Chacinas e a Politização de Mortes

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 20h05min de 12 de novembro de 2024 por Kita Pedroza (discussão | contribs) (Categoria temática, palavras-chave)
(dif) ← Edição anterior | Revisão atual (dif) | Versão posterior → (dif)

Este verbete apresenta o artigo/relatório de pesquisa da Fundação Perseu Abramo intitulado "Chacinas e Politização de Mortes", que busca levantar reflexões teórico-metodológicas sobre o pensar chacinas tanto acadêmica quando politicamente. O trabalho apresentado pelos autores forma análises preliminares de uma pesquisa que se estende há algum tempo e que tem por objetivo analisar as chacinas da última década.

Autor: Fundação Perseu Abramo

Contextualização[editar | editar código-fonte]

"Chacina" é um termo popular, oriundo do dia a dia e da imprensa, mas que acabou por ser absorvido pela academia e reforçado por entidades políticas defensoras dos direitos humanos, de modo a servir como instrumento de disputa narrativa e material-simbólica contra o estado assassino. Todavia o usufruto de tal estratégia semântica, o termo acaba por carregar uma multiplicidade de sentidos a depender de local, momento e interlocutores. Por isso, os autores do artigo aqui referenciado fazem o esforço de iniciar a fomentação de um debate teórico mais aprofundado quanto ao que seria uma chacina, como a utilizar para reflexões e análises e quais os limites dessa terminologia.

Como eles mesmo explicam: "Para enfrentar o desafio político e metodológico de pensar o problema da violência de uma perspectiva ao mesmo tempo histórica e situada, estamos propondo um estudo sobre o fenômeno das chacinas ocorridos nos últimos 10 anos. Nosso objetivo é analisar tanto a dinâmica interna das chacinas (perpetradores, vítimas, local, violações etc.), o contexto sociopolítico em que as chacinas ocorrem (disputa entre facções criminosas, conflitos com as forças policiais, grupos de extermínios, crime político etc.), bem como as reações e resistências políticas decorrentes desses eventos traumáticos (movimento de familiares de vítimas de violência do Estado, manifestações públicas, propostas de alteração da legislação etc.)."

O artigo[editar | editar código-fonte]

A AGENDA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL: UM OLHAR A PARTIR DAS TAXAS DE HOMICÍDIO[editar | editar código-fonte]

Na região Sudeste, por exemplo, a taxa de homicídio cresceu de forma acentuada nas décadas de 1980 e 1990, pressionada principalmente pela situação no Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, ao longo dos anos 2000, a taxa de homicídio dos dois estados caiu. A queda do número de assassinatos em São Paulo ao longo dos anos 2000 foi tão vertiginosa que permanece como um ponto de discordância entre gestores públicos e pesquisadores de várias matizes e tendências: a taxa de mortalidade nesse estado passou de 43,2 casos por 100 mil habitantes em 1999 para 10,9 casos em 2016, ficando abaixo da média nacional. Diante de uma mudança tão brusca de tendência, setores ligados à gestão do governo estadual, mas não somente eles, defendem que a reconfiguração da política de segurança pública, como a criação do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o aumento do encarceramento e a política de controle de armas de fogo tenham sido responsáveis pelo resultado. Por outro lado, um grupo de pesquisadores e os próprios policiais e investigadores sustentam a hipótese de que a queda dos homicídios responde às novas normas de funcionamento do mundo do crime e do mercado varejista de drogas capitaneada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Em diversos estudos de referência sobre a recente dinâmica do “mundo do crime” em São Paulo, pesquisadores como Vera Telles, Gabriel Feltran, Daniel Hirata, Camila Dias, dentre outros, relatam que, em diferentes situações, em pontos distintos da periferia de São Paulo, ouviram dos moradores que depois da emergência do PCC no território houve a interdição de assassinatos. Como bem descreveu Feltran (2014), a emergência do PCC no sistema prisional e nas periferias paulistas significou uma “modificação radical na regulação da violência”, sendo que os longos ciclos de mortes que caracterizaram a disputa pelo mercado de droga nos anos 1990 foram substituídos por negociações arbitradas pelo “Comando”, outro pseudônimo para o PCC, este atuando por meio de instâncias decisórias chamadas de “debate” nas quais a execução de uma pessoa ocorre em situações extremadas.

A controvérsia sobre a queda da taxa de homicídio em São Paulo permanece acesa. O PCC tem ocupado um lugar cada vez mais central no debate sobre segurança pública na medida em que a organização se espraia para os presídios de outras regiões do país, resultando em uma guerra sangrenta e alianças entre facções dentro e fora da prisão com reflexos, inclusive, nas taxas de homicídio das regiões Norte e Nordeste.

