Se facção tem tropa milícia tem GAT - representação da atuação da milícia na Muzema

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Sobre a autora:

Cintia Maria Frazão é advogada, antropóloga, graduanda em Serviço Social. Mestre em Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ,Pós Graduada em Direito de Família, especialista em Direito Ambiental e Antropóloga Urbana. Pesquisadora do Observatório das Metropólis- IPPUR/UFRJ e Bonde/UERJ. Atualmente Doutoranda no IESP/UERJ.

Sobre Muzema:

Esse verbete foi pensado a partir de uma parte da pesquisa de dissertação de mestrado em Planejamento Urbano e Regional desenvolvida na Muzema ( Zona Oeste do Rio de Janeiro).

A Muzema surge em um contexto, ligado a divisão social do trabalho[1] e do espaço, a ocupação começou na década de 70 e tomou forma na década seguinte com o aterro de parte da lagoa da Tijuca que deu espaço ao primeiro loteamento irregular. A nova forma de produzir a cidade chegava na zona oeste da cidade, o crescimento imobiliário da Barra da Tijuca estava em seu auge, assim era necessário mão de obra barata bem ao lado do “bairro planejado” para satisfazer as necessidades do setor. Oliveira (2013) classifica o papel da autoconstrução como possibilitadora do rebaixamento da força do trabalho e funcional para a acumulação de capital, sendo assim a Muzema era essencial para a manutenção da forma de produção imobiliária que ocorreu na Barra da Tijuca.

O aterro da Muzema chegou nos anos de 1986, dez anos após a construção de sua via principal, a favela surgiu em meio ao manguezal num solo que não tem capacidade de sustentar grande peso, sendo o local que sustentaria os assentamentos ilegais dos migrantes dos mais diversos estados do país. O Cambalacho[2], o primeiro loteamento da Muzema, ganhou esse nome em homenagem a uma novela da época. Este era um espaço sem água encanada, saneamento básico e que crescia cada vez mais, no local se constituiu a associação de moradores da Muzema que concentrava a distribuição de programas sociais e era o lugar de encontro dos moradores. Já na década de 90 a milícia toma conta dessa localidade, de acordo com moradores da Muzema a associação de moradores teve em 1993 a sua última eleição, sendo que depois a milícia que determinava quem seria o presidente da associação.

A associação de moradores exerce um papel importante com histórico de apoio à milícia e já foi investigada por diversas vezes, sendo que em 2019 o presidente foi acusado de usar o espaço como uma imobiliária clandestina. A lógica de construção da Muzema é o aproveitamento por parte da milícia do fato de que as pessoas que não possuem condições de ter uma moradia “se virem”, pois não possuíam meios de financiar com os bancos e viam nos milicianos o suporte para ter onde morar, todas essas irregularidades podem ser interpretadas como fruto do capitalismo, pois a atividade capitalista produz um desenvolvimento geográfico desigual (Harvey, 2006).

Cabe aqui explicar que a Milícia é a designação genérica das organizações militares ou paramilitares compostas por cidadãos comuns, armados ou com poder de polícia que teoricamente não integram as forças armadas de um país. As milícias podem ser organizações oficiais mantidas parcialmente com recursos do Estado e em parceria com organizações de caráter privado, muitas vezes de legalidade duvidosa.

O delegado Pedro Paulo Pinho, segmenta as milícias em três níveis (ALERJ, 2008, p. 41). O Nível 1 refere-se a grupos de extermínio formados para combater o crime, nos quais os próprios residentes se organizam para impedir a entrada de traficantes e outros criminosos. O Nível 2 envolve a cobrança de taxas aos moradores das comunidades, feita por meio do cadastramento nas associações de moradores. Essas organizações passam a apoiar candidatos a cargos parlamentares para obter representação nos poderes constituídos. O Nível 3 implica o controle de diversos serviços, como gás, TV a cabo e transporte alternativo. As associações de moradores passam a ser diretamente controladas por esses grupos, e os milicianos, por sua vez, tornam-se candidatos nas eleições.

