Espaços lugares e festas
Esse trabalho se propões apresentar uma breve reflexão sobre as alterações nas dinâmicas urbanas em dias de festas populares. Nesse trabalho serão abordadas duas festividades em locais e temporalidades diferentes. O arremate da folia de reis “Nova flor do oriente” localizada no bairro do Mutua no município de São Gonçalo, Rio de janeiro, acompanhado no dia 1 de setembro de 2018. E a festa de São Cosme e Damião, que foi acompanhada no dia 27 de setembro de 2019, na zona norte do Rio de janeiro.
Folia de reis
A folia de reis é uma festa popular que ocorre anualmente, que visa representar de maneira festiva e ritual a viagem dos três reis magos (Melchior, Baltasar e Gaspar) a cidade de Jerusalém. Na bíblia cristã essa viagem tem como intuito visitar, presentear e adorar o recém-nascido Jesus. A folia de reis é dividida em dois momentos distintos. O primeiro conhecido como giro, que tem seu início no dia 25 de dezembro e tradicionalmente tem a data de termino prevista para o dia 6 de janeiro (dia de reis). Porem no Rio de Janeiro esse período é prolongado até o dia 20 de janeiro, que é o dia de São Sebastião o padroeiro da cidade. O segundo momento é o arremate que será o foco deste trabalho. A data do arremate pode variar de folia para folia, sempre priorizando escolher dias em que não aconteça qualquer outra folia, uma vez que ocorre visitas de outras folias, durante o arremate. Durante o giro as folias levam suas respectivas bandeiras à casa dos adeptos, em um período de peregrinação que é uma das primeiras representações simbólicas da história dos três reis magos. Da mesma maneira que Melchior, Baltasar e Gaspar viajaram para abençoar o menino Jesus, a folia realiza essas viagens em que ao chegar nas casas iram entoara cânticos em um ritual que visa abençoar o lar e os anfitriões. Esse período as relações entre os foliões e os adeptos se estreitam uma vez que em troca da benção os anfitriões retribuem com oferendas que tradicionalmente são pequenos banquetes em que ocorre um contato menos ritualístico e mais social.
Na segunda parte acontece o arremate. O arremate é o fechamento do ciclo da folia e uma festa de rua que integra as folias, os adeptos e os bairros que estão localizadas as folias. Essa segunda parte também está separada em momentos distintos, que ocorre em espaços, alterando a dinâmica dos mesmos. Por mais que nesse trabalho busco recortar esses espaços para desenvolver a analise, gostaria de pontuar como marcado por Mendel, esses espaços estão constantemente em dialogo se complementando e se sobrepondo. A casa e seus diversos “lugares”: Acionando o conceito de lugares apresentado por Marc Augé em seu livro “Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade”[1], busco analisar as mudanças causadas pela festividade no domínio da casa e mais à frente no domínio da rua. Lembrando que além do caráter festivo a folia é marcada pelo seu caráter ritualístico. Esse caráter ritualístico é o que mais marca a primeira etapa que ocorre dentro do ambiente privado das dependências do quintal do mestre Fumaça. Nesse momento podemos dividir o quintal em três setores específicos: o altar que se encontra a bandeira da folia, um ambiente nos fundos do quintal que funciona como um refeitório e a entrada do quintal em que ocorre a cerimonia da folia tendo em mente as múltiplas noções da categoria espaço como escrito por Roberto Da Matta “Não é preciso especular muito para descobrir que temos espaços concebidos como eternos e transitórios, legais e mágicos, individualizados e coletivos.”[2] Pensado o lugar antropológico como conjuntos de elementos ordenados[1] caracterizado pelo percurso da sua linguagem e pensando no caráter relativo do espaço apresentado por Agier [3], analisemos o primeiro desses setores que será o espaço do refeitório. O refeitório foi o primeiro lugar que me dirigi, era início da noite e fui convidado para jantar com os foliões. Como dito por Mendel, no arremate a refeição tem um importante papel de agente na construção da sociabilidade para a folia. Nesse ambiente se destaca o palhaço que não se sentava a mesa com os outros foliões, mostrando a influência do rito naquele espaço, o estruturando fora das dimensões de uma simples casa. Esse espaço, por mais que entre na categoria transitório dentro desse cosmo da folia, materializa a narrativa do evento, personificando a rejeição do palhaço com sua carga negativa (uma vez que o mesmo representa um dos perseguidores) e rompe o caráter privado do lar com o fluxo de indivíduos que não necessariamente pertence aquele lar.
O segundo setor que podemos abordar nesse trabalho um cômodo da casa que acomoda a bandeira da folia e seu altar, funcionando como uma espécie de santuário. Se encaixando dentro da categoria de espaço magico e novamente materializando as narrativas abraças pela Communita (MATTA, 1973). O palhaço novamente se destaca agora nesse espaço, uma vez que, para entrar nesse ambiente o folião vestido de palhaço deveria retirar sua máscara e pôr no chão virada para baixo, além de entrar de joelhos. Me foi explicado que o palhaço é a representação dos perseguidores de jesus que se arrependeram e se incumbiram da missão de afastar outros perseguidores. É interessante pensar que toda essa carga profana causa uma série de limitações na ocupação do “lugar”, tornando o espaço da casa para o palhaço mais próximo do universo individualista da rua do que de um espaço doméstico, que como descreve Da Matta, “todos são pessoas” ligados por algum tipo de vínculo, nesse caso o da hospitalidade. O terceiro espaço é o quintal em que ocorre a cerimonia da folia, além de ser um espaço de transito e conexão entre as múltiplas localidades em que a festa está situada, podendo ser encarado como um espaço “arruado” (MATTA,1997). No final da cerimonia o altar com a bandeira da folia é movido para esse espaço do quintal e a folia sai da dependência do quintal para a rua. Durante a noite outras folias iram entrar no quintal depositando suas bandeiras próximas do altar, além de se dirigir para o espaço que está funcionado como refeitório. A ocupação da rua: Da Matta em seu livro “carnavais malandros e heróis” fala sobre como a festa do carnaval muda o planejamento urbano, fechando o comercio e o transito da cidade por exemplo. No nosso caso a festa tem o impacto diferente do carnaval, uma vez que em vez de fechar ele abre comércios momentâneos, através de barracas de bebidas, além ocupar as ruas noturnas da periferia. Além da ocupação do espaço, modifica a rotina da vizinhança, inclusive daqueles que não participam da folia, uma vez que a folia é marcada pela sua bateria, brincadeiras e rezas, contando inclusive com um carro de som. Ou seja, antes do evento como descreve Mendel há toda uma preocupação em avisar os vizinhos sobre o mesmo, principalmente por se tratar de um evento que dura até a manhã do dia seguinte.
Essas mudanças causadas pela aptidão que as festas de rua têm de subverter o cotidiano[2] afetando a esfera do público e do privado, do individual ao coletivo, da casa a rua, materializando suas narrativas nos espaços urbanos e construindo seus lugares de festa. Outra importante festa de rua que causa mudanças nas dinâmicas urbanas, inclusive transformando “não-lugares” em lugares de festa, de devoção e de memória é o dia de São Cosme e São Damião.
