141, Vacaria, Apês, Quadra 13, Moquiço, Pantanal, etc. Dentre as diversas formas associativas criadas no processo de sociabilidade pelas diferentes populações das favelas removidas àquele conjunto, denominado Cidade de Deus, tais como escolas de samba, associações de moradores, times de futebol, grupos ligados às organizações religiosas em suas diversas matrizes, das afrodescendentes às cristãs, temos aquelas ligadas às ações criminosas como grupos ligados às ações criminosas, como assaltos e roubos e, na sequência, venda de drogas, etc. Desde que diferentes grupos ligados às atividades criminosas passaram a conviver nesses territórios, uma dinâmica de reconhecimento mútuo e de definição e repartição do território se estabeleceu na comunidade. A venda de maconha vai se configurando, ao longo das décadas de 1960-70, como uma atividade rentável e mais segura do que os assaltos e roubos aos estabelecimentos comerciais, por exemplo, entre outras coisas, porque seus praticantes não precisavam se arriscar em outros territórios. Tal disputa está na origem da guerra pelo controle do tráfico de drogas no local.
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A formação das bocas de fumo de maconha
Há na base histórica daCannabis[1] no Brasil uma associação dessa droga com os negros e pessoas consideradas de vida errante. Como resultado dos poucos registros até aqui encontrados sobre aCannabisem época remotas da história do país e das dificuldades para rastreá-los, até recentemente acreditava-se que aCannabistinha sido trazida para o Brasil pelos escravos africanos, o que não é exatamente verdade já que muitos marinheiros portugueses envolvidos no comércio entre Portugal, suas colônias e o Oriente a conheciam e faziam uso de suas propriedades recreativas e terapêuticas (FRANÇA, 2015). No início do século XX, quando a proibição legal das drogas foi estabelecida no país, os “homens de ciência” a associaram aos negros, justificando vigilância e interferência nos costumes e na cultura de afrodescendentes brasileiros, como as investidas policiais nos terreiros das religiões de matriz africana no início do século XX (SILVA, 2015).
Até a metade do século XX, em que pese a inclusão da maconha na lei de proibição às drogas em 1932, havia um sem número de pequenos cultivadores espalhados pelo país afora, sendo parte dessa produção vendida por comerciantes da planta de norte a sul do país, transitando entre as regiões rurais e os centros urbanos. O plantio daCannabis, assim como o aproveitamento de suas propriedades terapêuticas, recreativas, ritualísticas, etc., ao que parece, era popular como os alambiques domésticos de cachaça.É provável que muito das tradicionais formas de uso pela população tenham chegado à periferia dos grandes centros.
As primeiras bocas de fumo em Cidade de Deus – assim também os primeiros pontos de venda de drogas nas favelas – eram abastecidas apenas de maconha e não à toa levam esse nome. Atendiam, inicialmente, aos usuários locais, não necessariamente pessoas envolvidas em ações criminosas, mas usuários cujos hábitos são trazidos de experiências de sociabilidade de outros tempos, que remetiam às tradições de uso herdados de outras formas de viver e conviver, demarcando estratégias de conformação de identidade pessoal e social em meio às relações comunitárias, no microcosmo das alianças locais.
Até o fim da primeira metade do século XX, a maconha não tinha penetração significativa nos demais segmentos sociais, o que ajudou a conformar, no caso da região urbana do Rio de Janeiro, espaços de circulação da droga adstritos aos locais de maior presença das populações pobres, negras, mestiças e migrantes. Esse estigma da maconha como droga de negros, pobres, migrantes e “pessoas de vida errada”, mudaria drasticamente a partir das duas primeiras décadas da segunda metade do século XX, quando artistas, intelectuais e, sobretudo, jovens das classes abastadas começaram a fazer uso da maconha dentro do contexto da contracultura (DELMANTO, 2018).
Nesses segmentos sociais, o hábito chega importado da Europa e dos Estados Unidos, no bojo das formas de contestação aomaintreame ao sistema capitalista. Esse contexto teria criado as condições necessárias para que a droga saísse dos redutos pobres, incrementando, inicialmente, sua disponibilização em outras localidades da cidade, como escolas, praças, cinemas, onde ambulantes e transeuntes insuspeitos (doravante traficantes) dispunham da erva e a negociavam. A imprensa já fazia alarde sobre o uso da maconha entre estudantes universitários e secundaristas, vendida pelos traficantes que se deslocavam através da cidade (FRANÇA, 2015). Há, contudo, poucos registros de como o comércio sorrateiro dessa droga “no asfalto” abre espaço ao comércio organizado das bocas-de-fumo nas áreas marginalizadas das favelas. É certo que o consumo de maconha por outros segmentos sociais, sobretudo pelos jovens filhos das classes média e alta, provoca revisões a respeito dos significados dessa droga construídos tanto pela medicina quanto pela justiça e pela lei.
