Favelas e Comunidade Política – Até os anos 1960
O presente verbete é uma parte do capítulo 06 do livro “A sociologia do Brasil urbano”, intitulado “Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social”. O capítulo é de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds e o livro é publicado pela Editora Fiocruz. A utilização do texto foi gentilmente acordada entre a Editora Fiocruz e a equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Introdução
Pode-se perfeitamente dizer que, nas últimas décadas, houve um crescente reconhecimento na América Latina, se não no mundo, de uma intensificada crise de urbanização. A crise consiste no imenso crescimento populacional das cidades, por um lado, e, por outro, na falta de recursos, especialmente na habitação e infraestrutura urbana a ela relacionada, para acomodar os recém chegados e os urbanitas nativos, particularmente aqueles de baixa renda. O grau dessa falta e, como consequência, a intensidade da crise dependem um pouco dos padrões de habitação e infraestrutura estabelecidos como normas. Essas normas e, com elas, as definições do problema da “habitação social” ou “habitação de interesse social” – eufemismos frequentemente usados para a moradia de pessoas de baixa renda – são estabelecidas em larga medida pelos membros das classes de renda superior que controlam também a construção e as políticas e instituições urbanas.
O Brasil não foi exceção tanto no que diz respeito à onda de urbanização como no que se refere ao reconhecimento da crise crescente. O reconhecimento é encontrado em um número imenso de relatos sobre “o déficit habitacional” e em uma vasta literatura de declarações públicas, estudos sociológicos e pronunciamentos superficiais especialmente com relação ao “problema da favela”. Os temas da habitação e da favela aparecem já por volta de 1880, mas, em termos de alcance e volume, tornam-se significativos apenas na década de 1940 e urgentes apenas na de 1950 – refletindo o rápido crescimento das favelas e a elaboração de resposta institucional, os quais devem ser, ambos, examinados, caso se queira compreender a década de 1960.
A década de 1960, embora um recorte artificial e mesmo impróprio do fluxo histórico, tem certa significação para o Brasil e para o estudo das favelas. O ano de 1960 é um divisor de águas – foi quando o Rio de Janeiro, o lugar de maior concentração de favelas no Brasil, deixou de ser a capital nacional, enquanto Brasília, então ainda quase um povoado, tornava-se da noite para o dia uma capital e uma cidade com a sua própria coleção de favelas. Como um estado, o Rio tornou-se verdadeiramente uma unidade política independente politicamente – mais do que como Distrito Federal, um elemento meramente administrativo da sociedade nacional –, fato da maior importância tanto internamente para o novo estado da Guanabara (em suas políticas habitacional e urbana, por exemplo) quanto para o governo nacional, em relação ao qual ele permanecia ainda em certa oposição dialética, agora quase que totalmente esvaziada.
A década de 60 se caracteriza também pela crescente dissonância das linhas contrapontísticas de desenvolvimento no interior da sociedade, de modo que a textura da composição em algum ponto precisava se romper para se estabelecer como uma nova forma de desenvolvimento. Essa ruptura foi o movimento militar de 1964, com todas as mudanças institucionais significativas que ele produziu. Estas, em suma, geraram mudanças no curso na política de desenvolvimento de abordagens institucionalistas para abordagens monetaristas, mudanças que se refletiram na política habitacional e urbana, no controle salarial, nas estratégias de importação-exportação e em desenvolvimentos infraestruturas. Talvez ainda mais importante, elas envolveram uma expansão drástica de uma extensa inovação em uma feroz aplicação de controles sociopolíticos.
Apesar das mudanças na política e na ação, as novas formas de desenvolvimento perpetuaram velhos elementos e temas, seja porque esses velhos elementos não podiam ser erradicados, seja porque se julgava desejável mantê-los. Essa continuidade através dos anos 60, com suas raízes no século passado, pode ser encontrada mediante o exame de certo conjunto de políticas, linhas de pensamento e instituições por meio das quais essas políticas foram implementadas ao longo dos últimos 80/90 anos.
