22 anos da Lei 10.639/03
Lei 10.639/03: Educação antirracista ainda encontra desafios para enegrecer currículo escolar'
Para a historiadora Marilda Flores, que coordena o Projeto de Pesquisa Áfricas: sociedade, política e cultura, da UERJ, e participa do Projeto Sikiliza África, na UFRJ, o Brasil é um país que, na teoria, garante a igualdade e equidade de direitos para todos, independentemente da cor ou origem étnica. Mas não é assim que funciona na prática. A professora relembra que ainda muito jovem era excluída de processos seletivos por ser negra e que diversas vezes voltou para casa sem entender por que não era escolhida, o que a levou a ter uma educação tardia.
"A população preta do Brasil durante muito tempo foi proibida de dizer que existia racismo no Brasil, mas eu não podia fazer algumas inscrições quando eu era jovem porque as pessoas olhavam para mim e falavam assim: Você não tem o perfil para o cargo. Então, quantas vezes eu não consegui nem preencher uma ficha de inscrição. A minha atitude era voltar para casa chorando, muitas vezes sem entender por que não poderia, por que eu não pude”.
Entre as dificuldades na aplicação do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, também há o tratamento transversal desse tema que é dado ao currículo produzido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). De caráter normativo, o documento define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE).
Um estudo divulgado pelo coletivo de Intelectuais Negros e Negras (CDINN) em parceria com o Instituto Unibanco, cujo tema é Diversidade Étnico-Racial, Cultura e Cidadania – Diálogos com as Ciências da Natureza mostra, no entanto, que a BNCC é pouco assertiva no que diz respeito à educação para as relações étnico-raciais. Analisando o documento, que pauta o trabalho de todas as escolas brasileiras de Ensino Básico, a pesquisa revelou que havia poucas diretrizes para a educação antirracista no país. Em suas seiscentas páginas, a palavra “raça” foi mencionada somente duas vezes, “étnico-racial” também duas vezes e “racismo”, apenas quatro vezes.
A pesquisadora e professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ynaê Lopes, autora do livro “Racismo Brasileiro”, pensado para auxiliar na implementação do ensino da história africana e afro-brasileira em sala de aula, explica que a falta de fiscalização, as dificuldades institucionais e a intolerância religiosa dentro de escolas são os maiores impasses para efetivação da lei. Ynaê destaca ainda que a não legitimação, dentro da academia, dos objetos de pesquisa ligados à cultura africana e afro-brasileira dificulta a produção e o acesso a uma literatura diversa sobre o tema.
A historiadora Ynaê considera que a carência deliberada do ensino das relações étnico-raciais é de caráter estrutural e sistêmico, assim como a desigualdade racial no Brasil é inegável e persiste devido à fragilidade de políticas públicas para o seu enfrentamento.
O último estudo feito em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), demonstrou que enquanto pretos e pardos representam 56% da nossa população, a proporção deste grupo entre todos os brasileiros abaixo da linha de pobreza é de 71%. Já a fração de brancos entre os mais pobres é de 27%. Quando olhamos os números de extrema pobreza, a discrepância quase triplica: 73% são negros e 25% brancos. No que diz respeito à educação, embora negros (pretos e pardos) sejam a maioria dos estudantes nas escolas públicas do país, os indicadores mostram a necessidade urgente de interveção do estado para melhorar o desempenho desse grupo populacional.
Segundo artigo 19, inciso I da Constituição Federal Brasileira: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Esse trecho da Constituição determina, dessa forma, que o Estado brasileiro deve ser “Laico” e não pode se manifestar religiosamente. É importante destacar o artigo 5º, inciso VI, que diz: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” O “Laicismo” é uma prática que ganhou força com a “Revolução Francesa”(1789-1799), que determinou a separação moderna entre o Estado e a igreja.
Lei 10.639/03: A construção de políticas afirmativas ao longo dos últimos 20 anos
A consolidação da Lei 10.639 foi fruto da luta dos movimentos negros aos longo de décadas e representa o reconhecimento de reinvidações históricas (ver linha do tempo). Ao mesmo tempo, a promulgação da lei abriu caminho para que outras normativas fossem implementadas, regulamentando o direito e o acesso da população negra e indígena à educação e ao mundo do trabalho, através de políticas afirmativas. É o caso da Lei 11.654/08, que instaura a obrigatoriedade do ensino da cultura e história índigena na educação, e embora não seja objeto desta reportagem, é um marco na conquista de direitos.
Além disso, a Lei 12.288/10, que instaura o Estatuto da Igualdade Racial, e a Lei 12.990/14, que institui a reserva de vagas em concursos públicos da administração federal para candidatos negros fazem parte da construção do arcabouço legal de políticas de enfrentamento ao racismo no Brasil.
20 anos da Lei 10.639/03: Medida encontra desafios para ser efetiva No dia 3 de julho de 2023, ocorreu a audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado para avaliar os 20 anos de vigência da Lei 10.639/2003. Durante a reunião, foram exaltados os esforços do movimento negro na efetivação de uma política educacional que considerasse a participação dos povos negros na formação histórica e cultural de nosso país, sendo uma estratégia de mudança social para acesso a direitos para o povo preto.
No entanto, a lei ainda hoje é descumprida por estabelecimentos de ensino em todo o país, sete em cada dez secretarias municipais de educação não realizam nenhuma ou poucas ações para implementação do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.
O dado é revelado pela pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira", lançada pelo Instituto Alana e por Geledés, no dia 18 de abril deste ano. O estudo foi realizado com 1.187 Secretarias Municipais de Educação, equivalente a 21% das redes municipais de ensino do país. A maioria delas (71%) realiza pouca ou nenhuma ação para a eficácia da lei.
Responsabilidade Social Lara Santos, que é assessora de educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, e atua no ensino da Literatura Afro-brasileira e na Formação de professoras e explica que a maior dificuldade dos professores é encontrar apoio para seguir com o ensino das relações étnico- raciais. E lembra que as atividades pedagógicas precisam ser algo contínuo dentro do projeto político pedagógico da escola. Segundo a especialista, que é mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e foi professora de Língua Portuguesa e Coordenadora Pedagógica da Rede Municipal de São Paulo, o combate precisa estar presente no centro do currículo.
“Eu acho que um dos grandes desafios dos professores que atuam nessa área é ser muito solitário. Porque a gente sabe que a gestão não tá preparada nem para acolher, nem para incentivar esse trabalho, então a gente pensa numa gestão de modo geral, Na realidade que o Brasil está os professores ficam muito sozinhos. Uma das questões que eu vi durante as entrevistas, é que às vezes é um ou outro professor que quer implementar isso na escola. A gente percebe que não tem que ser uma coisa pontual de um professor ou outro, tem que ser toda uma gestão que esteja preparada que queira acolher esse ensino... é uma ação de compromisso das escolas, tem que ser, eu acho que não existe educação de qualidade sem ser anti-racista”.
Responsabilidade Social
Lara Santos, que é assessora de educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, e atua no ensino da Literatura Afro-brasileira e na Formação de professoras e explica que a maior dificuldade dos professores é encontrar apoio para seguir com o ensino das relações étnico- raciais. E lembra que as atividades pedagógicas precisam ser algo contínuo dentro do projeto político pedagógico da escola. Segundo a especialista, que é mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e foi professora de Língua Portuguesa e Coordenadora Pedagógica da Rede Municipal de São Paulo, o combate precisa estar presente no centro do currículo.
“Eu acho que um dos grandes desafios dos professores que atuam nessa área é ser muito solitário. Porque a gente sabe que a gestão não tá preparada nem para acolher, nem para incentivar esse trabalho, então a gente pensa numa gestão de modo geral, Na realidade que o Brasil está os professores ficam muito sozinhos. Uma das questões que eu vi durante as entrevistas, é que às vezes é um ou outro professor que quer implementar isso na escola. A gente percebe que não tem que ser uma coisa pontual de um professor ou outro, tem que ser toda uma gestão que esteja preparada que queira acolher esse ensino... é uma ação de compromisso das escolas, tem que ser, eu acho que não existe educação de qualidade sem ser anti-racista”.
Lara Santos, assessora de educação do CEERT. Foto: Reprodução
O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades é uma organização não-governamental brasileira, fundada em 1992, também faz parte da luta em prol da equidade racial, há mais de 30 anos atua no combate ao racismo e na promoção da equidade racial, e sua principal atuação é na educação.
Desde os anos 90, a partir de uma reunião de militantes do movimento negro e de intelectuais os fundadores do CEERT se reúnem para pensar estratégias de como articular esse conhecimento acadêmico à militância e a incidência principalmente no mercado de trabalho.