As lutas do povo do Borel

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 15h10min de 5 de julho de 2023 por Thiagoferreira (discussão | contribs)

Autor: Mauro Amoroso thumb|right|ligação=

Introdução

Em maio de 1981, foi enviada uma denúncia anônima, através de uma carta, ao delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). O conteúdo da correspondência tinha como foco alertar “diversas irregularidades que vêm acontecendo na União dos Moradores do Morro do Borel”. O estopim que motivou a denúncia teria sido o lançamento do livro “As lutas do povo do Borel”, de autoria de Manoel Gomes, um ex-morador do local, “militar reformado e de tendências vermelhas”, conforme descrito no documento.

Assim, nosso objetivo é apresentar este importante, porém pouco conhecido livro. A obra, de 73 páginas e editada pela livraria e editora Muro, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), relata as atividades da União dos Trabalhadores Favelados (UTF), entidade à qual o autor pertenceu. Lançada em 1980, possui prefácio de Luiz Carlos Prestes. A UTF foi uma das primeiras entidades representativas de moradores de favelas a apresentar uma proposta de articulação de associações de moradores desses espaços. Influenciada pelo Partido Comunista, surgiu em 1954, como resultado de uma ação de despejo movida contra os moradores do Borel. O objetivo da União foi a mobilização pela permanência e reivindicação por melhores condições de moradia, através da unificação de questões relativas a habitação e emprego.

O livro de Manoel Gomes não é apenas um relato sobre uma instituição representativa de moradores de favelas ou sobre a resistência dos habitantes do Borel à ameaça de despejo, mas um discurso sobre o passado feito pelo representante de um grupo de lideranças dessa favela narrando a mobilização dos moradores na luta por direitos. Surge em um contexto, presente desde meados dos anos 1970, no qual a literatura se revela uma importante arma contra o autoritarismo da ditadura militar, denunciando seus abusos, torturas e assassinatos.

Como dito, seu prefaciador foi o célebre líder comunista Luiz Carlos Prestes. Surgido na vida política brasileira com a Revolta dos 18 do Forte, em 1922, Prestes liderou a famosa coluna que levou seu nome, percorrendo mais de 25 mil quilômetros e grande parte do território brasileiro. Passando a ser conhecido como “cavaleiro da esperança”, foi líder do PCB por várias décadas. Em seu prefácio, escreve sobre a relevância da obra: “Mas o aspecto mais estimulante desta história do morro do Borel está no ensinamento que nos transmite a respeito da força que alcançam os explorados quando se unem e se organizam. A história do surgimento da União dos Trabalhadores Favelados – hoje, União dos Moradores do Morro do Borel – revela a força que pode alcançar a democracia quando posta em prática pelas próprias massas trabalhadoras. (...) Que este livro chegue às mãos do povo é pois o que desejo.”

Ou seja, na própria apresentação de “As lutas do povo do Borel” já podemos perceber três fatores. O primeiro é que se trata de uma história da UTF, objeto central do relato de Gomes. O segundo é que essa história é vista como um exemplo da “força que alcançam os explorados” quando, mobilizados e organizados, constituem um coletivo de reivindicação. O terceiro diz respeito à vontade e interesse de que essa história chegue “às mãos do povo”, ou seja, alcance um considerável grau de veiculação e se torne conhecida. Sua circulação, assim, possibilitaria o uso de um fato histórico, a criação e atuação da UTF, e suas interpretações como um exemplo de modelo a ser seguido, por significar “a força que pode alcançar a democracia quando posta em prática pelas próprias massas trabalhadoras”.

Sobre as lutas

O livro de Manoel Gomes conta a história do Morro do Borel através da mobilização de seus moradores pelo direito à moradia. Porém, é possível observar uma interpretação própria sobre o passado e a história das favelas do Rio de Janeiro no âmbito geral, como sobre a maneira em que elas surgiram: “Estamos agora em setembro de 1921, vésperas do ano de 1922, ano em que seria realizada a exposição do Centenário da Independência do Brasil. Havia no Centro da Cidade um reboliço de trabalhos, coincidente com a demolição do morro do Castelo, para a ampliação da área onde seriam realizados os festejos da data magnânima de 7 de Setembro. O afluxo de trabalhadores era enorme, vindo de todo o território nacional, era incontrolável. Da Europa chegavam levas e mais levas de imigrantes, principalmente de Portugal, Espanha e Itália. O mercado de trabalho aqui na Carioca tornava-se cada dia mais abundante. Houvesse disposição, que trabalho não faltava. O Rio de Janeiro, como o nosso leitor deve saber, era uma cidade despreparada para acolher afluente massa humana que a ela chegava. Sua estrutura era colonial. À moda D. João VI, havia pouquíssimos hotéis e pensões. As hospedarias eram insuficientes para acomodar tantos chegantes. Só havia mesmo uma saída, espalhar esta população pelos morros acima, pois as encostas já estavam comprometidas”.

