Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Rafaela Estrela

O QUE É O CEDECA?

O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA) foi criado em 2009 com o intuito de fortalecer a luta pela existência e manutenção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), documento oficial que garante os direitos e deveres das crianças e adolescentes, além de pautar as defesas judiciais no meio social. Conforme mencionado, os fundamentos do CEDECA estão pautados nas normas e leis que legislam os direitos civis, sociais e políticos das crianças e dos adolescentes ao longo da sua vida e fase de desenvolvimento. Dentre os principais documentos jurídicos, podemos citar a Constituição Federal de 1988, o ECA e a Convenção dos Direitos das Crianças.

Segundo o Estatuto do CEDECA,

Artigo 2º - O CEDECA se destina a defender, garantir, promover e pesquisar os Direitos Humanos no âmbito das normativas nacionais, internacionais ou fora delas, com o objetivo de consolidar e fortalecer o Estado Democrático de Direito, através da promoção da cidadania plena de toda e qualquer pessoa, especialmente crianças e adolescentes e àquelas reconhecidas como minorias sociais ou de grupos vulneráveis, bem como, as pessoas portadoras de deficiência (CEDECA, 2009, p. 1).

O público-alvo de atuação do CEDECA não se resume apenas às crianças e adolescentes, mesmo que sejam o foco principal. Para além das questões e problemáticas vividas por esses sujeitos, também há o respeito e a atenção às famílias, que, muitas vezes, também precisam de suporte. Logo, as ações realizadas pelo CEDECA incluem a criança ou o adolescente, a sua família e o contexto no qual estão inseridas. Em sua maioria, o atendimento acontece com crianças e adolescentes que estão em estado de vulnerabilidade social e residem nas favelas do Rio de Janeiro. Do atendimento ao público-alvo, acontece de maneira gratuita, de forma presencial ou, quando necessário, de maneira remota.

Os princípios que regem o CEDECA estão relacionados com uma perspectiva dialógica e social, que tem como valores a justiça, o respeito, a dignidade humana, a solidariedade, a diversidade e a conduta acolhedora. A missão que fundamenta todas as ações do CEDECA é voltada para a promoção de práticas humanas, embasadas numa perspectiva jurídico-social, através da proteção, mobilização social, educação popular e os princípios da Justiça Restaurativa , desenvolvidos por Albert Eglash (CEDECA, 2019).

HISTÓRICO DE CRIAÇÃO DO CEDECA

O CEDECA caracteriza-se por ser uma instituição sem fins lucrativos reconhecida nacionalmente por ser uma Entidade de Utilidade Pública Municipal. Nacionalmente, o CEDECA foi instituído, oficialmente, em 2007, com a sede fundadora localizada no estado do Tocantins. Ao longo do tempo, seu trabalho foi se espalhando pelo território nacional e hoje possui cerca de 25 sedes (Informação verbal).

No Rio de Janeiro, a sede foi oficializada em 2009 e conta com mais de 12 anos de atuação com crianças, adolescentes e jovens buscando garantir os direitos necessários para o seu desenvolvimento, conforme prevê o ECA. O primeiro projeto realizado aqui no Rio de Janeiro foi o "Desenvolvimento de Ações Conjuntas em Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes”, cujo objetivo estava voltado para o estreitamento de laços com outras redes que atuassem com crianças, jovens e adolescentes em estado de vulnerabilidade e/ou em situações que colocassem em risco a sua vida.

Em 2010, o CEDECA começa a se popularizar no município do Rio de Janeiro e realiza a sua primeira filiação regional com a filiação regional com a Rede Rio Criança, que luta em prol da defesa dos direitos humanos e das crianças em situação de rua. No mesmo ano, ocorre a aproximação da instituição com a Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do Adolescentes (ANCED).

Com a realização dos projetos e atividades voltadas para as crianças, jovens e adolescentes, o CEDECA passa a ser reconhecido como uma instituição de apoio para assegurar os direitos previstos no ECA e demais documentos normativos. Através das filiações, realizadas em pouco tempo de criação da própria instituição, o CEDECA inicia suas atividades com o auxílio de órgão públicos do estado do Rio de Janeiro. (CEDECA, 2019). Em 2012, realizou-se o primeiro projeto em parceria com o Fórum Popular do Orçamento Público, denominado “Lugar de Criança é no Orçamento Público”. O objetivo do projeto era levar as necessidades e direitos das crianças para os debates sobre o orçamento público. Com o tempo, a parceria aumentou e, atualmente, o CEDECA ainda é integrante do Fórum Popular de Orçamento Público, cuja atuação completou, exatamente, 10 anos. Conforme a atuação foi se expandindo no município do Rio de Janeiro, o CEDECA foi aprimorando seus projetos e passou a abranger outras temáticas para além da garantia de direitos das crianças e adolescentes, aderindo a cursos de formação que buscavam tratar sobre a territorialidade, mediação de conflitos, proteção às famílias e justiça restaurativa.

