Chacina policial, institucionalização do caso e a dinâmica dos fatos segundos as evidências (2022) - Relatório 1 (Etapa 1)
Este verbete reproduz trechos do primeiro relatório da primeira etapa de produções sobre a Chacina de Paraisópolis. Este material é fruto do trabalho conjunto realizado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) e o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NECDH) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que se debruçam sobre esse caso desde 2019, ano da chacina.
Autoria: Desirée de Lemos Azevedo e Carla Osmo
Sobre
A Chacina de Paraisópolis aconteceu na madrugada de 1º de dezembro de 2019. Naquela noite, nove pessoas morreram pisoteadas e asfixiadas pelo rompante da ação truculenta dos policiais do 16º BPM de São Paulo, agindo sob a lógica de duas operações: a Saturação, focada na recriminação ao comércio de drogas e com deflagração logo após o assassinato de uma gente policial no território de Paraisópolis — constituindo o que alguns especialistas chamam de operação de vingança —, e a Pancadão, que visava obstruir os bailes de favela de São Paulo. As vítimas se chamavam: Bruno Gabriel dos Santos, 22 anos; Denys Henrique Quirino Silva, 16 anos; Dennys Guilherme dos Santos França, 16 anos; Eduardo da Silva, 21 anos; Gabriel Rogério de Moraes, 20 anos; Gustavo Cruz Xavier, 14 anos; Luara Victória Oliveira, 18 anos; Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16 anos; Mateus dos Santos Costa, 23 anos. Até agora, nenhum dos policiais foi sequer interrogado pela justiça.O relatório ao qual este verbete se refere foi produzido a partir de uma investigação defensiva feita pelas instituições supracitadas e tem como objetivo a reconstituição crítica dos fatos e das ferramentas do estado na produção de verdades jurídicas que constroem a impunidade dos agentes responsáveis pelas mortes.
Os fatos
"Na madrugada do dia 1° de dezembro de 2019, policiais militares lotados no 160 Batalhão da Polícia Militar (16° BPM/M) realizaram uma ação junto à festa de rua conhecida como Baile da DZ7, em Paraisópolis.
"Na ocasião, a comunidade estava sob vigência de dois operativos da PMESP: uma Operação Saturação e uma Operação Pancadão.3 A primeira havia intensificado o policiamento ostensivo no território, deslocando policiais militares de outros batalhões para a região com o objetivo de causar prejuízos ao crime e ao comércio varejista de substâncias ilícitas. Ela foi deflagrada como resposta ao assassinato de um policial no território. A segunda operação era realizada pelo efetivo do 16° BPM/M, visando inibir a formação do baile.
"Os fatos objetos do presente relatório tiveram início após a comunicação, via rede rádio da polícia, de uma ocorrência nas proximidades do baile. O chamado de reforço, transmitido na sequência pelo Comando de Operações da Polícia Militar (COPOM), foi atendido por agentes que integravam o patrulhamento rotineiro da área e por agentes que participavam da Operação Pancadão. Até o presente momento, é conhecida a participação de 31 policiais militares na ação em questão. Eles chegaram ao local dos fatos distribuídos em 16 veículos: 6 motocicletas da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (ROCAM), 5 viaturas de radiopatrulhamento da 1a Cia, 3 rádio patrulhas da 2a Cia e 2 viaturas da Força Tática do referido batalhão. Durante a ação, foram acionadas táticas de intervenção direta para controle de multidões.
"Após estes fatos, as viaturas conduziram 9 pessoas a equipamentos de saúde da região. Uma foi levada à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Campo Limpo e as demais deram entrada no Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha – Campo Limpo. Todas as nove chegaram mortas ao atendimento. A causa mortis foi posteriormente determinada como asfixia mecânica por sufocação indireta" p.9
Registro do caso, investigação policial e denúncia
"A investigação oficial transcorreu por 1 ano e 7 meses, resultando em um inquérito com quase 4 mil páginas e o indiciamento por homicídio culposo, em maio de 2021, de 9 dos 31 policiais envolvidos. Com um entendimento divergente, o Ministério Público (MP) ofereceu denúncia ao I Tribunal do Júri da Capital, no mês de julho, contra 12 policiais por 9 homicídios dolosos triplamente qualificados (motivo torpe, meio cruel e emprego de emboscada) e por lesão corporal grave.5 O MP ainda denunciou um décimo terceiro policial por explosão.6 A mais grave das acusações é, portanto, a de homicídios múltiplos. Na linguagem mais corrente do debate público, uma chacina.
"Alguns dias após a denúncia, houve o recebimento da mesma, a qual deve passar por análise de admissibilidade pelo juiz de direito antes de seguir (ou não) para a fase de julgamento pelo júri popular.
"Duas divergências se apresentaram entre as conclusões do DHPP e do MP. Em primeiro lugar, quanto ao número de condutas que seria possível individualizar para proceder a responsabilização penal. Em segundo lugar, quanto ao caráter doloso (intencional) ou culposo (não intencional) dos homicídios. Ao oferecer denúncia, o MP apresentou a tese jurídica do dolo eventual, que se refere a casos em que o autor, mesmo sem a intenção específica de causar a morte, é capaz de prevê-la como desfecho de sua conduta e assume ou é indiferente ao risco de causá-la. Nesse caso, distinguir entre dolo e culpa tem consequências específicas em termos de competência, já que os crimes culposos contra a vida de civis cometidos por militares estão fora da alçada não apenas do tribunal do júri – cuja competência é exclusiva para crimes dolosos contra a vida – mas da própria competência da justiça estadual civil, devendo ser julgados pela justiça militar." p. 11
(...)
"Algo que se tornou ainda mais evidente à medida que os policiais militares foram convocados a depor em novas oportunidades, que incluíram os 31 agentes envolvidos na ação. Eles prestaram declarações, em duas ocasiões, para órgãos de controle interno da Polícia Militar: o Plantão de Polícia Judiciária Militar e Disciplina e a Corregedoria da Polícia Militar. E, em uma terceira ocasião, para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Ao todo, estes depoimentos somam mais de mil páginas, correspondendo a 30,1 % da documentação coligida pelo Inquérito Policial, enquanto as provas periciais equivalem a 10,6 % da mesma documentação." p. 24
Relatório