Parques proletários provisórios
Autora: Monique Batista Carvalho.
Introdução
As favelas da cidade do Rio de Janeiro aparecem pela primeira vez como um problema público relacionado às questões de higiene e salubridade no Código de Obras de 1937. O documento destaca com preocupação a necessidade de conter o surgimento de novas favelas, controlar o crescimento das que já existiam e erradicar algumas outras. A partir dele, as favelas passaram a objeto de intervenção do governo do Distrito Federal e uma primeira tentativa se deu a partir da elaboração do Plano de Erradicação de Favelas, concretizado na construção dos Parques Proletários Provisórios, no início da década de 1940 [1](PARISSE, 1969; LEEDS & LEEDS, 1978; VALLA, 1986; BURGOS, 1998; VALLADARES, 2005; GONÇALVES, 2013).
Ao considerar o contexto social e político no qual se inscreve essa intervenção, devemos levar em consideração dois elementos fundamentais. O primeiro se refere às formulações teórico-ideológicas consagradas a partir dos ideais higienistas da virada do século XIX. É nesse período que um conjunto de intelectuais inspirados por esse ideário, dentre eles os médicos, figuraram como referências para as reformas sociais implementadas à época. A formação intelectual e a atuação do médico Victor Tavares de Moura (1882-1960), idealizador e executor da proposta de conter o “problema das favelas”, se refere, portanto, a conjuntura vivenciada por ele (CARVALHO, 2003; MEDEIROS, 2002).
Muito relacionado com a questão da higiene, o projeto dos Parques Proletários, imprimiu uma marca que chamamos de “higienista-civilizatória”. Ao analisar os documentos oficiais e o arquivo pessoal de Tavares de Moura, doado à Casa de Oswaldo Cruz, bem como entrevistas com antigos moradores do Parque da Gávea, identificamos que o projeto se propunha a promover uma “reeducação” dos moradores de favelas em detrimento da questão habitacional direcionada aos mais pobres da cidade. Os Parques tinham como missão executar a “limpeza” das favelas e oferecer aos habitantes uma “educação moral” que os libertasse do que Victor Moura considerava serem costumes viciados. A construção dos Parques Proletários tinha a finalidade, portanto, de proporcionar as condições necessárias para uma “vida mais sadia” aos moradores das favelas. Dessa perspectiva foi possível analisar as relações que se estabeleceram entre a “ideologia da higiene” e a questão social.
O outro elemento importante para analisar a intervenção se refere ao contexto político do Estado Novo a partir do governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que abrigou e deu novo sentido a uma mentalidade civilizadora oriunda de uma intelectualidade formada a partir dos conceitos positivistas. O projeto político do Estado Novo se concentrava em restaurar a sociedade brasileira e organizá-la através do poder público. Coube ao Estado o papel primordial nas decisões não apenas das políticas públicas como também na administração do conflito distributivo, na definição das identidades coletivas dos setores sociais e na representação dos interesses entre patrões e empregados.
Tendo esses elementos como pano de fundo, apresentaremos aqui o processo de construção da política dos Parques Proletários e seu funcionamento a partir do Parque nº 1, conhecido como Parque da Gávea. Como já apontado, o projeto foi elaborado pelo médico Victor Tavares de Moura no período em que ele esteve como diretor na Secretaria Geral de Saúde e Assistência. Esse projeto se inseria em um programa mais amplo de erradicação de favelas que foi parcialmente executado pela municipalidade durante a administração do interventor Henrique Dodsworth (1937-1945).
A questão da habitação no Rio de Janeiro: a ideologia da higiene e o estado novo
A crise habitacional no Rio de Janeiro tem sua origem ainda no século XIX, quando se percebe os cortiços e as habitações coletivas, destinadas às pessoas pobres, como um problema público devido às condições insalubres de higiene que apresentavam. De acordo com Licia Valladares (2005), por abrigarem indivíduos considerados como integrantes das “classes perigosas”, os cortiços cariocas eram vistos como “antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral” (VALLADARES, p.24).
Foi em grande medida amparado pelo discurso do controle da higiene, proferido pelos médicos sanitaristas, que essas habitações foram colocadas em xeque. Algumas ações foram efetivadas por parte da administração pública para impedir e coibir o aumento desse tipo de moradia e boa parte fora destruída durante a reforma urbana no início do século XX, realizada pelo prefeito Pereira Passos.