Subjacente a essa continuidade nos anos 60 encontra-se uma estrutura societal brasileira cuja ordem básica foi mantida e irregularmente reforçada ao longo desse período, desde que a primeira favela surge, por uma série de instituições que variam em formas, mas são semelhantes em objetivos e efeitos.
Um desses conjuntos de políticas é o que se refere à população urbana de baixo nível de renda, em grande parte, mas não totalmente, proletária, e especialmente, mas não exclusivamente, àquele seu segmento que reside em áreas invadidas por posseiros, ou favelas. As favelas do Rio fornecem uma amostra especialmente interessante da população urbana de baixo nível de renda, não apenas por causa de seu grande número, ampla variedade e grande população, mas particularmente pelo fato de se localizarem no que é, ainda hoje, o centro significativo da tomada de decisões no Brasil, o Rio de Janeiro.
Neste estudo, mostramos que, nos anos 60, a política relativa à favela, apesar de marcada por variações externas na forma, é essencialmente a continuação de uma política de controle que remonta, pelo menos, aos anos 30. Por vezes, esse controle se reveste de adornos mais populistas – por exemplo, na forma de “urbanização” in loco das favelas, mas em outros momentos aparece sob uma forma mais repressiva, como, por exemplo, a remoção total das favelas e a rigorosa supervisão administrativa das unidades habitacionais governamentais de “emergência”, chamadas parques proletários. A natureza da solução política particular varia diretamente com relação à ideologia nacional reinante e à ordem política. Assim, quando um regime mais populista controla a comunidade política, tende a surgir uma política relativa à favela mais comprometida com soluções “sociais” e “humanas”, ao passo que o regime militar e outros regimes elitistas tenderam a produzir políticas mecânicas, administrativas e repressivas. Pode-se, todavia, considerar que ambos os conjuntos de política objetivam um controle governamental sobre as massas. Ainda mais, a política relativa à favela torna evidente, argumentamos, a natureza essencialmente elitista da comunidade política brasileira que, mesmo nas fases mais populistas da história do Brasil, sempre significou um firme controle sobre as classes mais baixas por intermédio de um governo basicamente representativo das classes de elite proprietárias e ricas da sociedade.
Continuidade Histórica na Estrutura do Problema Habitacional
Os problemas de habitação do pobre urbano têm preocupado os brasileiros pelo menos desde a última metade do século XIX. Em 1886, o Conselho de Saúde do Distrito Federal escreveu alguns relatórios, todos deplorando as condições dos cortiços3 e concordando em que as habitações eram higienicamente perigosas e que os moradores deveriam ser removidos “para os arredores da cidade em pontos por onde passem trens e bondes”. Os relatórios pressionavam o governo a expropriar os cortiços, destruí-los e construir casas individuais para o pobre (Brasil, Conselho Superior, 1886: 15-16). Foi sugerido que as taxas de água e de limpeza sobre as “casas higiênicas” fossem reduzidas para incentivar a elevação do padrão de saneamento (p. 21). Pode-se verificar que pouco progresso foi obtido, como nossa revisão das discussões e políticas correntes demonstrará mais adiante.
