Funk Ostentação

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Ostentação

  Um subgênero polêmico e pavio para diversos debates acalorados é o “Funk Ostentação”. 
 Tendo seu início por volta do final dos anos 2000, esse gênero dentro do Funk se caracteriza pela construção do discurso direcionado a exaltação do consumo e a prospecção, por parte das classes mais populares, de novas aspirações sociais. 
 Em 2008, impulsionado pelo crescimento econômico no país, o Funk Ostentação ganhou força e começou a adquirir uma relevância nacional. Segundo Medeiros e Teles (2013), esse fenômeno pode ser interpretado como um reflexo das mudanças socioeconômicas do país, onde jovens periféricos passaram a enxergar novas possibilidades de mobilidade social, muitas vezes simbolizadas por roupas de grife, carros importados e joias.
     Para analisarmos esse fenômeno, a ostentação precisa ser enxergada a partir da perspectiva de quem a canta. Esse subgênero traz consigo uma forte simbologia de resistência e afirmação social. As letras e videoclipes carregam um conteúdo que reforça a posição de empoderamento do jovem de periferia, o qual foi marginalizado, invisibilizado e negado de acessar determinados bens de consumo. A partir desse momento o funk ganha um papel importante, agora sendo visto como uma ferramenta de ascensão social e sucesso individual dentro da favela, dividindo com o futebol o posto de “sonho de garoto” de boa parte dos jovens de periferia, se tornando uma alternativa para uma ínfima possibilidade de melhoria de vida. 
  O funk ostentação carrega em sua essência um caráter provocativo, onde expõe uma narrativa de que as pessoas pobres estão socialmente condenadas à pobreza. Quando um jovem negro exibe riqueza no funk ostentação, isso pode ser visto como um ato de resistência. Historicamente, o consumo de luxo foi um privilégio restrito às elites brancas. O funk subverte é lógico ao mostrar que os negros também podem e devem ocupar espaços do poder econômico.

Na História…

  Na obra “Escravidão” de Laurentino Gomes, o autor levanta ao debate a questão dos Reis de África, que circularam no Brasil ainda no período colonial. Ao pensarmos nessa realidade, nos questionamos em como seria essa distinção  dos nobres vindos do continente africano e dos negros escravizados no Brasil. É um questionamento que o Laurentino Gomes vai desenvolverem sua obra, onde essa diferenciação do Rei que vinha de África para o negro escravizado ocorria por meio das posses de bens materiais. 
  Aos negros alforriados ou nascidos livres o uso do sapato era um símbolo de ascensão social, assim como de diferenciação para os negros ainda cativos. Em obras de Sidney Chalhoub ou de Lilia Moritz Schwarcz, expõe a condição do uso de vestimentas como a dos sapatos, como um ato simbólico, onde há a afirmação enquanto cidadão, a reivindicação por respeito e dignidade, a mudança de status social e o reconhecimento social. Como destaca as duas autoras, o vestuário funcionava como uma ferramenta de cidadania, desafiando hierarquias raciais que relacionavam a negritude a subalternidade e subserviência. 

No Contemporâneo...

  Pode-se encarar o Funk Ostentação como um “rito de passagem” da marginalização para o sucesso, especialmente para juventude negra. Segundo Gabriel Feltran (2014), esse consumo visível no funk não é apenas um exibicionismo vazio, mas um símbolo de vitória contra um sistema que historicamente exclui a população negra do acesso ao prestígio e à riqueza. Se trazermos para uma análise comparativa, a formas em que os negros escravizados buscavam se diferenciar através do vestuário, os artistas de funk ostentam seus bens como prova de que conseguiram escapar da pobreza e conquistar um lugar no mundo do consumo.
  Outra semelhança que podemos trazer a este comparativo é a forma em que os negros bem vestidos eram perseguidos e, atualmente, jovens periféricos sofrem repressão ao exibir sua ascensão pelo funk. O funk ostentação, ao ousar desafiar a norma de que o sucesso econômico pertence apenas a determinadas camadas sociais, enfrenta desqualificação moral e repressão por parte dos aparatos estatais, seja na forma de perseguição policial aos artistas ou na criminalização do próprio gênero musical que em alguns casos acabam sendo censurados.

Críticas e Controvérsias

  Ao pensarmos funk ostentação, precisamos nos debruçar em sua totalidade, ou seja, também em pontos que possam gerar alguma controvérsia. Muitos argumentam que ele reforça valores materialistas e individualistas, promovendo uma visão distorcida da realidade e negligenciando questões estruturais como desigualdade e exclusão social. Segundo Canclini (2008), a cultura do consumo pode ser vista como um elemento de distinção social, mas também como um reforço das desigualdades, pois apenas uma parcela bem restrita teria acesso real aos bens exaltados.
  Há críticas que tecem apontamentos onde a ostentação no funk poderia acabar reforçando uma ideia de sucesso individual, o qual deve ser priorizado em detrimento do esforço coletivo. Se trouxermos Bauman para o debate, desenvolvemos através da ideia de modernidade líquida de que a identidade é construída pelo consumo, e o funk ostentação se encaixaria nesse paradigma ao centralizar o consumo como meio principal de validação social.

Conclusão

  O funk ostentação é um fenômeno cultural complexo, que não pode ser reduzido a um simples incentivo ao consumismo. Deve-se sempre, ao trazê-lo para um debate ou análise aprofundada, as raízes históricas que cerceiam e influenciam todo aspecto que o compõe, atentando-se também às formas que a contemporaneidade exerce força sobre ela. Sem deixar de lado a perspectiva de quem o canta.
  Esse subgênero incorpora a reflexão sobre transformações sociais, econômicas e culturais do Brasil, além de servir como ferramenta de empoderamento para jovens periféricos. Ao mesmo tempo, devemos manter um olhar crítico em relação aos debates sobre desigualdade e valores sociais transmitidos, atentando-se às formas em que a música popular pode ser tanto um reflexo quanto um agente de mudança dentro da sociedade.


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: Jornais, Escravos e Cidadania no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

FELTRAN, Gabriel. “Funk Ostentação e as novas sociabilidades periféricas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2014.

PEREIRA, Rafael. “O consumo como identidade: uma análise do funk ostentação”. Caderno de Estudos Sociais, 2016.

MEDEIROS, João; TELES, Juliana. “A ascensão do funk ostentação e a nova classe C brasileira”. Revista de Cultura e Sociedade, 2013.

GOMES, Laurentino. Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares (Vol. 1). São Paulo: Globo Livros, 2019.