Comunidade Cidade: a esperança vem acompanhada de remoções
Lançamento e recepção do Programa[editar | editar código-fonte]
Em janeiro de 2020, o governo do Estado, na figura do Governador Wilson Witzel (PSC), lançou um programa de urbanização denominado “Comunidade Cidade”. O Programa tinha base no projeto da “Villa 31[1]” na Argentina, implantado pelo empresário e então presidente argentino, Mauricio Macri (aliado do Presidente brasileiro Jair Bolsonaro, sem partido). A coordenação do programa esclareceu que o Comunidade Cidade representa uma evolução do PAC-2, que abandonou algumas intervenções anteriores para priorizar o saneamento básico. O projeto tinha como áreas prioritárias as favelas da Rocinha, Maré no Rio de Janeiro e Salgueiro (São Gonçalo). A implantação teve início pela favela da Rocinha e o projeto era dividido em cinco eixos: saneamento, mobilidade, habitação, resíduos sólidos e equipamentos urbanos. O anúncio do novo programa gerou uma grande apreensão entre os moradores e interessados no tema, apesar do desejo de melhorias urbanas nas favelas. Em audiência pública sobre a CPI das Enchentes (setembro de 2019), a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública (NUTH), Maria Júlia Miranda, representando o Núcleo, afirmou: “Nós somos absolutamente contra qualquer tipo de remoção que não seja extremamente necessária. (...) Nós somos surpreendidos com um megaprojeto do estado do Rio de Janeiro, que, na realidade, pelo o que a gente entendeu vai mexer com a Rocinha inteira, estimando a possibilidade de remoção de 7.000 famílias, ou seja 28.000 pessoas. Pode estar havendo uma sobreposição de atribuições, a gente não consegue entender se o estado do rio de janeiro procurou o Município do Rio de Janeiro, é imprescindível que esse tipo de informação seja dada, é imprescindível, inclusive que se isso não tenha acontecido, que o Município vá até o Estado do Rio de Janeiro e pergunte o que está acontecendo, e que leve, inclusive, essas informações para essa comunidade, que vai ser muito impactada, não é pouco, é muito impactada” (MIRANDA, 13 de setembro de 2019) Na área do Valão, ainda em setembro de 2019, ocorreu um encontro para o governo apresentar o Comunidade Cidade para os moradores. Esse parece ter sido o primeiro contato que a comunidade teve com o projeto, pelo menos em grande escala. Segundo os próprios moradores, os projetos não foram idealizados nem desenvolvidos com a participação deles. No ano seguinte (janeiro de 2020), o Programa foi oficialmente lançado pelo no CIEP 303 Ayrton Senna da Silva, em São Conrado, pelo Governador Witzel. O evento reuniu cerca de 250 pessoas. Uma moradora revelou que a entrada para o evento era controlada, tendo que realizar uma inscrição prévia na Associação de Moradores e uso de pulseira de identificação, sendo este o único modo de participar da reunião. O lançamento foi marcado por forte aparato policial. Moradores contam que ficaram sabendo de última hora e por isso não puderam entrar quando chegaram na porta porque não tinha feito a inscrição prévia.
Financiamento e cronogramas[editar | editar código-fonte]
O Comunidade Cidade prometia investimentos de 2 bilhões de reais para as obras de urbanização projetadas. R$1 bilhão[2] viria da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), voltado para realização das obras de saneamento básico. O restante, cerca de R$1 bilhão, viria do Tesouro Estadual, usado para obras de infraestrutura. Segundo os cronogramas apresentados, a identificação da demanda necessária para realocação ainda não tinha sido iniciada em setembro (quando os projetos básicos já estavam finalizados) e reuniões na comunidade e audiências públicas que estavam planejadas, não aconteceram. Além disso, o projeto previa que as reuniões com moradores começassem apenas 4 meses antes do término do desenvolvimento dos projetos.
Dados defasados[editar | editar código-fonte]
Existia uma falta e defasagem de dados populacionais e socioespaciais no Programa. Dados populacionais, de ocupação, índices de desenvolvimento, saneamento e saúde não correspondem com a realidade da favela no momento de lançamento do Programa (2020), mais de dez anos depois. Não foi realizado um censo populacional (tópico amplamente debatido entre os moradores e o poder público) e nem um levantamento socioespacial completo. Essas faltas impede a atuação com dados reais e impacta todo o projeto, como por exemplo, o cálculo de vazão de água e esgoto e o número real de pessoas afetadas pelas remoções.
O projeto[editar | editar código-fonte]
No eixo de saneamento básico, as propostas eram de implantação de redes hidrossanitárias, construção e obra de recuperação de reservatórios, liberação das margens de talvegues e construção de um parque chamado “Caminho das Águas”. Não estavam planejadas obras para as áreas da Vila Verde, Cachopa e parte da Dionéia, Portão Vermelho e parte da Vila União, partes das Ruas 2, 3 e 4, Roupa Suja, Macega, Terreirão, Capado, Faz Depressa. As intervenções são absolutamente necessárias, porém, a forma como foi projetada gera mais remoções do que necessário, principalmente através do “Caminho das Águas”, que cortaria toda a Rocinha. As intervenções no eixo de mobilidade são a abertura de vias e becos, construção de planos inclinados e o “Boulevard Via Ápia”. Novamente, são intervenções importantes mas que não levam em conta que ao remover as unidades para fazê-las, não apresenta alternativas habitacionais para a maioria das famílias retiradas. O Boulevard Via Ápia, com a transformação da via para somente de pedestres, foi questionada pelo comércio local. No eixo de habitação, propõe a construção de cerca de 18 conjuntos habitacionais, sendo essa a única iniciativa para promover moradia. O gabarito pretendido era de até 11 pavimentos (com modificação da lei de uso e ocupação do solo) e o perfil dos prédios, não corresponde com a realidade da Rocinha e pode acarretar malefícios tanto incentivando a verticalização da favela como pela gentrificação. No eixo de resíduos sólidos, instalação de novas centrais de recebimento de lixo, ou seja, caixas compactadoras e caixas estacionárias e instalação de containers plásticos com dispositivos de segurança e a construção de um pólo de reciclagem em São Conrado que atenderia a também a comunidade. O eixo de equipamentos consiste em reformas e construções de edifícios educacionais, de saúde, institucionais e comerciais. Moradores questionaram a falta de uma nova unidade de saúde na favela, que não foi contemplado no Programa. O Comercial Boiadeiro, proposto pelo programa, removerá os comerciantes informais que lá estão há décadas na rua e parece não ter capacidade de abrigar em sua totalidade os removidos. Existiam iniciativas interessantes, porém faz-se perceber que existiu a falta de diálogo com a população para identificar as reais demandas de equipamentos. Uma série de ações multidisciplinares articuladas com diversas secretarias do Estado são propostas. Haviam ações interessantes para aproximar burocracias diárias ao morador, outras têm conteúdo delicado, como por exemplo, a criação de projetos de “place branding” (prática amplamente utilizada por empresas e por administrações públicas no contexto neoliberal globalizado) e de provisão de microcrédito pela AgeRio com altas taxas de juros.
Participação não entendida como elemento de projeto[editar | editar código-fonte]
"Passei perto da Rocinha, nunca subi. Mas a gente não precisa subir para saber que lá realmente é ruim"[3] Essa afirmação do Governador Wilson Witzel revela uma prática muito naturalizada no poder público e seus planejadores urbanos: a de que eles têm todo o conhecimento necessário - e poder - para intervir em áreas populares sem participação real da população. Parece que o Programa procurou moradores para apresentar o projeto e até possivelmente debate-lo, mas o fez tardiamente, com o projeto já pronto. Isso não configura uma verdadeira participação e sim uma busca por consenso e aceitação. Um morador afirmou que participou de uma reunião realizada pelo poder público e conta que foi possível conversar sobre alguns tópicos, mas nunca sobre as remoções. Esse programa mostra que correspondeu parcialmente às demandas da comunidade, porém a falta de diálogo e espaço para os moradores participarem do seu desenvolvimento, impede que o projeto caminhe em sentido de aperfeiçoamento. A população local é apta para planejar o espaço onde vive, e essa parece não ser a visão de projetos como esse.
