Cidades - uma possível saída ao nó da terra (artigo)

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Termo Territorial Coletivo expressa nova forma de gerir terras urbanas. Permite às populações vulnerabilizadas coletivizar áreas ocupadas, cuidar do espaço comum e garantir casa própria, fora das lógicas selvagens do mercado.

Autoria: Tarcyla Fidalgo
Este artigo foi originalmente publicado no portal Outras Palavras em 5 de julho de 2022.
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Sobre[editar | editar código-fonte]

Sabe-se que a questão fundiária é um dos maiores desafios do Brasil. Desde a invasão portuguesa, um amálgama de regimes jurídicos e relações sociais criou o “nó da terra” que perdura até os dias atuais. O tema passou a ganhar destaque e uma importante produção normativa a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016. O sentido das várias normas produzidas sobre a regularização fundiária desde então é unívoco: homogeneizar o regime jurídico da terra sob o paradigma da propriedade privada individual, permitindo um aprofundamento das transações, mercantis e financeiras, que a envolvam. A última amarração dessa rede normativa, que vem sendo criada desde 2016, é o PL 4188/21, que permite a penhora do único imóvel familiar dado em garantia de dívidas, com potencial de vulnerabilizar ainda mais a população empobrecida do país ao permitir que se tire o elemento mais básico do mínimo existencial consagrado constitucionalmente: a moradia.

Sendo assim, essa rede normativa vai em direção oposta ao previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, visto que ambas as leis partem de uma base principiológica da funcionalização da terra para a garantia de direitos dos cidadãos, em especial das populações vulnerabilizadas, com a previsão de diversos instrumentos voltados para o adequado cumprimento deste objetivo.

Apesar da ampla estrutura jurídica protetiva existente, a aplicação isolada dos instrumentos previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade nos últimos anos vem se mostrando insuficiente para desatar o “nó da terra” no país. Tal cenário que se agrava diante das alterações e produções normativas do período recente, que apontam no sentido da privatização excludente da terra no Brasil.

Neste sentido, torna-se a cada dia mais fundamental ampliar as possibilidades de utilização conjunta dos instrumentos disponíveis no nosso ordenamento jurídico, forjados na luta social por cidades mais justas e inclusivas. Não se pode mais pensar apenas na regularização fundiária como instrumento de solução do nó da terra. O mesmo se podendo dizer em relação às Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) e outros tantos instrumentos urbanísticos, cuja aplicação isolada já se mostrou insuficiente para a garantia de direitos aos citadinos, em especial aos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, é cada vez mais importante olhar para as experiências internacionais protetivas sob a perspectiva antropofágica que nos ensinaram os modernistas: engolir, mastigar, cuspir o que não nos serve e incorporar o que nos enriquece.

Sob esse olhar, vem se apresentando no debate público o modelo do Termo Territorial Coletivo (TTC), versão brasileira dos Community Land Trusts, conhecidos há décadas pelo seu potencial enquanto modelo de gestão fundiária apto a garantir a permanência e a fruição do desenvolvimento territorial e comunitário por populações vulnerabilizadas. Trata-se de modelo atualmente presente em diversos países e contemplado na nova agenda urbana como uma iniciativa a ser incentivada pelos Estados signatários do documento, dentre os quais se encontra o Brasil.

Dado o avanço da legislação urbanística em nosso país, o TTC se apresenta como um instrumento de costura de diversas ferramentas previstas em nosso ordenamento, como a regularização fundiária, o direito de superfície e as ZEIS.

O TTC apresenta, ainda, o potencial de conjugar anseios individuais e coletivos, ao permitir que a comunidade como um todo se torne proprietária da terra por meio de uma pessoa jurídica criada e gerida pelos moradores, que não pode vendê-la, enquanto estes, individualmente, recebem o título referente às construções nos seus terrenos, por meio do direito de superfície. Neste arranjo, os moradores podem vender, alugar ou deixar de herança a sua moradia, mas com a garantia de que os valores permanecerão acessíveis para outras famílias de baixa renda, uma vez que a terra é retirada permanentemente do mercado.

Ao mesmo tempo em que o modelo se assemelha com opções disponíveis no ordenamento jurídico, se diferencia e inova ao promover a separação de propriedades e garantir a retirada, parcial ou total, do preço da terra das transações envolvendo as construções. O modelo se completa por meio da gestão coletiva do território e do empoderamento comunitário a partir da propriedade das terras e do engajamento contínuo dos moradores, complementando o sentido pretendido para as ZEIS, outro instrumento de grande potencial presente em nossa legislação.

Para além de se compatibilizar completamente com a ordem jurídica urbanística nacional, trata-

-se de uma proposta que inova e avança no sentido preconizado pela nossa Constituição Federal rumo a cidades mais justas e igualitárias.

Sua presença crescente no debate público é uma provocação para que sigamos avançando na pauta urbana nacional, a partir da legislação fruto da luta histórica de movimentos sociais e da sociedade civil e rumo a modelos que se adequem aos desafios contemporâneos que já se mostram quali e quantitativamente diversos daqueles enfrentados nas décadas anteriores.