Como já apontado pela literatura, a reforma de Passos gerou graves consequências para a habitação no Rio de Janeiro. Tendo em vista que não existiu uma ação de construção de habitações para os indivíduos que foram expulsos de suas moradias e, ao mesmo tempo, eram esses mesmos trabalhadores que atuavam nas obras de remodelamento da cidade, necessitando permanecerem próximos ao seu trabalho, os ex-moradores dos cortiços começaram a procurar novos locais para residir nas áreas próximas ao Centro e foram ocupando os morros localizados no entorno da região (ABREU, 1994).
A partir dos anos 1930 houve uma inflexão no discurso sobre a questão social e a classe trabalhadora se tornou o foco das medidas do novo governo que se instituía. O foco principal da política estado-novista estava voltado para a valorização do trabalho e a reabilitação do papel e do lugar do trabalhador nacional. Somente ao trabalhador urbano seria dada a proteção do Estado, e os direitos sociais seriam obtidos através do trabalho. Porém, havia uma crescente preocupação com os problemas relacionados à pobreza e ao estado de constante necessidade em que vivia o povo brasileiro (GOMES, 1982).
Nesse sentido, o ideal de justiça social se pautava na realização de uma política de amparo ao indivíduo, reconhecendo que a civilização e o progresso são frutos do trabalho. A organização científica do trabalho, traduzida na criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e no Ministério da Educação e Saúde, mostravam a preocupação com a superação dos problemas dos brasileiros: saúde, educação, alimentação e habitação. O foco das políticas era o trabalhador.
O Estado Novo apresentava-se como responsável pela construção da identidade cultural brasileira, e a fim de realizar a unidade orgânica da nação, recorria aos intelectuais para alcançar esse objetivo. Dessa forma, cooptava-os para assumir diversas tarefas políticas e ideológicas, determinadas pela crescente intervenção do Estado, visto que este mantinha um rigoroso controle sobre a vida política e social do país através de uma severa repressão e uma forte propaganda, realizada pelos veículos de comunicação de massa, principalmente pelo rádio.
É nesse contexto que se abre amplo campo de intervenção intelectual, não apenas na produção cultural e educacional, mas também no âmbito da intervenção sobre a vida social. Quanto à classe operária, se tornava necessário um controle mais específico, já que o mundo popular em geral demandava um esforço civilizador. Com isso, a questão habitacional se transforma em questão social de ordem sanitária e urbanística (MEDEIROS, 2002).
Dessa perspectiva, as favelas se tornam um problema urbano e tem sua primeira referência oficial no Código de Obras da cidade de 1937 em seu decreto nº 6000 como já apontado. É a partir desse marco legal que as favelas passam a ser um problema público e, tão logo, precisava ser administrado e resolvido.
O Código de Obras pode ser considerado como o documento inovador que explicita o fenômeno da favelização a partir de uma seção dedicada a esse tema e inaugura, juridicamente, as favelas cariocas (GONÇALVES, 2013). Cabe salientar que a redação dos artigos do Código é ambígua no que se refere ao controle das construções em favelas. Ao mesmo tempo em que o decreto assume não ser possível construir novas favelas e construir novos barracos nas já existentes, ele não revela claramente o que deve ser feito com as que já existem. E ainda, exprime que a prefeitura irá substituir as favelas por núcleos de “habitação do tipo humano”. É a partir desse documento que as intervenções começam a ganhar corpo.
O médico Victor Moura e seu plano de erradicação das favelas
A gestão da pobreza nas favelas do Rio de Janeiro misturava proteção social e controle dos pobres, tendo como viés uma educação voltada para a moralidade e a ordem “civilizada”. Na concepção de Victor Tavares de Moura o problema das favelas teve origem no início do século XX, e como não tinha sido tomada nenhuma medida eficaz de combate, assumira proporções maiores. Por isso, a necessidade de uma “campanha saneadora” com a finalidade de acabar com as favelas existentes, não apenas devido ao seu aspecto urbano de ordem pública, mas, sobretudo, por representar um problema médico-social. De acordo com seus argumentos, a prevenção dos males sociais devia ser realizada através da ação social. Os indivíduos, “desmoralizados” e “desorganizados”, se encontram em áreas “desintegradas”, sendo a favela uma área que apresenta essas características, logo, deveria ser realizada nesses espaços uma ação social direta, que permitisse reajustar o indivíduo para benefício do próprio grupo. Essa ação deveria ser orientada por estudos científicos a respeito da pessoa e do seu meio físico a fim de detectar “maus hábitos e vícios” para então poder realizar um “trabalho social sério e capaz de resultados práticos e benéficos em favor do indivíduo e da coletividade” (MOURA, 1943: 270).
