Territórios Populares

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Guilherme Rocha Formicki

Os territórios populares são áreas simbólicas muitas vezes sobrepostas às favelas e periferias, que congregam tipologias de baixa renda em localizações urbanas preteridas pelo mercado imobiliário. Sua população herdou nós de difícil afrouxamento e desate, ligados ao acesso à terra, à provisão de infraestrutura e ao regramento urbano – em última análise, à lei e à legalidade.

O nó da terra e outros nós[editar | editar código-fonte]

Os nós em questão são entraves ou obstáculos à consecução de processos como os descritos – dos quais, o mais famoso é o nó relativo ao acesso à terra, ou simplesmente, o nó da terra[1]. Os nós estão suscetíveis a tensionamentos e afrouxamentos, uma vez que, tal como em um cabo de guerra, há sujeitos nas duas pontas puxando e tracionando a corda ou diminuindo a tensão sobre ela. Em outras palavras, conflitos e disputas, bem como alinhamentos e alianças entre atores sociais nos territórios podem reforçar ou folgar os nós. Tome-se como exemplo as ocupações sobre o solo urbanizado. Impossibilitadas de pagar por lotes providos de abastecimento de água, esgoto e coleta de lixo ou sem condições de arcar com a compra ou com o aluguel de moradias erguidas em áreas próximas a empregos e a equipamentos de saúde, educação e lazer, famílias inteiras ocuparam lotes periféricos, em áreas de risco ou proteção ambiental e em terrenos de propriedade alheia em áreas centrais. Se a população de baixa renda estica a corda de um dos lados, o poder público e proprietários a tensionam de outro, configurando um conflito histórico. Em dados momentos, entretanto, prefeitos, vereadores e outros agentes públicos regularizam as ocupações, distensionando, assim, os nós da terra e da legalidade.

Histórico de formação dos territórios populares[editar | editar código-fonte]

Os territórios populares foram estabelecidos a partir do agenciamento popular. Especialmente entre o início dos anos 1900 e a década de 1980, destacou-se o protagonismo de trabalhadores assalariados de baixa renda, muitos dos quais saíram do campo e buscaram garantir níveis mínimos de reprodução social a partir da autoconstrução e da autogestão habitacional. A parca provisão de políticas públicas, cujo acesso foi reivindicado por movimentos sociais, também constituiu essa realidade. A efetividade das leis foi enfraquecida quando conveniente ao Estado, de modo que as ocupações irregulares e clandestinas prosperaram como alternativa velada à provisão estatal de moradias[2]. Em contraste, os territórios de alta renda viram uma maior penetração de políticas habitacionais como os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP), a Fundação Casa Popular (FCP) e o Banco Nacional de Habitação (BNH), ainda que limitados.

Os IAP, esquemas estatais de provisão habitacional dos anos 1930, e a FCP, iniciativa similar de 1946, não deram conta de satisfazer a demanda crescente por moradias no Brasil. O governo federal entregou cerca de 140 mil unidades entre 1937 e 1964[2], número baixo tendo-se em vista as famílias que chegavam às cidades e estabeleciam-se em loteamentos periféricos irregulares ou clandestinos ou que ocupavam terrenos em áreas que viriam a ser chamadas de favelas. Por outro lado, o Estado se concretizou na parte de maior renda da cidade via implementação de infraestruturas urbanas, eliminando e afrouxando os nós, que seguiram apertados nas favelas e periferias.

Os “novos" territórios populares[editar | editar código-fonte]

Atualmente, os territórios populares seguem sendo determinados por trabalhadores responsáveis por garantirem a si próprios níveis mínimos de reprodução social. Entretanto, a componente popular mudou. A economia dessas “zonas de indeterminação” e de "inclusão precária”[3] agora é regida pela transitoriedade constante entre as práticas do mundo do trabalho de décadas atrás e o trabalho autônomo, precarizado, e informal. A indeterminação também se coloca entre a inclusão pelas políticas públicas – que têm maior penetração e que são alavancadas pelo mercado e pelo terceiro setor – e pela inclusão via consumo. A lei ainda é aplicada de modo seletivo – a decisão sobre o ilegal e o irregular fica a cargo dos interesses de atores específicos e seu status se aplica a depender da conjuntura política. Os movimentos sociais se institucionalizaram e se enfraqueceram ou ganharam nova essência, menos pautada pela economia solidária, menos imbuída de consciência de classe e mais vinculada às organizações do que se convencionou chamar de sociedade civil[4].

  1. MARICATO, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
  2. 2,0 2,1 BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
  3. ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Editora Boitempo, 2015.
  4. FORMICKI, Guilherme; ZUQUIM, Maria de Lourdes. Territórios populares ou territórios do mercado? Empreendedorismo social e intervenções nas periferias de São Paulo. Anais do VIII ENANPARQ: Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Anais... Rio de Janeiro, UFRJ, 2024 [no prelo].