Médicos e psiquiatras nacionais passam a falar aos pais dos jovens das classes abastadas, apresentando as novas pesquisas internacionais que relativizam os seus efeitos, assim como seu poder de drogadicção. Enquanto isso, os grupos criminosos se reorganizam para fornecer a droga a partir da favela, longe da presença ostensiva do Estado e, ao mesmo tempo, sem os riscos do enquadramento por vadiagem e/ou tráfico ao transitarem pela cidade. Esse aspecto traz um elemento importante à trajetória de consolidação das bocas de fumo em tempos recentes, uma vez que parte dos seus integrantes nunca saem da favela, não conhecem e não transitam por outros espaços da cidade, não convivem em outros ambientes com outras pessoas e realidades sociais. Uma população confinada pelo vínculo com tráfico, pela pobreza de experiências humanizadoras, cuja existência está circunscrita aos limites da rede de convivência estabelecida na comunidade, definida pelos valores de um universo mediado pela lógica do capital e da guerra.
A associação dessa droga com o crime e a violência passa a conviver com o repertório de contestação, muitas vezes pacífica, dos hippies e dos praticantes/simpatizantes do modo de vida pregado pela contracultura. E, embora o ácido lisérgico (LSD) seja, juntamente com a maconha, a droga reverenciada da contracultura, o LSD não era oferecido nas bocas de fumo. Seu tráfego era outro. Substância sintética (produzida em laboratório) e de uso médico, ela era praticamente desconhecida dos moradores da favela. Essa droga não terá sua venda vinculada às bocas de fumo desses locais. Até hoje, as bocas de fumo são responsáveis pela venda de apenas uma parte das drogas em circulação, enquanto uma variedade significativa de drogas ilícitas permanece sendo vendida no asfalto, por traficantes bem diferentes do morador das favelas, embora as bocas de fumo tenham se tornado o símbolo máximo de oferta de drogas ilícitas e contra as quais a ação policial concentra seus esforços muitas vezes brutais.
Essas novas representações sobre a erva vão ao encontro das significações correntes e consagradas nos usos tradicionais dessa erva. Não somente nas favelas periféricas dos grandes centros urbanos, mas espalhados pelo país, usuários tradicionais resistiram às imposições da lei, sustentando representações e usos da maconha integrados à tradição popular recreativa, festiva, ritualística, religiosa, medicinal, etc. Essa cultura, contudo, permanecerá represada, pois a flexibilização dada aos significados e sentidos da droga não têm origem no reconhecimento dessas tradições culturais e cultivos locais. Trazida por membros das classes abastadas como parte do “aprendizado” no contato com o mundo civilizado, tais visões sobrepujam, com o tempo, entre os jovens das favelas, as tradicionais concepções e se impõem naquele espaço, tornando cada vez mais reminiscentes os saberes e práticas populares de uso da erva vinculado às diferentes manifestações culturais, passando a estar consorciado às condutas de transgressão, rebeldia e resistência à maneira da contracultura dos anos 1960 e não àquela dos usos tradicionais, aos poucos, apagada.
A história das origens das bocas de fumo ainda precisa ser contada. Embora haja diversos estudos sobre o tráfico de drogas, carecemos de pesquisas sobre a conformação desse modelo de venda varejista. Do que se sabe até o momento, o incremento do consumo pelas classes abastadas entre as décadas de 1960-70 impactou na forma como o comércio e o consumo dessa droga existia até então nas favelas, assim como em outras regiões do país, resultando em considerável alteração na tipologia das ações criminosas. Até aquele momento, as quadrilhas de assaltantes constituíam os agrupamentos mais articulados e perigosos. Tais quadrilhas surgem ainda nos anos 1950, quando o crescimento populacional desordenado caminhava paralelo ao incremento da violência no Estado do Rio de Janeiro. Os jornais da época registraram o fato e indicavam que as ações criminosas pautadas no estelionato de “gatunos” e “malandros” cedia espaço ao novo enfrentamento direto entre polícia e “bandido”, onde a arma de fogo substituía as armas brancas (faca, navalha, peixeira, etc.). Quando as ações das quadrilhas de assaltantes de bancos e se tornam mais vulneráveis e menos rentáveis do que aquelas ligadas ao comércio de drogas, ocorre uma transferência e essa atividade passa a agregar mais pessoas. A migração de uma atividade a outra altera a correlação de forças entre os grupos locais que, uma vez ligados à atividade do tráfico, intensificam as disputas pelos pontos de venda de drogas, incrementando as rivalidades e os conflitos locais.
Ainda carece de mais pesquisas os modos como o fornecimento da maconha à época deixa de ser feito pelos pequenos cultivadores espalhados pelo país e é agregado ao aparato do tráfico internacional. Porém, tais questões nos levam a entender que o tráfico de drogas tem percurso próprio e distinto e que somente em algum momento de seu desenvolvimento as favelas passaram a compor um aspecto dessa trajetória. As vulnerabilidades e potencialidades que fazem da favela um espaço propício à venda dessas substâncias deita raízes especialmente no fato de estarem para além de onde o Estado concentrava suas atenções através de suas instituições de assistência e amparo social e, sobretudo, de controle social, quando a “vista grossa” da polícia, por um lado, e o seu envolvimento na construção do aparato do tráfico de drogas no país, por outro, fazem a atividade tomar as proporções que tem hoje.
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As guerras criadas pela “Guerra às Drogas”
Nos anos 1960, o crescimento da criminalidade na cidade aliada à máxima quanto a impossibilidade de recuperação de certos “bandidos”, aliado ao regime instalado após o Golpe de 1964, cria a ambiência necessária à origem dos grupos de extermínios, também conhecidos como esquadrões da morte e, mais recentemente, por milícias. O ambiente político repressivo da Ditadura Militar justifica atividades de extermínio do inimigo irrecuperável, seja ele vadio, bandido, assassino, viciado, traficante, subversivo, comunista, maconheiro. Apesar desse vasto leque aparente de alvos, a corrupção entre os poderes é o que permite aos grupos de extermínio tirarem vantagens de contravenções, como a prostituição, o jogo do bicho, e ações criminosas, como assaltos, homicídios e tráfico de drogas e de armas. Assim, o processo de sedimentação do tráfico de drogas nas favelas passa pela ação seletiva de organizações criminosas, que lucram com a cobertura às atividades ilegais e eliminam os adversários quando necessário. Em 1979, a Falange Vermelha nasce no presídio da Ilha Grande, a facção criminosa criada pelos próprios criminosos ligados ao tráfico de drogas. Vê-se que esse modelo de organização não era devedor apenas das trocas entre presos políticos e bandidos comuns, mas o desdobramento dessa forma associativa voltada ao crime e à corrupção alimentada pelo Estado.
Assim como os esquadrões da morte ofereciam segurança às regiões controladas e eliminavam os indesejados, na Cidade de Deus os donos das bocas de fumo também iniciaram prestando serviços à população. Proteção, segurança, dinheiro para despesas essenciais, prestígio aos mais chegados. Visibilizados pelo dinheiro que o tráfico trazia, pelo poder das armas, pela notoriedade dada pela cobertura da imprensa, os conflitos entre os traficantes locais e a Cidade de Deus – assim como outras favelas, na sequência – passaram a frequentar o noticiário local e, às vezes, nacional, como expressão da guerra iniciada nas comunidades pelo controle dos pontos de venda varejista de drogas. Ainda que o tráfico de drogas alimente as estruturas de poder do Estado, as quadrilhas de traficantes da favela não seguiram o percurso das milícias, que se alojaram no poder e se estabeleceram como força de enfrentamento aos traficantes (embora não necessariamente ao tráfico de drogas), em defesa das populações, estratégia intensificada após a derrocada das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. A Cidade de Deus é território dos traficantes, não dos milicianos. Mesmo que a tática dos traficantes não seja a de cobrar por serviços prestados e pela segurança dos moradores locais como fazem as milícias, as relações do tráfico com a população local sofreram alterações nessas décadas.
