Ocupa Sapatão
Autoria: Gizele Martins
Há um aumento de movimentos de mulheres lésbicas pelo Brasil e, quando se fala em Rio de Janeiro, não tem como não lembrar da luta travada dentro da Câmara Municipal do Rio de Janeiro no primeiro ano de mandato da Vereadora Marielle Franco. Naquela época, ela reuniu diversas outras mulheres lésbicas para pensar conjuntamente em construções de diversos projetos de lei referentes à realidade deste grupo.
Como tudo começou...
Foi em 2017 que saiu também o Dossiê sobre lesbocídio no Brasil com dados analíticos e comparativos de 2014 a 2017[1], organizado pelo Núcleo de Inclusão Social – NIS e do Nós: dissidências feministas, que revelou números alarmantes de assassinatos, assédio, agressões, suicídio, além de outros tipos de violências. A pesquisa apontou que o assassinato de mulheres por conta da sua orientação sexual no país aumentou 150% entre 2014 e 2017.
Quando nos recordamos dos anos seguintes, lembramos do assassinato da própria vereadora Marielle Franco, em 2018. Sua vida, que representava milhares de outras mulheres negras, faveladas e lésbicas brasileiras, foi interrompida. Não foi coincidência que no mesmo período, o país viveu uma grande onda conservadora orquestrada pelo próprio Presidente da República da época.
Tal onda conservadora também tomou conta das favelas e periferias, foram inúmeras adolescentes e jovens lésbicas que passaram a sofrer ainda mais preconceitos por sua orientação sexual dentro destes territórios. Com a chegada da pandemia da Covid-19, em 2020, a convivência familiar para estes grupos piorou, muitas entraram em depressão, outras saíram de seus lares procurando apoio entre os grupos de acolhimento formados na emergência naquele ano.
Por isso, hoje, em pleno 2023, momento em que o país tenta se reerguer destes anos tão difíceis e traumatizantes, temos como papel político visibilizar e tornar memória ações como a da Ocupa Sapatão, atividade realizada desde 2017 pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro. A Ocupa é organizada por movimentos sociais de lésbicas e ativistas autônomas que constroem de maneira horizontalizada o 29 de agosto e atividades do mês da visibilidade lésbica.
Para falar um pouco sobre a história da Ocupa Sapatão e a importância de agosto ser lembrado como o mês da visibilidade lésbica, o Dicionário de Favelas Marielle Franco conversou com Camila Marins, Michelle Seixas e Dayana Gusmão. Ambas são referências na luta de lésbicas, negras e faveladas não só no Rio, mas em diversas outras partes do país.
De acordo com a jornalista e mestra em Direitos Humanos e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Camila Marins, tudo começou em 2017 quando a vereadora Marielle Franco convidou os movimentos e as militantes lésbicas para uma reunião em seu gabinete no dia 13 de março. "Ali, nos reunimos como Coletiva Sapa Roxa; Coletiva Visibilidade Lésbica; Liga Brasileira de Lésbicas; dentre outras militantes e ativistas autônomas. Marielle, numa prática feminista e de esquerda, convidou o conjunto dos movimentos sociais para uma construção coletiva".
Segundo Camila, juntas escreveram o Projeto de Lei que incluía o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário oficial da cidade. Além disso, foi feita uma estratégia de mobilização pela aprovação. "Foram realizadas reuniões em diferentes territórios como o espaço Resiliência, na Vila da Penha; Sarau da Visibilidade Lésbica com grafite e slam na Providência; a oficina 'Confeitando afetos' na Maré", contou.
Até que foi marcado o lançamento da Campanha pela Visibilidade Lésbica no Rio de Janeiro, no dia 16 de maio de 2017, organizada pela Liga Brasileira de Lésbicas, Coletiva Visibilidade Lésbica e Sapa Roxa. No encontro, foi realizada a roda de conversa “Violência, Saúde, Trabalho e Educação”, com participação de Marielle Franco, Michele Seixas, Ana Almeida, Geisa Garibaldi e Pâmela Souza, com mediação de Camila Marins ao lado de Virgínia Figueiredo, a primeira candidata lésbica no Brasil. Foram mais de 100 sapatonas lotando o plenarinho da Câmara Municipal. "Essa foi uma noite histórica porque invadimos o plenário maior que realizava uma audiência pública sobre a Parada LGBTQIA+ do Rio de Janeiro e denunciamos o apagamento e a lesbofobia", disse Camila.
Na sequência, pela articulação política do Projeto de Lei, as coletivas junto com a mandata de Marielle Franco promoveram no dia 5 de junho 2017 um encontro de construção da Campanha pela Visibilidade Lésbica, no bar Resiliência, na Vila da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, com o objetivo de realizar um balanço do debate público na Câmara de Vereadores e preparar o material da visibilidade lésbica que seria lançado em um sarau.
No entanto, no dia 16 de agosto de 2017, o Projeto de Lei (PL) foi rejeitado por apenas dois votos de diferença pela maioria dos vereadores sob argumentos fundamentalistas e conservadores. Muitos parlamentares que se colocaram contra o PL da visibilidade lésbica – inclusive o atual governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro – subiram à tribuna para afirmar que a data era “desnecessária” e que “enquanto bancada evangélica combateriam”.
Neste dia, cerca de 40 mulheres lésbicas – com o apoio de pessoas trans da CasaNEM – ocuparam a galeria da Câmara Municipal para pressionar os vereadores que reverberaram lesbofobia e machismo. Camila contou nesta entrevista que toda essa raiva foi utilizada como instrumento pedagógico de luta: "Lembro que houve uma reunião na minha casa, estávamos sentadas no chão e pensamos juntas o nome Ocupa Sapatão, como um movimento político de denúncia e resistência, com falas e apresentações artísticas em frente à Câmara Municipal, na Cinelândia".
