Periferia da Imagem Periférica
Autoria: Lincoln Péricles.
Teve uma vez, num debate desses de cinema que alguém perguntou alguma coisa, ouviu minha resposta e disse pra mim que eu não havia entendido e respondeu por mim a pergunta que ele mesmo havia feito. Teve uma vez que disseram que o meu filme até ele faria. Teve uma vez que disseram que eu não deveria fazer filmes e sim escrever RAP. Teve uma vez que um policial e um moleque disseram ao mesmo tempo durante um enquadro: “você não sabe pelo que eu passo” e os dois trocaram de corpos e deu uma comédia muito engraçada, sucesso de bilheteria. Teve uma vez que colou no sarau né, daí assim o boy todo animado escolhendo alvos e gritando pow pow pow, daí ele teve medo de vir dormir no barraco, é que ninguém quis trepar com ele e tal, foi só de gentileza que nóis ofereceu. Teve uma vez que todo mundo percebeu que ele aprendeu a falar umas gírias e virou amigo de uma pa de favelado na internet, que fazia uma espécie de fotossíntese sugando a luz da galera de quebrada que brilha.
“O que ficou de fora das nossas mara-vilhosas conquistas? ” perguntou a criança
“Nossa paz é um fruto que vai ser sempre retirado à força do nosso estômago, mas agora resta saber meu filho, se é desse fruto mesmo que queremos nos alimentar. ” disse a mãe.
Teve uma vez, que saindo de um desses debates “de cinema” me perguntaram com curiosidade de pesquisador, como fazia pra fazer os filmes que eu fazia, qual seria a diferença entre alguém vir gravar alguma coisa na minha quebrada e eu fazer um filme por aqui. No momento respondi categórico: Não sei. E aquilo me incomoda até hoje, porque naquele momento não sabia que isso é a síntese do que os que são de outra classe tem como certeza: que eles podem ser o que quiser, inclusive ser a gente, e que nóis se tornar o que quiser significa… nos tornar eles. Esse é um processo evidente do capitalismo que corre nas veias de hoje em dia, onde é fácil demais “respeitar” ou “tornar-se outro” através dos inúmeros mecanismos de pesquisa que o dinheiro oferece. É mais fácil ainda destruir auto estima, conhecimentos milenares e vidas. De alguma forma o boyzinho de esquerda e o fascista moderninho andam de mãos dadas, violentam, matam, apagam, ou pelo menos tentam nos apagar. Um pela manta ideológica que veste quando qualquer idiota grita palavras que soam bem e outro pela capacidade de sistematicamente apagar a história das nossas para eximir sua culpa de ser o que se é.
“A história é a história de violência contra nóis. ” disse a mãe.
Somos as pessoas que estudam e estão aqui. Somos as que saímos para buscar o pão de cada dia, num subemprego ou faculdade nazi, as vezes nos dois. Somos as que aprendemos aqui, ficamos aqui e vivemos aqui. Se um boy guarda tão forte um conhecimento em seu bolso para perpetuar seu poder (academia, livros, filmes, etc) porque nóis faz o contrário? Uma vez uma amiga disse: sabe mano nóis é muito bonzinho, nóis pega um conhecimento conquistado com muito sangue e quando chega um deles e pergunta “mas como…? ” nóis chega e entrega tudo.
“Ontem, quando eu saía de manhã para ir ao trabalho, vi o sol nascer e isso me fez sorrir. É normal isso filho? Sorrir e tirar uma foto com o celular? ” disse a mãe.
Onde guardamos nosso conhecimento e pra que então? Toda pessoa de quebrada que hoje se encontra numa situação um pouco melhor financeiramente ou que se vê em posição de intelectualidade não pode de repente se distanciar, fugir pra cargo institucional ou viver de falar, virar uma espécie de “elite cultural periférica” e sumir, mesmo que estando aqui. Existe uma responsa a ser mostrada, evoluída e se armar. O que você diz pode ser usado contra você, não é assim que os tiras dizem? Então porque nóis vai dizer na frente deles que nóis queria memo é cada um deles com uma bala na cabeça? Se aquilo ali que dizem tanto numa palestrinha intelectualóide não te diz nada, é porque talvez aquilo ali não diga nada mesmo. Aceitarmos nossos conhecimentos é munir nossa arte do dom mais precioso que ela tem: o de perpetuar a vida. Não a nossa vida, mas as vidas das nossas. De tanto trabalho forçado que elas foram obrigadas e nós somos, de nóis crias dessas trabalhadoras e trabalhadores que nos deram algo de comer, ou daquele de comer que nóis memo fomos atrás. Essas vidas importam, nossa arte importa, nosso conhecimento é arma.
“Se você não enfrentar o Demônio, ele vai viver na sua cola. Deus também. Os dois são iguais meu filho, querem você o tempo todo, e isso cansa a nossa beleza né” disse a mãe.
Arrumou um trampo de babá, chegou na cidade de São Paulo sem ter o que comer e com uma promessa daquele que se dizia seu padrinho, que acabara de ter tido uma criança e precisava de alguém para cuidar, alguém que “fosse da família”. Pensou quando viu os prédios: que gigante. Lembrou de sua mãe, “pega no laço”, e disse para si mesmo que não precisaria de homem nenhum, só de trabalho, que é melhor que homem. Trabalhou muito. Um dia descendo o morro do S viu o sol nascer e tirou uma foto com seu celular. “O sol nasceu de novo”. Percebeu que uma vida comum não é a vida padrão que todos lhe apresentavam em fichas preenchidas. É ano de eleição de novo, choveu o dia inteiro, ontem o metrô deu problema e todos tiveram que descer a pé pelo trilho. Enquanto seguia caminhando pelos trilhos do trem, se equilibrou em um deles e se viu numa disputa mental consigo mesma: “por quanto tempo eu consigo equilibrar? ”. Seguiu andando em perfeito equilíbrio, olhando para dentro de si e para a frente. De que adiantaria falar sobre o custo de produção da força de trabalho e dizer que um estudante que passa a juventude despreocupado e alegre na universidade, tem o direito de ganhar salários dez vezes maiores do que os que são pagos ao filho de um pedreiro que desde os onze anos de idade definha embaixo de chuva e sol numa laje?