O crescimento desenfreado da favela para responder a busca de lucro da milícia, as quais executam funções pertencentes às instituições do poder público com argumento de manutenção da ordem e pelo bem comum. Com um modus operandi[4] de agentes imobiliários não formalizados a milícia organiza ocupações de loteamentos, obras e produzem prédios de apartamentos, além disso, quando não são agentes construtores eles tomam posse das casas autoconstruídas, taxam esta autoconstrução e monopolizam uma série de mecanismos criando formas de gerir espaços segregados. O processo de formação dessas favelas não escapa a constituição descrita por Arantes (2009), onde o autor destaca a moradia associada a questão de trabalho e a mobilidade urbana, no caso o Jacarezinho surge a partir do contexto descrito como fase inicial da provisão habitacional e a Muzema se constitui na segunda fase.

Sobre a pesquisa:

Para a realização da dissertação foi realizado um trabalho de campo com inspirações etnograficas na Muzema, território de milicia no inicio da pesquisa (2021) e um território em disputa no final da pesquisa (2022). O objetivo principal da pesquisa foi refletir sobre os impactos do programa Cidade Integrada em territórios populares controladas por grupos armados, a partir do estudo de caso do bairro da Muzema, buscando identificar se, e como as ações implementadas no âmbito desse programa geram reconfigurações na forma de atuação das milícias que controlam este território.

GAT não é Tropa:

Durante o trabalho de campo ( presencial e netnografico) foi percebido que os moradores, as noticias de jornais e twitters falando sobre a milicia e seus lideres traziam a momenclatura GAT a mesma utilizada pelas forças policias Grupo de Ação Tática (GAT). Nomes como Gat do Pezão, Gat do Mágico, Gat do Major eram repetidamente citados na Muzema, até que foi possivél perceber que se referiam aos homens de "guerra" dos milicianos, são os milicianos de combate que respodem a um respctivo miliciano que é o 01 de seu grupo. Podemos fazer uma analogia as tropas ou bonde que as facções utilizam para identificar seus repectivos grupos.

Não parece ser mera coincideência que os grupos de homens da milicia espcializados em dominar, invadir e exterminar seus rivais seja Gat, tendo em vista que ela surge através de agentes policiais, expande-se para os corpo de bombeiros uma instituição também militarizada. E hoje ainda que não seja formada apenas por agentes da policia militar, bombeiros e afins, ainda carrega a hierarquia e algumas divisões de suas forças de origem.

Referências:

ALERJ - ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação de milícias no âmbito do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ALERJ, 2008. Disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/relatorio_milicia.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022.

ARANTES, Pedro Fiori. Em busca do urbano: marxistas e a cidade de São Paulo nos anos de 1970. Novos Estudos, CEBRAP, v. 83, p. 103-127, mar. 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-33002009000100007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/Q6C6w9vg93LQdtC5VK8crrm/. Acesso em: 5 jun. 2023.

FRAZÃO, Cintia Maria "NÃO MEXE QUE EU NÃO ANDO SÓ: análise da influência do Programa Cidade Integrada na atuação das milícias na Muzema/ Cintia Maria Frazão. -- Rio de Janeiro, 2024.

HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.

OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e o urbano no Brasil. In: BARROS, Joana; SILVA, Evanildo Barbosa da; DUARTE, Lívia (org.). Caderno de Debates 2. Cidades e conflito: o urbano na produção do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: FASE – Solidariedade e Educação, 2013. Disponível em: https://fase.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Caderno_de_Debates_2.pdf. Acesso em: 1 abr. 2023.


[1]  Segundo Marx (2013), a divisão do trabalho de acordo com as especialidades produtivas, acaba gerando uma hierarquia social na qual as classes dominantes. Isto é, a burguesia, subjuga as classes dominadas, estabelecendo as instituições, assim como a detenção dos meios de produção.

[2]  Cambalacho é uma telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo, escrita por Sílvio de Abreu, que abordou como tema a “situação vergonhosa” no qual o Brasil passava, na visão do autor.

[3]  Em 1997, barracos já haviam dado lugar às construções de alvenaria, na beira da Lagoa da Tijuca.

[4]  Modus operandi é um termo utilizado no Direito Penal, o qual se refere a forma como o crime é praticado pelo agente, ou seja, o meio pelo qual ele determina seus atos para realizar a prática do crime e, consequentemente, a sua consumação.