Em 2015, a instituição ganha um reconhecimento normativo no município do Rio de Janeiro, pautada na Lei 5.933/2015, que estabelece “Art. 1º Fica incluído o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDECA-RJ no art. 2º da Lei nº 5.242, de 17 de janeiro de 2011, que trata da Consolidação Municipal de Utilidades Públicas.” (BRASIL, 2015). No mesmo período anual, o CEDECA também recebe seu certificado de registro no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS/ RJ – Nº 967/2015), passando a realizar projetos em outras instituições também associadas ao CMAS, como o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE).

Em 2018, a instituição recebeu o prêmio Tiana Sento-Sé, por sua atuação, responsabilidade e comprometimento com a garantia e manutenção dos direitos das crianças e adolescentes. No mesmo ano, também é publicada a nova versão do ECA e ocorre a distribuição física do livro nas entidades parceiras em território nacional, como a Família Mendes, Conexão Formativa e no Ministério Público do Rio de Janeiro, jovens colaboradores e membros administrativos. No ano de 2019, o projeto Segundo Sol, foco deste trabalho, começa a ser planejado pelo CEDECA com a parceria de jovens mediadores, que deram suporte ao projeto desde o seu planejamento até a sua execução. Em primeira instância, o projeto foi realizado com a parceria da Kindernothilfe (KNH), instituição da Alemanha.

O CEDECA ainda tem realizado atividades e projetos com crianças e adolescentes de diferentes territórios do Rio de Janeiro, tratando de temáticas como conflitos, vulnerabilidade e cultura de paz. Tendo como base os seus valores e a sua missão, o conceito de cultura da paz, designado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unids para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), remete-se a um conjunto de práticas e valores atitudinais que rejeitam a violência e priorizam o diálogo como forma de mediação de conflitos.

Atualmente, percebe-se que as ações do CEDECA têm se aproximado do conceito de Justiça Restaurativa, buscando estabelecer uma rede de apoio cooperativa com e entre as crianças e adolescentes para lidar com as situações cotidianas.

OBJETIVOS E VALORES DA INSTITUIÇÃO

Os projetos planejados e pensados pelo CEDECA têm como base 3 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, elaborados pela Organização das Nações Unidas, em 2012. O foco da ONU ao elaborar esses 17 objetivos era propor caminhos para a superação dos principais desafios sociais, políticos, econômicos e morais vivenciados no nosso tempo. Os três objetivos que embasam os projetos do CEDECA são:


ODS 5: Igualdade de Gênero: “As fábricas e oficinas instaladas pelos Amigos do Bem oferecem oportunidades de emprego para mulheres do sertão. Muitas delas nunca haviam recebido um salário. Nas escolas e Centros de Transformação, meninas e meninos recebem educação de qualidade e são encorajados a seguir os seus sonhos.” (ONU, 2012)

ODS 10: Redução das Desigualdades: “O sertão nordestino é a região mais pobre do nosso país e está entre os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Por meio da educação e do trabalho, os Amigos do Bem reduzem as desigualdades, transformam vidas e promovem o desenvolvimento efetivo das regiões atendidas” (ONU, 2012)

ODS 16: Cidades e Comunidades Sustentáveis: “As 4 Cidades de Bem oferecem um endereço digno para quem morava em casas de taipa, sem qualquer recurso. Construídas pela Instituição, têm infraestrutura completa, saneamento básico, áreas de convivência e lazer, bicicletarias, padarias e hortas comunitárias.” (ONU, 2012).

Os valores do CEDECA, assim como a sua missão principal, estão diretamente relacionados com a prática da JR e do desenvolvimento de uma cultura de paz, dentro e fora dos territórios violentos ou com a mediação de conflitos. São eles: a) Justiça Social; b) Solidariedade Humana; c) Capacidade de Diálogo; d) Respeito aos Direitos Humanos; e) Conduta Acolhedora e f) Respeito à Diversidade Humana (CEDECA, 2019).