Nascido em abril de 1893, no município de Nazareth, em Pernambuco, Victor Tavares de Moura ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1907, porém, logo se transferiu para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde se formou em dezembro de 1913, especializando-se em cirurgia. Após sua formatura, seguiu para a Europa, a fim de complementar seus estudos. Fez cursos em Berlim e em Paris.
Quando regressou ao Brasil, em 1918, retornou ao seu Estado natal, e prestou concurso para Inspetor Sanitário. Foi nomeado para o cargo de diretor do Posto de Assistência, órgão anexo à Diretoria de Higiene e Saúde Pública de Pernambuco, ocupando outros cargos públicos, como o de primeiro Diretor do Hospital Santa Francisca, no Município de Barreiros, em 1928, e de epidemiologista da Saúde Pública de Pernambuco, entre 1931 e 1934. Atuou também como médico sanitarista em diversas cidades daquele Estado, e por volta de 1935 mudou-se para o Rio de Janeiro, exercendo diversos cargos públicos.
Sua vinda para o Rio de Janeiro foi articulada pelo cunhado de sua esposa, Agamenon Magalhães, então Ministro da Justiça, e pelo Cônego Olímpio Melo, interventor do Distrito Federal à época. Na capital federal, entre outras atividades, Dr. Tavares de Moura exerceu cargo de Diretor do Albergue da Boa Vontade, em abril de 1937. Ainda como Diretor do Albergue, ficou encarregado da elaboração do esboço de um plano para o estudo e solução do problema das favelas. O seu desempenho à frente do Albergue e os resultados apresentados no estudo sobre o problema das favelas levaram à nomeação para a diretoria do Departamento de Assistência Social, em 1944, onde realizou o projeto de construção dos Parques Proletários Provisórios.
Permaneceu neste cargo até novembro de 1947, quando foi exonerado, porém continuou o seu trabalho na área da medicina social em outros departamentos da Prefeitura do Distrito Federal, bem como em outras instituições não ligadas à prefeitura, atuando como diretor de coordenação e execução de Serviço Social do SESI, além de diretor-médico do Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Bancários. Chegou também a lecionar na Escola de Enfermagem Raquel Haddock Lobo e na Escola de Serviço Social da PUC-Rio, vindo a falecer em 27 de novembro de 1960.
A partir desse breve histórico profissional de Victor Tavares de Moura, pode-se observar que mesmo tendo um diploma de cirurgião, sua trajetória profissional foi marcada basicamente por uma atuação administrativa na área da medicina preventiva. Nesse sentido, quando atuou à frente do projeto de construção dos Parques Proletários, seus esforços foram, em boa medida, direcionados para os problemas relacionados com a insalubridade que as habitações das favelas apresentavam. Seu objetivo era a “limpeza” desses ambientes e a possibilidade de oferecer a esses indivíduos uma “educação moral” que os libertasse do que considerava serem costumes viciados. A construção dos Parques Proletários, conforme veremos, tinha a finalidade de proporcionar as condições necessárias para uma “vida mais sadia” aos moradores das favelas.
Esse era o objetivo a ser alcançado no Rio de Janeiro, extinguir o casebre, e com ele a causa dos grandes males sociais, substituindo-o por casas higiênicas, “promovendo a mutação social dos seus moradores e os reeducando, vigiando-lhes o equilíbrio biológico, cuidando do bem estar físico e moral seu, de sua família e de sua prole, valorizando-o enfim” (MOURA, 1943).
O primeiro documento de autoria do médico data de novembro de 1941 e apresenta um “Esboço de um Plano para o Estudo e Solução do Problema das Favelas do Rio de Janeiro”. Em suas anotações pessoais, ele destacava que muitos indivíduos que chegavam à cidade do Rio de Janeiro não se incomodavam em viver de qualquer modo e em qualquer lugar. Eram esses indivíduos, segundo ele, que construíam os barracões nas favelas:
“Uns por verdadeira necessidade e outros por falta de educação, todos de qualquer modo contribuindo para o arraigamento dovício socialde morar mal, de morar no barracão, porque, não há dúvida, que muitos deles chegam a conseguir salários suficiente para uma vida mais humana” (Arquivos Fiocruz. Coleção Victor Tavares de Moura, 2005).