No dia de realização da Ocupa, naquele 29 de agosto, quando todas elas pensaram que seria uma noite delas, o inesperado aconteceu… Uma manifestação invadiu o ato e um dos homens tentou pegar o microfone sob o argumento de “que todas ali elas eram companheiros”. Camila lembrou que naquela ocasião, duas mulheres com uma força gigante evocaram respeito e diziam: "Porque, sim, somos companheiros e companheiras na luta e estamos todos os dias nas ruas com todo mundo, mas no nosso dia queriam, mais uma vez, apagar o nosso ato. E aí sempre perguntamos: quando todas as pessoas companheiras vão apoiar as sapatonas?", argumentou.
Ao perguntar sobre as principais pautas levantadas durante a construção de todas as Ocupas realizadas durantes estes anos, Camila afirmou que,
"a visibilidade lésbica é uma pauta central, e isso não significa close, pois queremos estar nas políticas públicas. Hoje, convivemos com um apagamento de dados e das políticas públicas específicas para lésbicas. Por exemplo, se vamos fazer um preventivo e falamos que somos lésbicas, a narrativa dos médicos é a de que não precisamos fazer o exame, o que é uma lesbofobia enorme".
Também é pautado sobre a visibilidade lésbica nas escolas, pois segundo Camila, é preciso cada vez mais falar sobre os direitos das lésbicas nos espaços escolares como uma forma de combater o bullying lesbofóbico. Afinal, quem nunca viu uma frase de ódio escrita em carteira ou em porta de banheiro? Ou quando meninas e jovens sofrem estupro corretivo dentro de suas casas apenas por serem lésbicas?
"Nós combatemos e denunciamos essas violências. Além disso, em nossas manifestações sempre reivindicamos justiça por Marielle. Em alguns anos, tivemos como mote a luta contra a militarização da vida; em defesa do direito à água contra a privatização da Cedae e outros impactos que atingem diretamente as nossas vidas".
Ocupa Sapatão 2023, participação das favelas e a escolha dos temas prioritários
Dayana Gusmão também participa da Ocupa. Dayana é uma das integrantes da Resistência Lésbica da Maré, localizado na Maré, favela localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela ressaltou que, embora a visibilidade lésbica aconteça uma vez ao ano, o trabalho de base é feito o ano inteiro. Contou ainda que a entrada de lésbicas faveladas no movimento social de lésbicas tem trajetória muito similar à entrada de mulheres negras no feminismo branco hegemônico. "Essa entrada é feita à base de ocupação".
De acordo com Dayana, a Resistência Lésbica da Maré compõe a Ocupa Sapatão desde 2017 fazendo um duplo movimento: Primeiro, colocar dentro da Ocupa a lembrança que este movimento é feito com as favelas. Segundo, promover entre lésbicas de favela, o entendimento de que a Favela faz parte da cidade e, portanto, todos espaços devem ser ocupados para garantir que nossas lutas compunham este movimento e, assim, possamos usá-lo como ferramenta para luta por direitos ...não é fácil fazer corpos socializados com a vertente da exclusão social e política, desenvolverem acreditação em espaços não favelados.
Michele Seixas, moradora do Complexo do Alemão, disse que no seu território o movimento não tem uma agenda fixa de reuniões, "porém conseguimos nos encontrar com temas específicos, assim como para a realização da Ocupa Sapatão, e/ou para a organização do Encontro Estadual de Lésbicas, dois deles já foram realizados no próprio Complexo do Alemão. Aqui no Alemão nos comunicamos sempre hoje por um grupo de WhatsApp, ali a gente organiza nossas agendas, discutimos alguns temas mais urgentes e encaminhamos demandas urgentes".
Para a realização do Ocupa estes movimentos se reencontram e neste ano de 2023, inicialmente as reuniões estavam sendo feitas virtualmente, mas com a proximidade do agosto, agora estão sendo presenciais na Casa das Pretas. As decisões são tomadas de maneira horizontal e coletiva sempre afirmando a Ocupa Sapatão como um movimento político. Para este ano, uma das pautas prioritárias é pela aprovação do PL Luana Barbosa de enfrentamento ao lesbocídio, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o projeto estava arquivado e o objetivo é que ele volte para a discussão no plenário.
Voltando um pouco no tempo, importante ressaltar que toda a discussão sobre o projeto de lei Luana Barbosa não é nova, Camila mesmo lembrou que esta discussão iniciou quando ela esteve anos atrás como assessora do Mandato da ex-deputada estadual Monica Francisco: "À época, eu era coordenadora da equipe de gênero da mandata e fui a idealizadora do projeto. Construímos juntas a redação e fizemos uma estratégia de mobilização com dimensão nacional. Vários municípios e estados apresentaram o projeto e em Niterói virou lei, mas na Alerj foi arquivado".
Luana Barbosa foi uma lésbica negra, periférica, mãe e trabalhadora vítima da violência policial e até hoje não houve justiça e uma solução sobre o caso. Essa mobilização em torno do PL Luana Barbosa foi feita por: Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), Candaces Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas e Autônomas; Coletiva Resistência Lésbica da Maré; Dossiê Lesbocídio; Grupo de Mulheres Felipa de Sousa; Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e Revista Brejeiras.
Dos movimentos de lésbicas temos a Coletiva Resistência Lésbica da Maré, além de ativistas faveladas que atuam nos movimentos sociais, como Michele Seixas, do Alemão que é da ABL. Inclusive o Encontro Estadual de Lésbicas foi realizado no Alemão por dois anos seguidos, mas numa articulação do Instituto Brasileiro de Lésbicas.
Referências
Ver também
Para saber a programação deste ano, acompanhe a página do Ocupa Sapatão no Instagram: