Moradia
Como conceito, moradia pode ser entendido como um lugar da estabilidade da habitação, do morar construído sob a fixação regular e constante no solo, da residência que protege e abriga, física e legalmente, mas, sobretudo, imbricado em um cotidiano vivido de relações e compromissos sob ordenamentos sociais (sejam eles formais e/ou informais). Como objeto pode ser entendido como um conjunto de ações rotineiras situadas em um tempo- espaço, coordenadas sob determinadas condições materiais e simbólicas das pessoas.
Contextualizando nessas ações rotineiras estão as possibilidades de acessos (ou da sua negação seletiva que marcam nossa sociedade profundamente desigual) as mais distintas instâncias da vida local e global para atendimento de desejos e necessidades, como: para a geração de renda e o trabalho (formal ou informal, permanente ou periódico), o acesso aos diferentes equipamentos públicos (hospitais, escolas, creches, teleférico etc.), por meio do reconhecimento e a configuração jurídico-legal da propriedade, e mesmo por meio de histórias compartilhadas (a memória social) de disputas, negociações, violências, desigualdades e afetos que circulam entre narrativas e trajetórias de vida. que essa ideia de moradia se caracterizará no dia a dia da cidade.
Bachelard (1978) faz uma distinção entre os termos moradia e lar: corroborando com a definição acima, a moradia estaria no âmbito do lugar, do núcleo de coabitação afetiva e efetiva, articulado entre o “dentro” e o “fora” da casa, o espaço circundante e formador da realidade vivida; enquanto o segundo, o lar, diz respeito a sua origem, ou melhor, o passado no mundo, a “casa natal”, onde “na profundidade extrema do devaneio, participa-se desse calor primeiro, dessa matéria bem temperada do paraíso material... ambiente que vivem os seres protetores” (BACHELARD, 1978, p. 202). Entretanto, como veremos em algumas narrativas coletadas no campo de pesquisa, essa diferenciação não estaria dicotomizada, mas complementarizada na dinâmica da vida cotidiana.
A “moradia” e o “lar” compõem os dois lados de uma mesma moeda que é a “casa”. A casa exprime a concretude da existência de um lar ao mesmo tempo que está na fronteira simbólica do público e do privado da moradia. A casa denota um lugar no mundo, um tipo existência na habitação (aqui no sentido do ser habitante presente e atuante no lugar) e uma forma de construção do espaço habitado ao redor. A casa é o limiar entre a circulação e a imobilidade de sua representação física no espaço. É ela quem possibilita partirmos de um lugar para qualquer outro. Uma referência, o lugar de onde se vem e pra onde se vai.
No caso da casa na favela esta construção representativa da casa tornou-se ao longo do tempo algo bastante efêmero. Historicamente entendida como lugar das ausências, a casa na favela tornou-se lugar provisório, de transição, um problema. Sob o discurso da ilegalidade, sua presença encontrou-se historicamente sob as incertezas de sua própria possibilidade de existência, formação e permanência na cidade. Dialeticamente, a casa na favela, constituiu-se como um processo histórico, marcado pelas desigualdades socioestruturais, tendo se consolidado ora mais, ora menos no espaço urbano, de acordo com a orientação das políticas de “desenvolvimento e reforma urbanos” e sua imbricação com os interesses relacionados de mercado – mais explicitamente o imobiliário – e políticos.
Tomando o Complexo do Alemão e as favelas que o compõe como foco da análise, a formação não só da moradia na favela, mas como do próprio espaço social em que eles se conformam, está marcado pelos efeitos sociais de dois processos sócio-históricos que paulatinamente de interconectam: a mercantilização de seus espaços (residenciais ou comerciais) e a consolidação de um ordenamento socioespacial exercido e controlado pelos grupos armados que controlam a venda do varejo de drogas na favela – o “tráfico”. Para os fins que marcam o debate sobre os processos de formação dos espaços de moradia em favelas e periferias das cidades contemporâneas, Cavalcanti (2009) contribui com sua reflexão sobre o processo de “consolidação” da própria favela. Para ela “pensar a favela consolidada implica levar em consideração a historicidade da favela como forma social e espacial
(...) como processo espaço-temporal, atravessado por relações de poder que se (re)produzem em diversas escalas (CAVALCANTI, 2009, p.71). A autora defende que essa consolidação ocorre de uma nova forma de enxergar as favelas no corpo da cidade: da necessidade de remoção à emergência pela sua urbanização. Para ela a mudança de paradigmas das políticas governamentais fundamentadas na remoção para programas que visam à ‘integração’ da favela à cidade dita ‘formal’ pode ser lida como a história da passagem do ‘barraco’ de estuque a ‘casa de alvenaria, consolidando assim sua permanência no espaço urbano. (Idem, p. 72).
Considerando as recentes intervenções do poder público em diversas favelas do Rio de Janeiro com fins a urbanização, como o PAC-Favelas, a ideia de moradia aqui torna-se tanto um conceito quanto um objeto para reflexão. Como conceito, o que poderia ser. Como objeto, o que foi feito e como se operacionaliza no dia a dia. A aproximação entre conceito e objeto aqui torna- se importante para pensar alguns dos desdobramentos nascidos dos cotidianos alterados, não só pelas obras foram realizadas ou não deixadas de lado pela urgência do tempo político, mas pelos significados empreendidos na própria dinâmica do cotidiano ressignificado. Moradia, assim, constitui-se acima de tudo o produto do ser e do dever ser. Do espaço vivido.
Palavras-chave: moradia; casa; favela; urbanização; espaço vivido
Referências
CAVALCANTI, Mariana. "Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. RBCS Vol. 24 n.o 69 fevereiro/2009.
CAVALCANTI, Mariana. À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’. DILEMAS - Vol. 6 - no 2 - ABR/MAI/JUN 2013 - pp. 191-228.
BACHELARD, Gaston. 1994. “Introduction”, “The house. From cellar to garret. The significance of the hut”. In: __________. The Poetics of Space. Boston: Beacon Press. [pp. xv-xxxix; 3 – 38).
LEFEBVRE, Henri. O dierito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.
LEFEBVRE, Henri. 2007. The production of the space. Translated by Donald Nicholson-Smith. Blackwell publishing.
Autor: Bruno Coutinho.