Portanto, a partir de seus estudos preliminares, propôs para a intervenção duas iniciativas. A primeira seria a formação de uma comissão encarregada de realizar um rigoroso censo nas favelas para conhecer o perfil dos moradores e das residências. A outra elaborar um plano de transferência desse grupo para moradias provisórias. Seria nos Parques Proletários Provisórios que o processo de reeducação e reintegração social desses moradores se efetivaria para então serem encaminhados às moradias definitivas.
O programa de trabalho se baseou em duas ações: preventiva e realizadora, desenvolvidas simultaneamente. A ação preventiva se caracterizava pela repressão à proliferação das favelas, acompanhada de uma forte campanha de reeducação social entre os moradores, de modo a corrigir hábitos pessoais de uns e incentivar a todos no sentido da escolha de uma melhor moradia. Quanto ao plano de ação realizadora, visava a substituição dos casebres pelas casas de tipos provisórios “em gradação tal que em época não muito remota a situação possa estar sendo resolvida ou pelo menos colocada em ponto de não mais constituir um problema grave como agora acontece” (Arquivos Fiocruz. Coleção Victor Tavares de Moura, 2005).
A construção dos Parques Proletários se alinhava à política de controle do governo Vargas e seu paternalismo social, relacionado com os valores abrangentes do Estado Novo, ou seja, ‘reeducar’, ‘reajustar’, ‘recuperar’ para a sociedade o homem ‘ignorante’, ‘malandro’, ‘indolente’ que dela deveria se afastar. A partir dessa análise fica bastante clara a marca “civilizadora” que também envolve a questão sanitária, vinculando a saúde à habitação. Ao mesmo tempo, se torna necessário o autoritarismo para a realização da realocação das pessoas de um lugar para o outro, visto que não partia de um pedido, de uma necessidade do habitante da favela, mas de uma imposição do poder público.
Parque Proletário: a política habitacional a serviço do controle social
A construção das primeiras casas dos Parques Proletários Provisórios foi iniciada pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão, que engajados na construção de casas populares entraram em acordo com a Prefeitura do Distrito Federal, dando início às obras. Durante a permanência de Victor Tavares de Moura à frente do programa, foram construídos três Parques Proletários Provisórios. O Parque Proletário nº 1, localizado na Rua Marquês de São Vicente, nº 147, Gávea, recebeu moradores das favelas Olaria e Capinzal (na Rua Marquês de São Vicente) e Largo da Memória, que foram totalmente demolidas. Foi inaugurado em maio de 1941.
A ocupação das primeiras casas do Parque da Gávea ocorreu na presença de algumas figuras do poder público da época e em um ato simbólico o prefeito Henrique Dodsworth ateou fogo a um barraco na antiga favela na crença de poder erradicar definitivamente esse grave problema social (VALLA, 1986).
O Parque era constituído por blocos de casas de madeira que não tinham cozinha, água encanada, nem instalações sanitárias. Os banheiros eram coletivos, distribuídos pelos blocos e não havia rede de esgoto. As casas eram, em geral, formadas por dois cômodos separados por um biombo de madeira. Esse era também o material utilizado para construir o piso. A diferença entre as moradias no Parque e na favela eram pequenas e não satisfaziam nem como provisórias (KLEIMAN, 1978).
Em entrevistas realizadas com antigos moradores do Parque da Gávea, encontramos as seguintes descrições da organização do espaço: “Eram grupos. Eram nove grupos enfileirados. Se eu bem me lembro ia até o sessenta e três, uma coisa assim”; “Era grupo, mas era muito bom. O meu grupo, eles falam barraco, a gente fala grupo. Mas era assim, em grupos. Eu morava no doze, aí tinha o onze, assim sabe? O nosso era o mais largo”
O Parque nº 1 serviria de modelo aos outros Parques porque era o que possuía a melhor infraestrutura, contando com uma igreja, um posto médico, um centro de assistência social, um clube, uma escola de educação física, uma creche, um lactário, oficinas diversas, grupo de escoteiros e bandeirantes, biblioteca, posto policial e uma agência da Caixa Econômica Federal. Obteve assim maior visibilidade, sendo visitado por inúmeras autoridades, dentre elas o próprio presidente Getúlio Vargas que chegou a receber as chaves de uma casa no Parque, como também de atores e músicos conhecidos do público, além de ser também palco de festas e eventos.