Remoções não resolvidas[editar | editar código-fonte]
As remoções permeiam todos os eixos de intervenção do projeto. Seriam removidos os sub bairros[4] Roupa Suja, Macega, Terreirão, Capado, Faz Depressa, partes da Vila Verde, da Dionéia e do Laboriaux. Os projetos não preveem a realocação de todas as pessoas que removeria. Na intenção de dar conta das remoções, os 18 conjuntos habitacionais propostos somam 2.400 unidades, mas a previsão do Programa é a remoção de 7.400 famílias. Os moradores seriam removidos segundo o Decreto Estadual nº 43.415/2012, e foi dito que poderiam escolher se gostaria de ir para os conjuntos ou receber uma indenização. O valor da indenização também seguiria o mesmo Decreto. Os valores não são suficientes para comprar uma casa em condições dignas na Rocinha ou no entorno e muito menos com Registro Geral de Imóvel. Foi informado que os moradores de áreas de risco não poderiam escolher a modalidade da realocação. Uma das grandes questões a serem encaradas nesse processo é o destino dessas famílias que habitam áreas definidas pela Geo Rio como de risco. De acordo com o Art. 42-A inciso III do Estatuto da Cidade, é previsto que o “planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre” sejam realizados, então priorizando a realocação ou prevenção (de risco) da população que está nessas áreas, por meio de contenções de encostas e obras de infraestrutura, por exemplo. Porém, parece ter sido adotado somente o mapa de suscetibilidade elaborado pela GeoRio. Os mapeamentos de suscetibilidade emitidos pela GeoRio têm base na altitude, nas curvas de nível do terreno, sem avaliação técnica aprofundada in loco. Esses mapeamentos são considerados por diversos técnicos, engenheiros, arquitetos e urbanistas como documentos genéricos, que não possuem aproximação suficiente para atestar risco real na área. Existem, por exemplo, laudos técnicos emitidos em 2010 e 2019, nas épocas das chuvas, sobre a área do Laboriaux na Rocinha. Diziam que não existia risco na área, ou que era possível mitiga-los de forma simples, enquanto de acordo com o documento de suscetibilidade da GeoRio a área seria de alto risco. Ainda, de acordo com a Lei Orgânica do Município (Capítulo V, Seção II, Subseção I,Art. 429, VI): Art. 429 - A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos: (...) VI - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipótese em que serão seguidas as seguintes regras: a) laudo técnico do órgão responsável; b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções; c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento; Caso, após os devidos procedimentos de atestado de risco, com laudo de interdição, a unidade habitacional esteja de fato em área de risco de vida imediato e sem possibilidade técnica de mitigação, é necessário respeitar a Lei Orgânica Municipal, em seu Artigo 429, seguindo os devidos procedimentos: moradores devem ser contemplados com orientação técnica e ter plena participação em possíveis negociações e devem ter moradia garantida em área próxima, perto de postos de trabalhos e moradias já existentes. Então o auxílio prestado pelo aluguel social não qualifica como uma solução habitacional, nem a indenização do valor das benfeitorias. Além disso, o valor do auxílio habitacional vigente de até 500 reais mensais por família, é insuficiente para alugar um imóvel na Rocinha. O Programa não dá solução para as remoções que ele mesmo causaria.
Encerramento do programa[editar | editar código-fonte]
O encerramento se deu a partir do impeachment do então governador Wilson Witzel. Interesses políticos por parte de Cláudio Castro e Bruno Kazuhiro e a privatização da CEDAE são fatores que parecem se relacionar com o encerramento. O discurso oficial foi a de um entendimento jurídico do governo de que a ação partir de dinheiro da CEDAE, agora que Águas do Rio assumiria, seria um conflito de interesses que poderia ser levado ao Ministério Público. Um grande problema é que ninguém sabe informar para onde foi o dinheiro que estava destinado obrigatoriamente à Rocinha. Os moradores mesmo tendo medo e receio das remoções, queriam debater o programa para que se adequasse às reais demandas e quando encerrado, passaram a ansiar as intervenções (e o investimento) para tentar reivindicar a participação em caso de volta, evitando as remoções.
Notas e referências
- ↑ O projeto prevê a titulação de grande parte da comunidade, obras de saneamento, equipamentos públicos e a remoção de moradores - sem realocação de todas as famílias -, a construção de um boulevard elevado, inspirado no HighLine de Nova York (famoso pelo processo de gentrificação que causo na área de Chelsea e 10th Street em Manhattan). Todos os moradores titulados terão de pagar pela residência que já obtém posse e, os removidos que serão reassentados também. Os moradores respondem ao projeto com medo de ser removidos e não realocados, e mesmo se realocados, se terão dinheiro para arcar com a compra de suas próprias residências. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/30/internacional/1472565308_299661.html
- ↑ O montante, por parte da CEDAE, vem da entrada de recursos provenientes da operação de securitização de Royalties do petróleo no valor de R$ 1,86 bilhão. Esse dinheiro deve ser utilizado para investimentos em assentamentos precários no Rio de Janeiro. Portanto é este, o prometido à Rocinha pelo Programa Comunidade Cidade.
- ↑ Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/cabecinha-frases-episodios-polemicos-witzel-afastado/.
- ↑ Observando a escolha de áreas a serem removidas pelo Programa pode-se perceber que são as áreas afirmadas pela mídia como as mais “perigosas” (em relação ao crime), com maior presença do tráfico: Roupa Suja e Macega, o alto da Rua Um e o cruzamento do Terreirão com o Beco 199.