No início dos anos 1970, em Cidade de Deus, as bocas-de-fumo já eram um negócio promissor, ponto de atração de pessoas de outras regiões e classes sociais para comprar, com relativa segurança, a quantia de maconha desejada. Esse trânsito de “bacanas” na favela impacta no crescimento do consumo recreativo entre os jovens locais, aderidos tanto aos movimentos de contestação e lutas políticas quanto seduzidos pela sociedade de consumo e pelo status de compartilhar dos hábitos e valores das pessoas abastadas de outras regiões da cidade. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a cocaína chega às bocas de fumo das favelas. Na Cidade de Deus, esse período é marcado pelo acirramento das lutas pelo controle das bocas de fumo e pelo crescimento sem precedente da violência local. Nesse momento de profunda crise econômica no país, o barateamento da cocaína – tradicionalmente uma droga cara e somente acessível às populações com alto poder aquisitivo – propicia o crescimento de consumidores locais e também a adesão de mais homens jovens às atividades do tráfico. A crise econômica, as altas taxas de desemprego, a vigência de uma logística educacional apoiada na meritocracia podem ser listadas como fatores decisivos nesta equação.
Os conflitos se realizam, cada vez mais, com o uso de armamento pesado, o que torna o tráfico de armas tão expressivo quanto o de drogas. A população local vê crescer e assumir importância desmedida as atividades ligadas à venda de drogas, assim como a interferência dos assuntos ligados à economia dessa atividade no cotidiano da comunidade. Confrontos entre polícia-traficantes e traficantes-traficantes criam rotinas de toques de recolher, tiroteios repentinos, profusão de mortes, fragmentação do espaço de circulação na comunidade em função da delimitação territorial estabelecida pelos donos das bocas de fumo, em uma palavra, desestabilizam as rotinas da população local, desde então atravessadas por insegurança, incertezas, medo e terror. A violência que grassava pelo país naqueles anos encontra uma forma precisa de manifestação local, que será tomada pela mídia como especificidade exclusiva da Cidade de Deus, consubstanciada na máxima de comunidade “mais violenta do país”.
Admitir ser morador da Cidade de Deus poderia significar o fim de uma oportunidade de emprego ou da possibilidade de encontrar aceitação fora da comunidade, gerando estigmas e preconceitos. Para isso, contribui, involuntariamente, a pesquisa realizada ao longo das décadas de 1980 e 1990, conduzidas pela antropóloga Alba Zaluar, que culminaram com a publicação do livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, em 1997, e no filme homônimo em 2002, quando foram trazidos a público aspectos da violência cotidiana dos grupos ligados às atividades do tráfico de drogas. Essas obras deram ensejo a críticas que aludiam às representações metonímicas, ao reduzirem as diversas experiências de existência e modos de vida das populações locais às definidas pelo recorte metodológico orientador da pesquisa. De denúncia sobre as condições de vida local dos grupos envolvidos no tráfico de drogas, esses trabalhos foram tomados como expressões totalizante dos modos de existência na comunidade, gerando inconformidades e reações diversas entre os moradores. Esse dilema, no entanto, ocultava outro: ao atribuir às obras exposição adequada da população local, por entenderem que postulava a violência como modus vivendi próprio à Cidade de Deus, promovia-se o apagamento, por um lado, do quão arraigada era a violência na cultura nacional e não apenas em Cidade de Deus deixando escapar seus lastros e a responsabilidade do Estado e da sociedade pelo que ali ocorria e, por outro, da riqueza da pluralidade de manifestações de vida que ali pululavam juntamente com as diversas formas de organizações político-culturais, circunstâncias para além do recorte da pesquisa do livro.
Outras guerras pelo controle do tráfico de drogas travado em outras comunidades do Rio de Janeiro horizontalizaram essas realidades. A todas coube e cabe ainda reação aguerrida no intuito de não se deixar cooptar pelo reducionismo das representações da violência, evidenciando as armadilhas dos usos políticos-ideológicos das representações e das lutas que articulam as construções identitárias dessas populações no conjunto da cidade do Rio de Janeiro. O episódio é paradigmático do jogo de forças que intenta demarcar esses territórios como seara do vale-tudo, justificando as ações violentas das forças policiais, o “abate” dos bandidos, a indiferença da sociedade.
O tráfico permanece em Cidade de Deus e a comunidade continua existindo em sua multiplicidade para além disso. A visão idílica do traficante como provedor das necessidades locais, há muito cedeu lugar ao reconhecimento do tráfico como forma de opressão e como expressão da ausência de interesse do Estado para alterar esse estado de coisas. Em que pese o fato de os donos da boca de fumo serem, em geral, cria local, hoje há poucas ilusões sobre o poder implacável e inclemente desses chefes. O alinhamento às grandes organizações do crime organizado demonstra esse fato. A despeito disso, as táticas do tráfico de drogas permanecem imiscuídas às práticas de sociabilidade locais. Pablo das Oliveiras ao descrever o papel do mutirão da laje e a função social da laje, abre à possibilidade de compreender como a laje é utilizada pelos traficantes como espaço de vigilância, como posto avançado de “olheiros” e “fogueteiros” que avisam da chegada da polícia e da presença de estranho à localidade.