A principal missão do CEDECA é: “ Promover a prevalência e respeito à dignidade humana, por meio da defesa jurídico-social dos direitos humanos de crianças e adolescentes, da mobilização social e da educação popular.” (CEDECA, 2009).

METODOLOGIA DE ATUAÇÃO

A metodologia de atuação do CEDECA com as crianças e adolescentes é voltada para a realização de projetos e cursos formadores que dialogam com a missão e os valores zelados pela instituição. Todas as ações pensadas pelo CEDECA dialogam com os conceitos da JR e da Cultura de Paz. Os projetos, geralmente, são pensados a partir de uma demanda específica em relação ao público-alvo da ação, levando em consideração a sua territorialidade, situação apresentada e as formas de mediação de conflitos. Os cursos, ao contrário, não são tão específicos, contando apenas com uma classificação etária. A maioria dos cursos ofertados são para adolescentes e jovens e buscam promover uma formação para a JR, o diálogo e a mediação de conflitos em quaisquer ambientes, sendo violento ou não-violentos.

Além dos cursos e dos projetos, o CEDECA realiza atendimento presencial para crianças, adolescentes e as famílias que estejam precisando de uma assistência específica ou em estados extremos de vulnerabilidade. Os atendimentos acontecem no prédio físico do CEDECA, localizado na Rua do Ouvidor, número 183, sala 308 – Centro, Rio de Janeiro. Esse espaço de escuta e acolhimento é pensado para atender às crianças, jovens, adolescentes e as suas famílias, tendo em vista a concepção social e integradora da entidade.

Pensando na possibilidade de integralizar as experiências vividas por esses sujeitos, nos seus contextos vulneráveis, o CEDECA também realiza projetos que envolvam a participação ativa das crianças e adolescentes. Ou seja, eles não passam a ser meros receptores de uma ação, mas, tornam-se atuantes dela e propagam-na para o público-alvo ao redor. Assim, eles podem participar tanto dos cursos (como cursistas ou monitores) quanto no território em que vivem, através da mobilização e atuação com outras crianças e adolescentes, como veremos a seguir.

PARCERIAS

Para desenvolver suas ações, o CEDECA estabeleceu parcerias com instituições nacionais e internacionais. As parcerias podem colaborar com ações do CEDECA de diversas formas, seja através do oferecimento de cursos, oferta de materiais e/ou com o financiamento, de um modo geral.

Conforme prevê o Estatuto do CEDECA, a instituição poderá [...] firmar ajustes como: convênios, contratos, termos de parcerias e intercâmbios, promover iniciativas conjuntas, com organizações e entidades públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, bem como poderá se filiar ou integrar quadros de participantes de organizações e entidades afins, nacionais ou internacionais [...] (CEDECA, 2009)

Sendo assim, atualmente, as principais instituições parceiras do CEDECA são:

  • Kindernothilfe (KNF)
  • Misereor – Gemeisan Global Gerecht
  • Pátria Amada Brasil – Governo Federal
  • Família Mendes
  • Conexão Formativa

PROJETO SEGUNDO SOL – TRILHANDO DIREITOS COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DEFINIÇÃO DO PROJETO SEGUNDO SOL

O projeto Segundo Sol tem como objetivo principal a prevenção e garantia dos direitos das crianças, adolescentes e jovens que foram afetados, de alguma forma, por conta da situação de risco em que residem e pelo contexto de violência que se faz presente em todo o território do Rio de Janeiro. Atualmente, o projeto está atuando nas áreas das comunidades da Palmeirinha, Muquiço, Chapadão e entorno, contando com a participação de outras comunidades também, como a Favela da Maré e o Complexo do Alemão.

Segundo os dados apresentados pelo CEDECA, de 2013 a 2019, a morte de jovens negros e pardos somaram 79% das ocorrência de morte nas favelas e periferias do estado e 84% nas favelas e periferias cidade (CEDECA, 2021). O racismo ainda é um problema sócio-estrutural enfrentado em diversos territórios e tem sido um dos fatores que propiciam a prevalência dos conflitos em determinadas zonas territoriais, inclusive, nas favelas. Além da questão etnico-racial, a causa das mortes dos jovens nas favelas e periferias têm sido, então, a desigualdade de gênero e as questões relacionadas com as sexualidades, assim como a miséria, a desigualdade social, a falta de recursos básicos para melhores condições de vida, como saúde, educação, etc.