O sistema de controle tinha como ponto de partida uma seleção preliminar baseada em critérios como trabalhar na zona sul da cidade e ser registrado no posto policial. Além de assinar um termo de compromisso que indicava todas as regras que deveriam ser seguidas dentro do Parque, entre elas, a de zelar pela casa, trazendo-a sempre em perfeitas condições de asseio, lavando o assoalho pelo menos uma vez por semana; comunicar qualquer problema em relação à estrutura da casa, como desprendimento de tábuas, goteiras ou outros defeitos, ajudando no concerto; não cuspir nem consentir cuspir no assoalho ou nas paredes; trazer sempre asseados os terrenos em torno e debaixo da casa, não permitindo juntar lixo nem formação de lama; não usar ferro elétrico nem luz que não seja elétrica mudando as lâmpadas queimadas por conta própria, não podendo alterar os watts das lâmpadas, bem como só cozinhar com carvão (CARVALHO, 2003).
O documento composto por 18 itens contava não só com regras relacionadas a manutenção das casas, mas também com regras de convívio social, como manter relações cordiais com os de casa e com os vizinhos, não dando motivos para discussões e desavenças, evitando a quebra de cordialidade e respeito que deve existir entre pessoas educadas, seja quanto a família, seja quanto a vizinhos, bem como respeitar a lei do silêncio; não permitir a entrada ou uso em sua casa de bebida e nem se embriagar; procurar legalizar junto a administração do Parque sua vida conjugal, comparecer as comemorações e festas realizadas, não permitir residir na casa em que mora pessoas estranhas ou de sua família que não estejam recenseadas, e também, procurar por todos os meios um trabalho que garanta a subsistência decente de sua família. O não cumprimento de alguma dessas regras implicava em “justa causa de despejo imediato” realizado pela administração do Parque.
Victor Tavares de Moura justificava a razão das casas dos Parques serem provisórias pela seguinte afirmativa:
“porque não se deve desde logo, construir casas definitivas, pois seria temerário mudar as famílias que residiam nas favelas diretamente para um ambiente de todo diferente daquele que estavam habituados, porquanto é prudente que estes indivíduos passem antes por um longo período de readaptação fiscalizada” (Arquivos Fiocruz. Coleção Victor Tavares de Moura, 2005).
A fiscalização sobre esse processo deveria ser realizada através da administração do Parque. Dentro da ideologia “civilizatória”, o papel desempenhado pelo administrador era de fundamental importância. Ele era a pessoa responsável pela manutenção da ordem. Ficava sob sua responsabilidade a circulação dos moradores, bem como o horário de saída e entrada. Todos os moradores deveriam ter carteiras de identificação. Todos os serviços eram controlados pela administração, orientada pelo chefe do Serviço Social.
Os portões eram fechados às 22:00 horas e as crianças não poderiam permanecer fora de suas residências após esse horário. Todos os dias, às 21:00 horas, o administrador realizava o “chá das nove” quando ele relatava os acontecimentos do dia e fornecia algumas lições de boa conduta, através de “um microfone instalado na administração, ligado aos vários auto falantes que se achavam espalhados pelo Parque, para transmitir todas as ordens, informações, avisos e conselhos educativos aos seus moradores”(Arquivos Fiocruz. Coleção Victor Tavares de Moura, 2005).
As instalações básicas de higiene, como água encanada e esgoto sanitário, não eram encontradas no Parque, permanecendo os mesmos problemas que havia na favela. Ainda assim, o depoimento dos antigos moradores, denotam um saudosismo em relação aquele espaço: “Eu sinto saudades. Apesar das condições não serem assim boas na época, em termos de higiene, de moradia, era um barraco de tábuas, entendeu? Mas pelas facilidades, tinha praia perto, tinha trabalhos, condução perto, tudo perto, entendeu?”; “Olha, a minha casinha era um quarto e uma salinha. Não tinha água. Tinha que pegar água na bica. O banheiro era para todo mundo, coletivo. Tinha banheiro dos homens. E banheiro das mulheres, né. Tinha uma senhora chamada Fausta que cuidava daquilo tudinho, dos banheiros. Arrumava, limpinho”; “Em termos de higiene, era aquele banheiro público. Não era lá grandes coisas não”.