O reconhecimento de que o problema da habitação era de competência nacional é visto primeiramente nos trabalhos de Everardo Backheuser, um engenheiro da administração do presidente Rodrigues Alves, logo depois da passagem do século. Em um relatório bastante informativo ao ministro da Justiça e Negócios Interiores chamado Habitações Populares (1906), Backheuser descreve os tipos de habitação proletária urbana numa época em que o Rio, sob a administração de Pereira Passos, sofria uma “limpeza” e reconstrução maciças. A abertura das ruas e avenidas centrais da cidade e a demolição e extinção dos inumeráveis cortiços, sem a substituição por outra habitação de baixo custo, deixaram os setores mais pobres da população sem habitação e forçaram-nos a morar com outra família em outra habitação na cidade ou a mudar-se para os subúrbios. Só a abertura da avenida Central (hoje avenida Rio Branco) exigiu a demolição de duas ou três mil casas, muitas com famílias numerosas, deslocando com isso milhares de pessoas (Goulart, 1957: 13).5 Novas habitações não substituíram as velhas em um ritmo suficiente para impedir a escassez, e como consequência os aluguéis subiram como subiram de maneira geral os valores imobiliários no centro da cidade. Dados os níveis de renda, o pobre pagava relativamente muito mais por sua moradia do que os “mais remediados”. A situação tornou-se mais difícil com a lei municipal de 10 de fevereiro de 1903, que proibia todos os reparos em cortiços (Backheuser, 1906: 107). Somando-se à intensidade do problema estava a imigração, que Backheuser descreve para esse período de modo bastante semelhante às descrições dos anos 60, época em que se supunha que o problema fosse um fenômeno peculiar característico:
A situação da classe pobre era, pois, muito precária, apesar da existência de trabalhos bem remunerados no Rio atualmente. Mas por isso mesmo chegavam diariamente, de todos os lugares circunvizinhos, camponeses, que trocavam seus serviços na roça por ocupações de operário... A população pobre aumentou sem que aumentasse o número de casas. (Backheuser, 1906: 7).
Com esses exemplos, fica claro que algumas características básicas, como o crescimento urbano, a reconstrução urbana, a migração, a habitação decadente, a escassez de habitação, aluguéis relativamente elevados para pessoas de baixa renda, superpopulação e propostas político-administrativas de solução para o problema habitacional, bem como alguns dos tipos físicos de habitação, têm sido componentes da situação no Rio desde a década de 1880.
O ‘Problema da Favela’ Vira Moda
Na década de 1880, a favela ainda não existia como um desses componentes; é apenas por volta de 1895 que a primeira favela – favela Providência (ver fotos in Backheuser, 1906) – aparece, e o “problema da favela” começa a evoluir, embora despertando pouca atenção durante as duas primeiras décadas deste século.
Discussões extensas sobre as favelas per se como elementos importantes do padrão habitacional do Rio aparecem pela primeira vez em 1930, quando o Rio sofria novamente as dores de importantes projetos de reconstrução urbana,6 quando crises agrícolas nos estados vizinhos estimulavam nova e intensa migração para o Rio,7 quando o acelerado crescimento industrial atraía novas levas de imigrantes e quando a política econômica essencialmente institucionalista de Vargas visava à construção de mercados internos para criar um grau de independência política e econômica para o Brasil. Ao mesmo tempo, Vargas deu muita atenção ao proletariado urbano. Essa atenção, como encontramos em nossos questionários de surveys e entrevistas, é ainda muito valorizada por pessoas de 30-35 anos ou mais. A atenção não era desprovida de seus controles, expressos por um populismo corporativo (ver abaixo) e por meio de instrumentos legais tais como o Código de Obras (Diário Oficial da União, 7 de janeiro de 1937), em sua tentativa de limitar a expansão e melhoria da favela.
O código continha (segundo Modesto, 1960) o primeiro reconhecimento legal das favelas e o primeiro de muitos apelos, tanto oficiais como não oficiais, para sua eliminação e substituição por “núcleos de habitação de tipo mínimo” (artigo 347). Vendo o problema basicamente como de ordem habitacional, esse artigo pede a construção de habitações populares ou “habitações proletárias” a serem vendidas a pessoas reconhecidas como pobres, ao passo que o artigo 349 “proibia” a expansão das favelas: nas favelas existentes ficava absolutamente proibida a construção de novas casas ou a realização de qualquer melhoria nas casas existentes... Assim, na primeira política governamental formal relativa a favelas, os temas da erradicação, de uma “doença social” e da tentativa de solução do problema habitacional por medidas puramente administrativas são apresentados; tais temas se repetirão periodicamente no decorrer dos trinta anos seguintes.
O interesse populista do período de Vargas e a abordagem habitacional administrativa do “problema da favela” cristalizaram-se logo depois do começo do Estado Novo, em 1937. O governo de Henrique Dodsworth, prefeito do Distrito Federal no início da década de 1940, foi o primeiro de 11 mandatos, de 1940 até hoje, a lidar administrativamente com as favelas. A era de Dodsworth deve ser vista no contexto da ideologia do Estado Novo de Vargas, modelado segundo o fascismo europeu do Estado corporativo. Essa ideologia ditava suas relações populistas, paternalistas e essencialmente controladoras do proletariado através de meios corporativistas. Como diz Skidmore (1967: 30-31),
A consequência mais visível e duradoura da política de Dodsworth relativa à favela foi a construção de parques proletários como substitutos dos barracos de madeira sabidamente insalubres, característicos das favelas. As casas de madeira enfileiradas deveriam ser temporárias como habitação e transitórias como local de moradia, até que casas mais permanentes pudessem ser construídas para os ocupantes. Na verdade, muitos dos parques permanecem até hoje, “afavelaram-se” e são hoje popularmente chamados de “favelas chapa-branca” (os carros do governo têm chapas brancas).
[...]
O primeiro parque construído (nº 1 da Gávea) era originariamente em lugar agradável para morar. Tinha uma escola, uma clínica médica, uma creche, um mercado, uma escola técnica, uma cantina para desempregados, um posto de bombeiros e áreas recreativas. Velhos moradores lembram hoje com prazer o primeiro ano do parque (entrevistas, outubro 1969).
[...]
O destino dos parques proletários depois de 1945, quando Vargas deixou o cargo, é indicativo tanto da falta de continuidade com relação à política da favela entre as administrações individuais como da rápida mudança no complexo da política brasileira após a primeira administração de Vargas. Como as eleições foram reinstituídas na administração Dutra, os rígidos controles da primeira era de Vargas cederam lugar a uma série de relações livres nas quais políticos e administradores de fora dos parques tentavam conseguir eleitores e seguidores dentro deles. A partir daí, “as relações entre forças externas e populações locais seriam sempre constituídas de acordo com interesses eleitorais” (M. F. de Moura, 1969: 6). A instituição do sistema eleitoral foi acompanhada de mudanças nos instrumentos de controle no interior do parque. Enquanto que, antes, a escola, a creche, e a igreja eram parte da estrutura administrativa de controle, depois de 1945 a escola de samba (ver Morocco, 1966) e as biroscas (ver Machado, 1969), bem como as associações de favelas e igrejas, ganharam importância como veículos organizacionais para a manipulação por parte de políticos de fora (ver, também, E. Leeds, 1966). Por meio dos pagamentos políticos aos cabos eleitorais locais no interior dos parques, os políticos asseguravam a “permissão” (geralmente não oficial) a seus capangas para a construção de casas em terras vagas dentro e atrás do parque. Muito da regularidade que o parque tivera antes foi perdida na construção desordenada e ao acaso.
A ‘Democracia’ Pós-Vargas
O fim da primeira era de Vargas e a entrada do general Dutra como presidente marcavam uma grande descontinuidade na política do Distrito Federal relativa à favela. Descontinuidades desse tipo são um traço comum na história da política social do Brasil, como assinalamos acima. A maioria dos programas iniciados sob Dodsworth foi negligenciada, e as tentativas de “solucionar o problema da favela” não introduziam nada de novo, repetindo desnecessariamente trabalhos anteriores já realizados.
A curta administração de Hildebrando de Góis (de janeiro a junho de 1946) iniciou o que mais tarde se tornaria um elemento significativo do dramático contraponto das relações favela-governo. A criação da Fundação Leão XIII foi, além de seus aspectos de bem-estar social, um barômetro preciso das pressões políticas do Brasil do pós-guerra. A ideia de sua criação nasceu de um acordo entre Hildebrando de Góis e o conservador cardeal D. Jaime de Barros Câmara para tentar “recuperar os favelados”. Explícito nesse pensamento inicial estava o controle da “infiltração comunista”, que era vista por muitos como uma enorme ameaça em uma época em que o Partido Comunista (PC) tinha seu maior apoio popular; embora o partido estivesse em quarto lugar dentre os partidos em número de votos, ainda assim o número absoluto de votos que ele obteve nessa eleição de 1947 foi tão grande que parecia representar um verdadeiro perigo eleitoral para o futuro. O PC foi declarado ilegal no mesmo ano.