Como vemos, o autor explica a causa do início da favelização dos morros por trabalhadores em uma cidade sem estrutura para abrigá-los, já que a ida para esse espaço urbano teria sido motivada pela busca por empregos, cuja oferta estaria em um patamar significativo. Porém, ao chegar, passariam a sofrer com a exploração feita em cima de sua força de trabalho, recebendo um salário que não seria suficiente para arcar com os custos de vida.

Com isso, adentramos em uma concepção da sociedade, no caso, concebida a partir do debate sobre a questão habitacional dos trabalhadores, na qual a luta de classes possui um papel fundamental para seu entendimento, o que fica mais claro nesta passagem: “Esses beneplácitos senhores acham que só temos o dever de trabalhar, quanto ao direito de receber o valor real da venda do nosso produto que é força, isso não, os patrões não toleram tamanha aberração dos seus “sagrados” direitos de determinação do valor da mão de obra”.  

Ainda sob o panorama da luta de classes, é possível tecer considerações sobre a própria figura de Manoel Gomes, sob a qual se possui pouquíssimas informações. O autor de “As lutas do povo do Borel” foi um operário com papel de destaque na UTF, e sua figura pode adotar, de acordo com algumas perspectivas, uma certa aura mítica, como um trabalhador cuja ausência de oportunidades na vida foi convertida em uma profunda consciência crítica. Gomes possui todos os elementos para se constituir em um sujeito marcante para o imaginário tanto dos envolvidos na reorganização do movimento associativo do Borel, quanto pelos opositores à ditadura militar, por encarnar os símbolos de uma ideologia de superação desse regime e do que era considerado como as estruturas geradoras das desigualdades sociais. Mais do que isso, ele representava uma realidade concreta, resultante das engrenagens e contradições do tão criticado sistema capitalista.

A função de registro do livro em questão é perceptível em diversos momentos, como no caso do tratamento dos nomes dos moradores. Ao longo de suas páginas, são encontradas menções a 85 nomes de residentes do Borel, em diferentes situações. Como exemplo, temos a relação de nomes dos que seriam os mais antigos habitantes da favela: “Entre os muitos moradores já radicados, vamos mencionar alguns deles, cujos nomes nos ocorreram à memória, como Leitão do Borel Velho, Ozório, Epaminondas, Chico Bigode, Bolinha (na gruta do mesmo nome), Seu Joaquim Carneiro da Chácara, Antônio Vizeu, Dona Luduvina, Leandro Chagas, Nelson de Moraes e Alcides Tatão da Ladeira do Leandro, Quintela, Lameira, Joaquim Quebe-quebe, Zé Turquinho, Zé Magro, João de Brito, Brandão do Borel Central, Chico Careca, Ferro-Velho, Tomás C. Barroso e seus irmãos Zequinha, Joaquim Casemiro e seu filho Zé Pereira, Antônio Mariniano, Dona Laura, José Rosa e muitos outros (...)”

A menção a esses “muitos moradores já radicados” é feita quando se explicita a ameaça de despejo dos moradores do Borel, fator que impulsionou a criação da UTF. O relato expõe a existência de um grupo de moradores no local, que seriam afetados pelo despejo cuja consequência seria a perda de seus lares. Porém, Manoel Gomes  afirma em seu relato que os mesmos não aceitaram de forma passiva essa ameaça: “Foi quando os moradores receberam uma nova advertência para se mudarem dentro do prazo de 90 dias, pois, do contrário, os “donos” do morro recorreriam ao Judiciário e os despejariam. (...)Foi daí que os moradores mais radicais resolveram tomar uma posição correta para reprimir esses abusos que já estavam enchendo o saco”.