Quando olhamos para a região Nordeste, observamos um aumento da taxa de homicídio acima da média nacional – 30,3 para cada 100 mil habitantes em 2016 (Ipea, 2018) – a partir dos anos 2000, com destaque para Rio Grande Norte (53,4), Pernambuco (47,3) e Ceará (40,6) (Ipea; FBSP, 2018). Esse resultado colocou um dilema para os estudos sobre violência e criminalidade na medida em que os estados que mais reduziram desigualdades na última década apresentaram tendência de crescimento em suas taxas de homicídio. Novamente, as explicações disponíveis combinam desde fatores socioeconômicos mais gerais, como aumento do PIB, grau de urbanização, política de transferência de renda, segregação urbana, passando por deficiências da política de segurança pública e do sistema de justiça, chegando na reconfiguração do mundo do crime. Não se trata aqui de enfrentar o intrincado (porém, necessário) debate sobre os fatores que informam as tendências das taxas de homicídio, mas sim de mostrar como atrás dos indicadores existem tramas sociais que precisam ser bem compreendidas. Como bem disseram recentemente dois especialistas sobre o assunto: “continuam sendo uma grande incógnita os fatores que explicam o espantoso crescimento da violência letal nas últimas décadas” (Costa & Lima, 201, p. 87).

...

RITUAIS DE VIOLÊNCIA: CHACINAS E A POLÍTICA DA MORTE NO BRASIL[editar | editar código-fonte]

Infelizmente ouvimos com certa recorrência a palavra “chacina” nos jornais, na televisão, nas conversas cotidianas. Não raro nos deparamos com uma manchete noticiando mais uma chacina com quatro, sete ou doze vítimas. Entretanto, apesar de comum, chacina não é um conceito jurídico. A morte de diversas pessoas em uma ação planejada aparece no inquérito policial ou no processo judicial como “homicídios múltiplos”. Nesse sentido, a palavra chacina é o que os antropólogos denominam como uma categoria nativa (ou êmica), ou seja, ela opera no mundo prático e seu significado tem um valor histórico para determinadas sociedades ou grupos sociais (Guimarães, 2003).

Desse modo, a execução seriada de várias pessoas como forma de intimidação ou retaliação é um recurso tão comumente utilizado entre nós que até temos um nome específico para designar esse tipo de morte: chacina. Como quase sempre acontece, a escolha da palavra não é aleatória, pelo contrário, é uma chave preciosa para o entendimento do próprio fenômeno.

O jornal americano Washington Post descreveu a palavra “chacina” como a mais assustadora do português brasileiro. Em uma reportagem específica sobre a peculiaridade da palavra e do cenário de violência vivenciado no país, o jornalista Shannon Sims pontuou: “A palavra chacina vem do abate de porcos em matadouros, e significa literalmente massacre ou abate. Mas pergunte a qualquer brasileiro, e eles vão dizer que há um outro significado, mais perturbador [...] Ao longo da história moderna do Brasil, a palavra chacina veio a se referir ao massacre de pessoas após a morte de um policial. A implicação é clara: chacina são assassinatos em represália pela polícia em uma escala assustadora”4 .

O artigo de Sims é interessante pois reforça o argumento de que “chacina” é uma expressão brasileira da violência e problematiza o sentido etimológico original da palavra e a sua ressignificação como uma chave de compreensão da realidade. No entanto, como veremos na presente pesquisa, não podemos restringir a ocorrência de chacinas aos atos de retaliação protagonizados pelas forças policiais, embora esse tipo de situação seja uma das principais facetas desse fenômeno em alguns estados. A associação entre abate de animais e a ocorrência de homicídios em série realçada na reportagem é bastante forte e merece destaque.

Analisar os elos de significado entre o uso original da palavra e a forma como ela tem sido utilizada contemporaneamente vai além dos propósitos deste texto. Podemos pensar em pontos de comunicação entre os dois usos da palavra. O primeiro ponto que sobressai é de que o fenômeno da chacina combina de forma tensa ritualização e visibilidade. Na maior parte das vezes, a chacina é um ritual de execução de pessoas tomadas como inimigas ou indesejáveis, realizado por assassinos mais ou menos anônimos. Nesse sentido, as chacinas podem ser interpretadas como mensagens públicas, com intuito de criar medo e temor a um público mais ampliado, e uma demonstração de poder e autoridade conquistado e/ou garantido por meio da violência letal. Na maior parte dos casos, as chacinas são ritualizadas, atos repetidos em diferentes casos, vestígios são estrategicamente deixados na cena do crime e a identidade dos assassinos ou dos mandantes circulam publicamente na forma de rumores.