O dia de São Cosme e São Damião
No dia 27 de setembro ocorre a mais relevante expressão de devoção aos santos Cosme e Damião (BARTOLO, 2018). Marcado pela distribuição de doces e brinquedos e devoções o dia causa uma movimentação incomum de crianças pela rua, além da penetração desses indivíduos em ambientes que não fazem necessariamente parte do seu cotidiano. Para discorrer sobre o assunto me apoiarei em algumas observações realizadas no dia 27 de setembro de 2019 em que acompanhei a distribuição de doces na zona norte da cidade do rio, em que fui acompanhado por Lucas Bartolo que além de tradicionalmente participar da distribuição de doces, realiza pesquisa sobre a festa. Tendo em mente os conceitos abordados de Da Matta o primeiro ponto que gostaria de abordar é a dinâmica da rua com condôminos, em especifico o condomínio que visitei em que reside o Lucas. Cheguei no condomínio no início da tarde e já acontecia a movimentação das crianças em busca de doces. Pelo fato de região onde moro (São Gonçalo) não ter essa tradição tão viva estranhei a movimentação das crianças desde a entrada do condomínio. Aparentemente esse fluxo da rua para o condomínio é normal, porem como aborda Bartolo o binarismo entre rua/casa está presente principalmente quando pensamos em categorias como “morador e gente de fora” levantadas por Bartolo em seu texto. É importante observar que mesmo com essas categorias não havia nenhum impedimento perante essas crianças. Dentro do condomínio outra dinâmica que alterava o cotidiano da cidade era a presença dos pais, em que muitos faltaram seus empregos para acompanhar seus filhos, reproduzindo a tradição de pegar doces e assim mantendo a mesma. Um dos motivos desse fluxo pode ser tradição do local em distribuir doce, como aponta Hobsbaw, a tradição tem uma forte aptidão de atração para sim. Pensando em tradição, gostaria de abordar um outro momento do dia e outra ocupação de espaço urbano, mas dessa vez materializando não somente a devoção e a festa, mas também a memória e o afeto. Também no dia 27 visitei uma praça próxima a paroquia de São Cosme e Damião (que não estava distribuindo doces, uma vez que no calendário litúrgico a festa ocorre no dia 26) em que na praça havia um altar aos santos, além de uma mesa com doces que ocorria a distribuição de doce com uma longa fila de crianças e adolescentes. A praça e essa distribuição é mantida por moradores de um condomínio a frente da praça. Uma das interlocutoras ao falar do santuário que havia em frente, comentou sobre a ligação das estatuas achadas por seu falecido marido e sobre como ela cuida desde então, inclusive fazendo reparos das constantes depredações que o altar sofre. A depredação do altar que não modifica, porem focaliza o caráter do conflito, nesse caso religioso, envolvido no subúrbio carioca. Nas falas dos interlocutores a denúncia do preconceito religioso foi algo recorrente, tornando aquele espaço além de um lugar de devoção e de memória (POLLAK), um lugar de conflito. Gostaria de comentar brevemente outro ponto do dia de São Cosme e Damião que é a utilização do espaço público pelas crianças. Como aponto Freitas, na festa adultos e crianças compartilham um mesmo cosmo e mantém hábitos próprios durante a temporalidade da festa. O fato das crianças menores está sempre acompanhadas de crianças maiores ou adultos, a confecção dos sacos de doces pelos adultos paras crianças, confecção desses sacos que tem um impacto de direto nas vendas dos atacados (FREITAS,2015), além da necessidade do aumento da atenção dos adultos principalmente no transito uma vez, que há um fluxo desordenado de crianças inclusive pelas pistas.
Conclusão
Este breve trabalho se propôs levantar algumas questões sobre a construção de lugares de festas pela materialização dos seus discursos e narrativas e a utilização de espaços em dias de festas urbanas no estado do Rio de Janeiro, passando da utilização do espaço noturno a relação binaria entre o público e o privado.
Referências Bibliográficas
- ↑ 1,0 1,1 AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994
- ↑ 2,0 2,1 DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5° edição. Rio de Janeiro: 199
- ↑ AGIER, Michel. “Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos". São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
BARTOLO, Lucas. Entre a caridade, a diversão e o medo: o dia de Cosme e Damião em uma vila do subúrbio carioca. Infratextos, Rio de Janeiro:, 2018.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5° edição. Rio de Janeiro: 1997.
__________. Carnavais, malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 4° edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
__________. Ensaios de antropologia estrutural. 2° edição. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. FREITAS, Morena B. M. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de Janeiro. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa e Pós-graduação em Antropologia Social, UFRJ, Rio de Janeiro.
HOBSBAWM Erick & Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
MENDEL, Luiz Gustavo. Giros Urbanos: Uma etnografia da festa do arremate da folia de reis de São Gonçalo-RJ. 2017. Tese (Doutorado em antropologia social). Programa de pós-graduação em antropologia, UFF, Niterói.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992