Logo após essa colocação, são nomeados os que “resolveram tomar uma posição correta”. Reparem que alguns dos indivíduos citados se encontram na primeira relação de nomes acima: “Entre os inconformados com esses subterfúgios destaca-se a atuação do cozinheiro da Marinha Mercante Izequiel Manoel do Nascimento, do português Casemiro Pereira – ali residente desde 1921 – da família de João de Brito, Francisco Antunes (o Chico Ferro-Velho), Francisco Martins e sua filha Célia, Chico da Luz, Zé Magro, João da Foice, José Pereira do Açougue, os Barroso (Joaquim e Zequinha), D. Lurdes e seu filho Jorge Neto, Leandro, Tatão, Nelson de Moraes, João Siqueira, e outros (...)”

Essas menções são feitas antes que tivesse sido criada a UTF. Ou seja, esse fato atestaria a existência, segundo a fala de Gomes, de um grupo de moradores responsáveis por ações prévias de resistência aos interesses que queriam o fim da favela, o que colocaria o ato de buscar a permanência do Borel como interesse inicial de um grupo de moradores, e não como sugestão de agentes externos. 

A criação da UTF, segundo a memória de Gomes, seria uma sugestão do advogado Antoine de Magarinos Torres, procurado para defender os interesses dos moradores do Borel em um futuro processo judicial, como forma de reunir condições para se precaver com os custos do embate jurídico que se anunciava:“Dr. Magarinos dirigiu do alpendre a palavra aos favelados explicando a todos os presentes que, em vista deles não terem dinheiro para meterem demanda com a Borel Meuron Ltda., precisavam se organizar em uma associação onde todos colaborassem com uma pequena quantia como pagamento de suas mensalidades; fazendo assim, conseguiriam meios necessários para qualquer eventualidade que viesse a surgir”.

A partir dessa sugestão, os moradores se organizaram com o objetivo de recolher a primeira soma de dinheiro para utilizá-lo, ainda segundo o relato do livro, em uma futura contenda legal: “Enquanto um colhia assinaturas, outro fazia uma vaquinha para tomar as primeiras providências contra a inominável violência dos grileiros”. Logo após o recolhimento dessa verba inicial, há o registro daquela que teria sido a primeira diretoria da União, ainda em caráter provisório: “Após terminada a coleta de assinatura e apuração da renda da vaquinha, foi também tirada uma diretoria provisória para a devida organização social, sendo esta composta por Izequiel, Casemiro, Zé Pereira, Ferro-Velho, Zé Magro,  José Rosa, Chico da Luz, Tomaz Valdemar Delfino e outros”.

Para além do caráter inicial da organização do movimento, é igualmente abordada sua renovação através da participação de novos moradores que resolveram se agregar à causa: “Nesse vai-e-vem da luta, acercou-se de Magarinos um numeroso grupo (...) que reforçados por um certo número de moradores recém-chegados ao Borel, constituíram um grupo de lutadores dispostos a ir até o final dessa árdua batalha (...) Entre os novos moradores, queremos destacar aqui a atuação de: Joaquim Silva de Pinheiros, que substituíra José de Oliveira na secretaria da UTF (entregando-a depois ao Manduca), dos irmãos Lira, Bonifácio e Zé Bento, Raimundo, Severino Juvêncio da Costa, Antônio Elniro, Zé Boneco, Joãozinho, os irmãos Dutra, Zé Baiano, os irmãos Felipe e mais outros (...)”

Também foram registradas as mulheres moradoras do Borel em atividades referentes à UTF: “(sobre duas comissões de recepção, uma formada por homens e outra por mulheres, feita a Magarinos Torres em uma de suas idas ao Borel) Além de uma comissão feminina composta de D. Neusa dos Santos, a senhora do Tomaz, Dona Dora do Leandro, Alzira do Siqueira e Célia Martins, com um bonito ramalhete de flores protegido por uma capa de papel celofane, com dedicatória à distinta D. Dora, senhora de Magarinos Torres, que em dado momento chegava com seu esposo”.

Há, igualmente, casos de envolvimento feminino que vão além da participação de uma comissão de recepção. Em meados dos anos <st1:metricconverter productid="1950, a" w:st="on">1950, a</st1:metricconverter> imobiliária responsável pela ação de despejo contra os moradores do Borel construía uma estrada que iria até a parte mais alta do morro. Em um dado momento, a obra foi interrompida devido a ações oriundas da mobilização dos moradores, quando ocorreu a curiosa situação: “(...) uma visita de um dos engenheiros da obra da estrada, a fim de reorganizar os trabalhadores para seu prosseguimento. Porém, ele acabou hostilizado pelo piquete antiestrada feito pelas mulheres que lhe tiraram as calças, fazendo-o descer o morro de cuecas debaixo de uma tremenda vaia e de impropérios de baixo calão, causando-lhe um vexame sem precedente”. 