O mesmo se observa a respeito da estrutura e das festas realizadas no Parque: “Tinha creche, tinha escola, eles davam aquele latão de leite. Era ótimo. Até os malandros eram diferentes. Tinha administração. Tinha uma igreja enorme. (...) Tinha missa campal, tinha as festinhas da igreja, tinha Escola de Samba. Nessa missa campal, vinha o Ademar de Barros e o grupo dele. Ia o Getúlio Vargas, já foi por duas vezes. O parque era uma maravilha, ia muita gente importante”; “Aí tinha os shows, vinham cantores para o Parque. Um cantor que veio na época, eu era garoto, aí estava surgindo era o Cauby Peixoto, vinha cantar aqui”; “Tinha uma Escola de Samba, tinha posto policial, tinha creche, tinha tudo aí”.
Como se constata, os Parques Proletários propiciavam aos indivíduos um sentimento de vida comunitária que na memória desses antigos moradores, parece ganhar especial significado quando comparado com a realidade violenta das favelas para onde foram removidos posteriormente. Fica claro, portanto, que a estrutura existente naquele local se inseria em um contexto mais amplo que objetivava a reeducação dos antigos habitantes das favelas, através de uma hábil articulação de mecanismos de coerção e de persuasão.
Portanto, indicamos que o projeto de construção dos Parques Proletários atuava como uma política de controle social, com ênfase na proposta de reeducação, em detrimento de uma política habitacional, na medida em que os problemas que foram apontados com relação à falta de condições higiênicas nas favelas, não foram resolvidos pelo Parque. Não existia água encanada e instalações sanitárias adequadas.
A ideologia civilizatória presente na concepção da política habitacional direcionada aos pobres e levada a cabo na experiência do Parque da Gávea pode ser considerada como a precursora das outras ações que foram implementadas ao longo das décadas de 40 e 50. O controle social dos antigos habitantes das favelas, através de uma hábil articulação de mecanismos de coerção e de persuasão, visando sua reeducação e reinserção na sociedade foi a tônica também de outros programas que atuavam menos na questão habitacional e mais como uma interferência nas formas de organização coletiva e social dos pobres.
Referência bibliográfica
ABREU, M. d. (1994). Reconstruindo uma história esquecida: origem eexpansão inicial das favelas do Rio de Janeiro. Espaço & Debates, 34-46.
BURGOS, M. B. (1998). Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: M. ALVITO, & A. ZALUAR, Um século de favela.Rio de Janeiro: FGV.
CARVALHO, M. B. (2003). Questão Habitacional e Controle Social: a experiência dos Parques Proletários e a ideologia “higienista-civilizatória” do Estado Novo.Rio de Janeiro: Monografia de conclusão de curso.
GOMES, Â. M., & all, e. (1982). Estado Novo: ideologia e poder.Rio de Janeiro: Zahar Editora.
GONÇALVES, R. S. (2013). Favelas do Rio de Janeiro: história e direito.Rio de Janeiro: PUC-Rio; Pallas.
KLEIMAN, M. (1978). “Acabar com as favelas” Parques Proletários Provisórios: uma intervenção na prática. Chão – Revista de Arquitetura.
LEEDS, A., & LEEDS, E. (1978). A Sociologia do Brasil Urbano.Rio de Janeiro: Zahar Editores.
MEDEIROS, L. A. (2002). Atendimento à Pobreza no Rio de Janeiro durante a Era Vargas - do Albergue da Bôa Vontade aos parques proletários: a atuação do Dr. Victor Tavares de Moura (1935-1945).Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais - PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro.
MOURA, V. T. (1943). Favelas do Distrito Federal. In: Aspectos do Distrito Federal.Rio de Janeiro: Academia Carioca de Letras, Gráfica Sauer.
PARISSE, L. (1969). Favelas do Rio de Janeiro – evolução – sentido.Rio de Janeiro: Centro Nacional de Pesquisas Habitacionais (caderno do CENPHA, 5).
VALLA, V. V. (1986). Educação e favela; políticas para as favelas do Rio de Janeiro 1940-1985.Petropólis: Vozes/Abrasco.
VALLADARES, L. (2005). A invenção da favela:do mito de origem a favela.com.Rio de Janeiro: FGV.- ↑ PARISSE, L. (1969). Favelas do Rio de Janeiro – evolução – sentido.Rio de Janeiro: Centro Nacional de Pesquisas Habitacionais (caderno do CENPHA, 5).
Ver também