Tendo como base a situação de violência vivida por essas crianças, adolescentes e jovens e o risco à sua vida, o projeto Segundo Sol busca estabelecer ações de diálogo e mediação de conflitos, de modo que o direito à vida e à liberdade de (re) existir sejam garantidos.

HISTÓRICO DO PROJETO SEGUNDO SOL

O projeto “Segundo Sol – Trilhando Direitos com Crianças e Adolescentes” foi uma iniciativa do GT de Prevenção de Homicídios, do CEDECA, após uma pesquisa realizada em territórios de favelas e periferias. A pesquisa apontou que as áreas em torno de Bangu e Costa Barros eram as que tinham os maiores índices de morte de crianças, jovens e adolescentes, através de ameaças e homicídios. A integrante do projeto, Mariah, explica: “Os jovens não chegavam nem a fazer denúncia das ameaças que sofriam, pois morriam antes”.

"A Equipe do CEDECA decidiu dar início ao primeiro passo do projeto: A realização de um grupo focal com jovens que eram residentes dessas regiões de violência. A primeira roda de conversa teve como base as seguintes perguntas centrais: a) O que significa violência para você?; b) Como você percebe a violência presente no contexto territorial em que você mora? Ao longo da conversa, os mediadores foram fazendo as devidas abordagens sobre conflitos, resistência, morte, perda, etc. O próximo passo seria, então, selecionar 9 jovens e adolescentes que participaram da roda de conversa para que estes pudessem dar continuidade ao projeto. Aqueles/as que foram selecionados para a etapa seguinte, participaram de uma oficina de elaboração de projetos realizada no município de Saquarema. O objetivo principal do projeto seria, então, servir como centro de referência para os jovens e adolescentes que estivessem passando por algum momento de vulnerabilidade ou violência, podendo contar, assim, com uma rede de apoio e estabelecer uma relação de horizontalidade com esse público" (Informação verbal).

PARCERIAS

O projeto Segundo Sol é financiado pela instituição Kindernothilfe (KNF), uma entidade cristã da Alemanha que busca oferecer apoio para crianças e jovens marginalizados e em estado de vulnerabilidade. O projeto também estabelece parcerias com coletivos de outras comunidades, como a Favela da Maré e do Alemão. Essas parcerias, geralmente, são mantidas através da integração de outros coletivos ao projeto, através da visita a locais culturais, oferta de cursos e oficinas em diferentes territórios e mobilização de crianças, jovens e adolescentes.

"Para mim, como eu participei de todas as etapas do projeto e hoje estou trabalhando, o projeto é tudo. Apesar das dificuldades... Porque lidar com os jovens não é fácil, lidar com as questões de violência não é fácil. [...] Mas, para mim, o Segundo Sol é cinquenta por cento (50%) de parte de mim. Agora, para o CEDECA, eu acho que, tipo assim, o projeto Segundo Sol no CEDECA... Ele traz mais a juventude, uma imagem de adolescentes [...] e os adolescentes estão presentes lá. Eles são a imagem do CEDECA, do que o CEDECA é. Eles falam que o projeto mudou a vida deles" (Informação verbal).

ALCANCE DO PROJETO

O projeto, segundo dados, tem um alcance relativo e obteve um aumento significativo nesse último ano, com o retorno das atividades presenciais. Atualmente, o projeto conta com a participação de 40 jovens e adolescentes que participaram do último Ciclo de Formação de Jovens Articulares e 12 jovens articuladores que realizam as ações em seus territórios de moradia. No primeiro ciclo de formação, houve 88 inscrições de jovens e adolescentes de até 21 anos; no segundo, foram 40 inscritos e no terceiro, foram 23 inscritos. Além dos Ciclos de Formação com temas variados e da colaboração dos Jovens Articuladores, o projeto também é levado para as escolas das favelas e periferias que são parceiras e/ou que estão passando por um estado extremo de violência. Segundo os dados apresentados, nas últimas visitações deste ano (2022), foram 323 estudantes.

PERSPECTIVAS CRÍTICAS

A educação, diante de todo o seu potencial transformador, é um campo de disputas de interesses hegemônicos que objetivam dar continuidade a um determinado padrão de sociedade hierárquica e opressora. Nesse sentido, pensar a educação requer conhecer os tipos de pensamentos que fundamentam as noções de ações educativas desenvolvidas nas mais diversas esferas sociais, tanto nas áreas mais privilegiadas quanto aquelas que são marginalizadas socialmente.

De modo geral, percebe-se que há uma grande diferença entre a concepção de educação que se é pensada para as classes dominantes e para as classes populares. Geralmente, observa-se que a educação para as classes dominantes objetiva a formação de cidadão preparados para controlar, liderar e dominar. Enquanto isso, a educação voltada para as classes populares é composta por ações sociais e educativas, com oficinas profissionalizantes, cursos de formação e incentivo para uma educação profissional. Nesse caso, não se desconsidera a formação intelectual, mas, a mesma não é desenvolvida na sua potencialidade, pois prioriza o ensino técnico instrumental, aligeirado, precário, como única alternativa diante do quadro de misérias das populações atingidas pelos projetos sociais. É o que chamamos de educação mecânica.

O conceito de dualidade estrutural está diretamente ligado a uma perspectiva educacional, que molda e categoriza a educação em duas esferas formativas diferentes. A dualidade mantem-se fundamentada na existência de uma formação propedêutica e uma formação profissionalizante. Para as classes populares e subalternizadas, há um grande interesse na promoção de uma educação profissionalizante, que seja o suficiente para instrumentalizar a mão de obra. Enquanto isso, para as classes dominantes, é proporcionada uma educação intelectual e crítica. Para Valla (1986), a dualidade presente na educação funciona como uma espécie de maniqueísmo que resulta nas ações de controle ou libertação das classes. Logo, o tipo de formação ofertada para as classes é o que determina o resultado das ações que, em sua maioria, buscam controlar as classes populares utilizando-se das estratégias educacionais de consenso e coerção.

A educação popular, seguindo os princípios dados por Paulo Freire, deveria servir como um instrumento de interpretação e transformação da realidade opressora em que se vive. Não basta que a educação seja algo dado, pronto, mecânico. É necessário que seja vivo, cotidiano, libertador. Dessa forma, seria possível reconhecer os sistemas ideológicos e hegemônicos que se fazem presentes na sociedade, sendo assim, capaz de formar cidadãos conscientes das opressões em que vivem e dispostas a reverter tal realidade. Para Costa (2019),

A educação popular é mais comumente apresentada do ponto de vista dos setores progressistas, dedicados à transformação social, em algum grau. Paulo Freire é o maior expoente desse tipo de educação popular dedicada à emancipação humana. O seu legado, assim como o de outros educadores e pesquisadores enfatizaram a potencialidade da educação popular como um mecanismo de transformação política de construção de agência histórica individual e coletiva. [...] a educação popular é um instrumento fundamental da disputa de hegemonis entre as classes e frações de classe. Essa afirmativa coloca o debate sobre a educação popular em outro lugar [...] significa dizer que existem diversos projetos; uns para a emancipação, outros para a conservação da ordem, de acordo com os interesses da classe em disputa. (COSTA, 2019, p. 18, grifo do autor).

Uma das áreas que compõe a missão do CEDECA é a educação popular, sendo esta uma ferramenta importante para a transformação da vida de crianças, jovens e adolescentes, e, também, um direito assegurado pelas diversas legislações de proteção à formação cidadã desse público-alvo. Entretanto, conforme mencionado anteriormente, a educação popular pode estar presentes em diversas ações educativas propostas para diversos segmentos sociais, incluindo as favelas e periferias, mas, é necessário compreender como essa concepção de educação está fundamentada e quais são os impactos dessa ideologia nas ações que estão sendo realizadas, assim como os resultados obtidos.

O CEDECA é uma instituição educacional não-formal, ou seja, não atua nos espaços de educação formal estabelecidos socialmente, que realiza atividades socioeducacionais a partir do sua concepção ética e política. As suas principais ações e iniciativas são pautadas na realização de cursos e ciclos de formação que buscam desenvolver um determinado perfil para os adolescentes e jovens que estão e/ou residem em áreas de extrema vulnerabilidade. Logo, essas ações enquadram-se como ações educativas com objetivos formativos e comportamentais de um determinado padrão juvenil.