Com isso, temos passagens que revelam o registro de nomes de moradores associados a atuações específicas de um grupo político, como a resistência às ações de despejo, a organização da UTF e a renovação de seus militantes, além de outros aspectos que serão aprofundados posteriormente. A menção a nomes que formariam pequenos coletivos que se responsabilizariam por esses atos pode ser interpretada como uma estratégia discursiva para valorização da coletividade local, o que revelaria uma união entre os moradores em prol de sua organização associativa e da mobilização por suas reivindicações. A história do livro termina em 1964, com o golpe militar e as perseguições que tentaram interromper este movimento de mobilização popular.

Como foi feito o livro “As lutas do povo do Borel”

O livro “As lutas do povo do Borel” foi editado pela livraria e editora Muro. Segundo a memória de um ex-militante do PCB, a livraria Muro teria sido fundada a partir de um grupo, ligado ao Partido, que atuava na área cultural no bairro da Tijuca desde meados dos anos 1970. Esse foi um período de reorganização da atuação de base dos movimentos de oposição à ditadura, após o desmantelamento dos grupos que optaram pela luta armada e o exílio de diversas lideranças de relevância nesse cenário.

A matriz da livraria e editora surgiu em 1975 no bairro de Ipanema, criada pelo empresário e atual dono da rede de livrarias Travessa, Rui Campos. A filial tijucana é criada posteriormente. Sua localização se dá ao lado do tradicional Café Palheta, no coração da praça Sáenz Peña, um dos principais pontos do bairro e possuidora de uma aura de efervescência cultural, devido aos inúmeros cinemas que lá existiram, e que lhe fizeram valer o apelido de “a Cinelândia da Tijuca”, a partir da década de 1940.

O processo de elaboração da obra envolveu diversos personagens, como Fernanda Carneiro, militante da Ação Popular (AP) e principal responsável pela preparação dos originais. A AP foi um dos principais grupos de resistência armada ao regime militar, mas que nos anos 1970 e 1980 concentrou suas ações em iniciativas culturais junto às classes populares, incluindo moradores de favelas. Manoel Gomes foi um operário com papel de destaque na UTF, sendo uma figura simbólica no morro do Borel. Contudo, Manoel Gomes já não residia no Borel na época em que redigiu a obra, embora continuasse frequentando a favela. Sua residência era em São Gonçalo, para onde Fernanda se deslocava com frequência para datilografar a obra.

Outra passagem importante diz respeito à escolha de Prestes como prefaciador do livro. No início dos anos 1980, o Cavaleiro da Esperança encontrava-se com as relações estremecidas com o próprio PCB, o que culminaria em sua saída definitiva em janeiro 1984. No entanto, sua escolha foi simbólica pelo peso de sua figura histórica e pela mítica que exercia entre os militantes, principalmente os novos. Sendo assim, podemos ver que o lançamento do livro foi possível graças à atuação de dois grupos de esquerda que atuavam no Borel do período, ligados ao PCB e à AP.A livraria e editora Muro encerra suas atividades em meados dos anos <st1:metricconverter productid="1980. A" w:st="on">1980. A</st1:metricconverter> filial do Catete, última a ser aberta, foi a primeira a fechar as portas. Logo depois, a filial tijucana segue o mesmo caminho. A principal causa do fim da atividade das duas sedes seriam problemas financeiros.

Apesar de não ser muito conhecida, a obra de Manoel Gomes é de suma importância. Lançada em um período de abertura política, reorganização de movimentos sociais e mobilização da sociedade contra o autoritarismo, revela a visão de uma geração de moradores favelados sobre seu poder de união como forma de alcançar seus direitos. Por mais que estes pareçam cada vez mais distantes, a memória dessa geração é de grande relevância para se entender a junção de forças dos moradores de favelas como um fator histórico definidor desse próprio grupo social.

Referências bibliográficas

AMOROSO, Mauro.Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no morro do Borel. Rio de Janeiro: Ponteio, 2015.

GOMES, Manoel.As lutas do povo do Borel. Rio de Janeiro: Muro, 1980.

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