De todo modo, as questões relativas às drogas na Cidade de Deus, como de resto, nas outras regiões do país, não são as drogas ilícitas as únicas a trazerem problemas à população local. As drogas lícitas, quase sempre minimizadas quanto à capacidade de gerar riscos e danos frente às drogas ilícitas, também são geradoras de grandes transtornos à população local. Os altos índices de alcoolismo e de suas comorbidades, o uso excessivo de medicamentos controlados como estratégia da população para suportar o cotidiano implacável e violento.
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Considerações Gerais
O recrutamento de jovens pelo tráfico de drogas caminha progressivo e ascendente, atraindo cada vez mais jovens às atividades do tráfico. Contudo, percebe-se, ao longo desse período, que o consumo de drogas tem se afastado da condição simbiótica que mantinha com as ações criminosas e com o tráfico. Cada vez mais, os jovens usuários de drogas da Cidade de Deus separam o consumo de drogas das atividades do tráfico. O consumo é entendido como uma atividade de lazer, geradora de prazer, distração e se situa numa ordem de grandeza semelhante ao consumo de álcool, por exemplo. Não se trata mais de enfrentamento da lei, mas de ignorá-la. Não se trata de ato criminoso, mas de afirmação do direito ao divertimento, à recreação.
As drogas têm sido usadas como um eficaz dispositivo de controle social que atinge soberanamente as populações jovens, masculinas, pobres, negras e mestiças. O tráfico da favela é um negócio lucrativo, uma empresa que atende aos ditames da lógica capitalista aliada aos preceitos neoliberais mais radicais, com valorização da competência para o empreendedorismo pessoal bem-sucedido, implicando sagacidade e coragem para os desafios que envolve. Há um estilo de vida demarcado pelas alegorias do sucesso pessoal, do poder, do dinheiro sustentado pela sociedade de consumo, dos riscos assumidos. O escopo dessa engrenagem traduz uma continuidade entre a lógica que ordena o recrutamento de jovens para o tráfico e a que vigora na sociedade de classes com larga vantagem àquele, porque não requisita acúmulo de capital pessoal como escolaridade ou especializações.
Nesse aspecto, a Cidade de Deus tem dado mostra de que a educação formal não tem conseguido representar uma alternativa para os jovens. Segundo dados do Censo Escolar/INEP/MEC, no ano de 2013, houve um aumento de mais de 50% no número de de alunos reprovados no ensino médio em Cidade de Deus, e que o percentual de abandono do ensino médio entre 2013 e 2014 foi acima dos 60%[2]. Do mesmo modo, o percentual de mães adolescentes na Cidade de Deus (abaixo dos 20 anos) está 7,7% acima da média da cidade do Rio de Janeiro.
A violência gerada nas guerras pelas drogas promoveu um deslocamento importante no perfil dos compradores que vão às bocas de fumo. Muitos usuários da cidade são abastecidos por intermediários e por uma variedade de drogas que não passam pelas bocas de fumo das comunidades. Essas bocas contam hoje com crescente número de consumidores locais entre estudantes e trabalhadores. Chegamos ao arcabouço perverso e bem urdido da guerra às drogas. É preciso interferir nesse modelo com urgência e encontrar formas de educar sobre as drogas de modo a promover relações saudáveis entre os homens e essas substâncias.
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Bibliografia:
DELMANTO, J. História social do LSD no Brasil: os primeiros usos medicinais e o começo da repressão. (Tese de Doutoramento). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 291, 2018.
FIOCRUZ. Roda de Conversa - diagnóstico Cidade de Deus. Farmanguinhos, 2017. Disponível em: http://www.far.fiocruz.br/wp-content/uploads/2017/09/RodaConversa_DiagnosticoCDD_Jacob.pdf.
FRANÇA, JMC. História da Maconha no Brasil.São Paulo: Três Estrelas, 2015.
LINS, P. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), Iuperj, 1999.
OLIVEIRAS, P. O Mutirão da Laje. Dicionário Carioca de Favelas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019.
SILVA, ML. Drogas – da medicina à repressão policial.Rio de Janeiro: Outras Letras, 2015.
ZALUAR, A. A Máquina e a Revolta. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984.