A base conceitual que direciona os projetos realizados pelo CEDECA está voltada para o desenvolvimento da Justiça Restaurativa e da Cultura de Paz. Como o público-alvo é composto por adolescentes e jovens que lidam diariamente com as situações de conflito, é compreensível que os ciclos de formação busquem desenvolver uma consciência maior acerca dos processos violentos e da possibilidade de mediação de conflitos frente ao que eles vivenciam todos os dias. Porém, surgem os seguintes questionamentos:

a) Será que os adolescentes e jovens refletem sobre as origens dos conflitos que permeiam a sua vida?

b) Os ciclos de formação promovidos pelo CEDECA trazem uma visão sobre as relações socio-políticas-ideológicas presentes nesses territórios e em como a atuação dos jovens e adolescentes interfere nesse processo?

c) Como os ciclos de formação poderão intervir na realidade desses adolescentes e jovens?

Parte do processo de transformação da vida dos adolescentes e jovens deve ser pensada através da educação. A Justiça Restaurativa e a Cultura de Paz, conceitos tão zelados pela instituição, devem estar alinhadas com um conceito de transformação que vai além das ações individuais, mas, pensada numa perspectiva coletiva, que reflita sobre as condições sociais, enquanto políticas públicas particularistas, ou seja, não têm um alcance universal, mas, como projeto, buscam “amenizar a pobreza” . Para isso, faz-se necessário compreender como a realidade histórica e ideológica dos conflitos nas áreas mais vulneráveis, sendo esta uma tentativa de precarizar ainda mais as condições de vida nesses territórios e o fortalecimento de laços para uma luta coletiva em prol de uma transformação social.

O ato de educar, portanto, é um movimento profundamente político que traz na sua gênese os traços de conservação de determinada ordem ou mesmo de transformação, sendo parte da permanente disputa entre classes e frações de classes, refletindo os movimentos de construção de hegemonia e contra-hegemonia (COSTA, 2019, p. 20)

O projeto mencionado anteriormente é realizado com três comunidades do Estado do Rio de Janeiro e busca realizar ações com jovens e adolescentes que estão envolvidos diretamente nos contextos de vulnerabilidade e conflitos. Porém, essas ações acontecem através da realização de cursos de formação, intitulados como “Formação de Jovens Articuladores”. A ementa que baseia o curso, mais uma vez, é fundamentada nos princípios norteadores do CEDECA, mas, não traz a reflexão sobre o contexto social como um todo e nem uma uma perspectiva de superação estrutural da pobreza, mas com uma forma de promover o “alívio”.

Os resultados apresentados com a realização do projeto mostram que poucos jovens e adolescentes continuam, de fato, nos cursos de formação. Além disso, a atuação nas escolas também tem sido uma forma de intervenção da equipe para conseguir formar jovens que articulem, cada vez mais, as situações de conflito no seu território. A problemática encontra-se no fato de que essas questões são analisadas pontualmente, desconsiderando todos os outros fatores econômicos, políticos e sociais que implicam na condição das favelas e periferias como territórios violentos, conflituosos e de extrema segregação social.

Por fim, cabe analisar, pontualmente, às instituições financiadoras do projeto e, inclusive, as suas percepções de ações sociais e educativas. Especificamente nesse caso, é possível citar a Kindernothilfe (KNF). A KNF é uma fundação alemã que estabeleceu uma parceria com o CEDECA para a realização do projeto citado. A perspectiva de educação zelada por essa instituição internacional zela pelos princípios da caridade e da assistência social como forma de auxiliar e garantir os direitos das crianças e adolescentes. Assume, assim, uma perspectiva de sociedade dependente e uma postura assistencialista perante as ações educativas que promovem.

As reflexões acerca das ações realizadas nas favelas e periferias são necessárias para que se possa compreender o perfil de educação que está sendo pensado através dessas ações. É importante ressaltar, inclusive, que a educação é um conceito norteador para toda e qualquer ação que vem sendo pensada para as favelas e periferias. Dessa forma, sempre haverá uma concepção de educação a ser analisada e que pode, muito bem, ser contraditória à medida que é analisada em conjunto com as ações promovidas.

Conclui-se, então, que o CEDECA e o Projeto Segundo Sol são formas de estabelecer um padrão normativo para a educação popular nas favelas e periferias, dialogando com a prática da Justiça Restaurativa e da Cultura de Paz sem, necessariamente, compreender as determinações históricas do capitalismo que impõe sobre a realidade vivida por esses jovens e adolescentes favelados e periféricos. São vítimas das injustiças de um sistema racista, violento e desigual socialmente, o que acaba por manter essas mesmas condições, ainda que se proponha a melhora nas condições de vida dessa população.