Itan não é mito

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 21h07min de 19 de março de 2025 por Lunas (discussão | contribs) (O texto apresentado foi retirado da dissertação de mestrado em comunicação de Maiah Lunas onde se discute porque itan e mito são coisas distintas. Itan é uma narrativa presente nas religiões de matriz africana, faz parte do conhecimento sobre os orixás e o que é vivido no dia a dia dessas religões. O mito tem sua origem ocidental e não dá conta do vivido pelos povos de terreiro.)
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O termo itan é uma palavra em iorubá e é comumente traduzido como mito, entretanto, nesse terreiro-trabalho não compreenderemos itan como sinônimo de mito ou mitologia. Acredita-se que os itans são as histórias dos orixás, narrativas desenvolvidas para contar quem são os orixás e aqueles que os cercam. Como mostrado por Marta Ferreira (2015, p.14), “o itán estabelece as características pessoais dos orixás e os caminhos percorridos por eles através de enredos que envolvem o sagrado e o humano”.

Póvoas (2004) defende que itan significa história ou um conto. Segundo o autor: Itan são histórias do sistema nagô de consultas às divindades. Na África, os itan compunham, e ainda compõem, o oráculo denominado de Ifá, que pode ser lido e interpretado através de um conjunto de dezesseis sinais, os odu. Esses sinais podem se combinar entre si, resultando em 256 outros sinais, que também se combinam entre si, perfazendo um total de mais de quatro mil sinais. Esses sinais são explicados através de várias histórias que compõem cada um deles. O sacerdote, o babalaô, sabe essas histórias de cor, pois o sistema era baseado apenas na comunicação oral. (Póvoas, 2004, p. 25)

Assim, os itans são as narrativas existentes nos terreiros de candomblé e que são também produzidas e reproduzidas naquele espaço. Embora o conhecimento dos itans como dito por Póvoas (2004) tenha sido mais presente inicialmente entre os babalaôs62, o dia a dia do terreiro e a necessidade da compreensão dos rituais fez com que essas narrativas ultrapassassem os ritos do ifá e passassem a fazer parte do candomblé e das demais religiões de matriz africana e afro-brasileiras.

Diversos autores como Armando Vallado (2010), Reginaldo Prandi (2001), Vagner Silva (2022), Renato Nogueira (2017), Juana Elbein (2012), Pierre Verger (1981) (1985) e Agenor Miranda (Rocha, 1999) apresentam itan como similar a mito. O professor Renato Nogueira (2017), por exemplo, junta o que ele chama de mitos gregos, iorubás, judaico-cristãos e guaranis para falar sobre a formação da mulher e do feminino na atualidade. Já o professor e Oluô Agenor Miranda (1999), também conhecido dentro das casas de santo como Santinho ou Pai Agenor, apresenta 72 histórias dos orixás em seu livro Caminhos de Odu, também chamando-as de mito. E a obra mais conhecida por praticantes da religião ou leigos é o livro de Reginaldo Prandi, Mitologia dos Orixás, que conta com mais de cem histórias e como mostrado no título do livro, o autor encara essas narrativas como mitos e apresenta uma variedade extensa de histórias dos orixás. Chamo a atenção para a longa produção literária onde mito e itan são colocados como a mesma coisa, o que no compreender desta pesquisadora é uma simplificação do significado de itan.

Proponho adentrar a sabedoria dos terreiros, compreender como as narrativas dos orixás são importantes dentro daquele espaço e porque a necessidade da manutenção desse conhecimento. Romper com o olhar colonial é buscar reassentar essas sabedorias, descortinando como os paradigmas do ocidente europeu tendem a não admitir outras visões filosóficas, ontológicas e/ou epistemológicas elaboradas fora do local que o ocidente enquanto ideologia está ou julga estar presente (Rufino & Simas, 2018). Além de chamar atenção para como a colonialidade enquanto fazer epistemológico tem uma lógica de evolução64 que hierarquiza conhecimentos, buscando eliminar ou enquadrar aqueles que não lhes convém. Considera-se que assim como o sincretismo religioso - que em dado momento da história foi necessário para a manutenção dos saberes e da religiosidade - chamar itan de mito também foi uma forma de conseguir tornar palpável o conhecimento dos terreiros. Porém, faz-se necessário romper com esse olhar e compreender que mito é algo proposto pela visão de mundo ocidental-colonial-cristão e não basta para pensar as vivências de terreiro. O intuito não é de diminuir o mito ou a mitologia grega, no entanto sinalizamos que este é um letramento possível para o mundo europeu e não se faz suficiente para o candomblé. Como apresentado por Simas e Rufino (2018, p. 21), “reduzir a complexidade das cosmovisões negro-africanas e indígenas aos limites do pensamento ocidental e dos regimes de verdade é o mesmo que enclausurar o diabo na garrafa”.

Brigitte Vasallo (2022), para discutir sobre o sistema em que vivemos, utiliza uma citação de Audre Lorde65(1979), que diz que “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande. Elas podem possibilitar que os vençamos em seu próprio jogo durante certo tempo, mas nunca permitirão que provoquemos uma mudança autêntica” (Lorde, 1979; apud Vassalo, 2022, p.80). A autora se refere a questão afetiva, porém trago esse debate para discutir outras possibilidades. Segundo Vasallo: Quando falamos sobre sistema e estruturas, não há um espaço zero a alcançar, um espaço/tempo no qual nos existirá mais sistema, no qual a casa do mestre estará em ruínas e poderemos nos sentar um momento para observá-la de fora antes de iniciar a construção de algo novo. A desconstrução e a construção fazem parte do mesmo movimento: ao desmontar, já estamos construindo a nova forma. É a isso que Lorde se refere: as ferramentas do mestre não nos permitirão fazer essa desmontagem/montagem de forma diferente. (Vassalo,2022,p.81)

Isso posto, ao falar sobre o telhado da casa, o alicerce e a necessidade de construir um novo lugar para desmantelar essa casa é apresentado aqui como proposição a possibilidade de pensar o itan como uma casa já existente. As narrativas do candomblé já são esse novo lugar, já foram construídas e alicerçadas pela ancestralidade e pelas pessoas que praticam a religião e vivem o dia a dia do terreiro, esse novo lugar talvez não precise ser construído, mas sim reformado no sentido de pintar a casa com suas cores e não com as cores do colonizador.


Erro de citação: Marca <ref> inválida; refs sem nome devem possuir conteúdo FERREIRA, M. Itán - oralidades e escritas: um estudo de caso sobre cadernos de hunkó e outras escritas no Ilè Asé Omi Larè Iyá Sagbá. Rio de Janeiro: Dissertação - Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Faculdade de Educação. 2015. NOGUEIRA, R. Mulheres e Deusas: como as divindades e os mitos femininos formaram a mulher atual. Rio de Janeiro: Harper Collins.2017. PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras. 2001. PÓVOAS, R. d. Itan dos mais velhos: contos. Ilhéus, Bahia: Editus.2 ed, 2004. ROCHA, A. M. Caminhos de Odu. Rio de Janeiro: Pallas. 1999. SANTOS, J. E. Os Nàgô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes. 2012. SILVA, V. G. Exu: Um Deus Afro-atlântico no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2022. VALLADO, A. Lei do Santo: poder e conflito no candomblé . Rio de Janeiro: Pallas. 2010. VERGER, P. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Currupio. 1981. VERGER, P. Lendas africanas dos orixás. (I. d. Carybé, Ed.) Salvador: Currupio. 1985.


O texto acima foi retirado da dissertação de mestrado ŞIRÉ TI ÀKÓKÓ: Memórias e narrativas de uma Iyalorixá

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