Cultura de pipa nas periferias fluminenses.

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Uma das coisas da minha área de formação que tem como simplificar e muita gente concordar é a noção de que a gente aprende muito sobre nosso lugar e nossa cultura quando entra em contato com outros lugares e culturas. Com os costumes e construções de identidade regional isso também acontece, mesmo dentro de um mesmo estado, até mesmo um pequenininho feito o Rio de Janeiro. Agora é março de 2025, o carnaval passou, mas ainda fica pipocando na cabeça aquelas escolas de samba do Rio, com as comunidades do lado de lá da ponte, super engajadas. Dá para ver o quanto do seu pertencimento regional está sendo gritado nas ruas e nas avenidas, no tom do samba-enredo. Pensei muito nisso quando visitei a Zona Oeste do Rio. A galera toda doente pelo Bangu e pela Mocidade. Futebol e escola de samba. Voltei para São Gonçalo sentindo um vazio, queria sentir isso também. Comecei a pensar sobre o que na minha infância e adolescência causava esse frisson. Foi quando lembrei dos festivais de pipa que rolavam em São Gonçalo há quase quinze anos. A juventude fluminense ainda solta pipa, claro. Mas não dá para comparar com os festivais de pipa daquela época. São Gonçalo tem uma superpopulação, já passou do um milhão de habitantes faz tempo. Imagina o que era uma vez por ano um imenso festival para celebrar a cultura de pipa na cidade. Uma das datas certas para o festival de pipa era no 7 de setembro, feriado nacional. A garotada levava pouca coisa, a maior parte arrumava lá. Com patrocínio de diversos comércios locais, e um ou outro vereador, os organizadores do evento sorteavam e distribuíam linhas e pipas, sempre conscientizando sobre o uso do cerol e da linha chilena - e eles confiscavam mesmo -. Rolava uma boa até para a galera ambulante, que vendia de tudo nos festivais: água, churrasquinho, mini pizza, algodão doce, camiseta, corneta de copa do mundo, a lista é infinita. Mas o ponto alto mesmo do festival eram as premiações do concurso de melhor pipa. As pipas que competiam tinham cinco, sete metros de comprimento e traziam em geral um tema, um desenho. Quase todo ano tinha Malcolm X e Bob Marley. As pipas estampadas de time também faziam sucesso. Mas não tinha jeito, as centopeias sempre levavam a melhor. Eram pipas gigantescas, que iam para o céu no fim do evento, a tarde. As pipas gigantes levavam meses sendo preparadas e eram erguidas por linhas especiais, grossas, pareciam barbantes porque as pipas eram muito pesadas. Aquilo ali era trabalho que nem o Santos Dumont conseguiria replicar, um verdadeiro espetáculo. O festival de pipa não conhecia idade nem religião, era um ponto certo que a diversão era segura e bem organizada para a juventude gonçalense. Até eu, que nunca aprendi a soltar pipa, ficava ansiosa para juntar minhas amigas e colegas do bairro para ficar dando "rolé" pelos festivais. Os festivais começavam às 10h da manhã e iam até as 17h da tarde. Era um dia inteiro de pipa no alto, música no talo, e comida de rua. O festival de pipa que mais recebia gente de fora - sim, turismo cultural - era o Clube Mauá, no centro da cidade. Mas rolava nos bairros também. Os bairros Jardim Catarina e Laranjal foram famosos organizadores de festivais de pipa mais ou menos até 2013. Infelizmente, são eventos para guardar apenas na memória. Mas que seguem vivos constituindo nossas identidades até hoje.