O plano da fundação era criar, em cada favela, centros sociais, escolas e clínicas de modo a dar orientação prévia para a urbanização.
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Basta dizer aqui que a fundação, criada pelo governo federal e pelo governo do Distrito Federal, existia como pessoa jurídica privada, estreitamente vincu- lada à diocese católica do Rio até 1962, quando, por uma série de manobras políticas do governador Carlos Lacerda, tornou-se parte da Secretaria de Serviços Socais do recém-criado estado da Guanabara.
A administração de Mendes de Morais, posterior à de Hildebrando de Góis, se caracteriza não apenas pela descontinuidade, mas também pela falta de comunicação entre os membros de uma mesma administração. Por exemplo, sob a estrutura da Secretaria de Viação e Obras foi criado, em 1946, o Departamento de Habitação Popular, pelo Decreto n. 9.124, para atender às necessidades da habitação proletária. Os projetos desse departamento eram aprovados pelo Departamento de Construção Municipal, mas não pelo Departamento de Urbanismo (Modesto, 1960: 43). Esse é apenas um exemplo do que Modesto chama de desorientação na solução do problema habitacional, e manifesta a falta de mentalidade planejadora entre aqueles responsáveis pela administração municipal. As medidas tomadas por muitas instituições municipais eram não apenas descoordenadas, mas demonstravam pouca reflexão sobre as consequências futuras da ação.
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O tema da repressão é reforçado pela criação, em 1947, de uma comissão para a extinção das favelas por Mendes de Morais. Essa comissão, ao menos, deu a contribuição positiva de iniciar o censo das favelas de 1947-1948. A iniciativa do censo deve ser entendida nos termos da política geral de Mendes de Morais relativa às favelas. Em uma entrevista (O Globo, 26 de janeiro de 1966), Mendes de Morais, na época legislador, descreveu melhor seu plano anterior para a extinção das favelas, que abrangia o retorno dos moradores das favelas a seus estados de origem, submetia os moradores acima de 60 anos à tutela de instituições do Estado e expulsava das favelas famílias cujo salário excedesse um mínimo estipulado. O ex-prefeito disse que seu plano não funcionara devido à falta de apoio dos governadores dos estados de origem dos moradores das favelas, dos diretores da Cia. Lloyd de Navegação e do chefe de Polícia do Distrito Federal. “Mendes de Morais não acabou com as favelas porque não teve apoio” (ibid.). [...]
Carlos Lacerda construiu uma campanha chamada A Batalha do Rio, onde apresentava que as questões da favela, ainda que localizadas ali, eram questões de toda a sociedade. O problema da favela não era uma praga local, mas nacional, embora pudesse ser controlado localmente. Era um problema complexo que não admitia soluções simplistas nem podia ser atacado em apenas um aspecto.
Era resultado de um profundo desequilíbrio na vida do país e da cidade, efeito, acima de tudo, de administração escandalosamente inepta. Requeria a coordenação de órgãos federais e municipais, públicos e privados, sob um único comando. Em seu começo, a “Batalha” pareceu conquistar a simpatia dos líderes dos três maiores partidos políticos, figuras-chave do Legislativo, e do prefeito Mendes de Morais. Uma nota foi apresentada à Câmara Nacional dos Deputados pedindo apoio federal. Isso resultou na criação de mais outra comissão e sete subcomissões por Mendes de Morais. Todavia, segundo um modelo consistente, o tema, a resposta e os planos emergentes da “Batalha” logo se extinguiram, sugerindo; (a) que qualquer movimento que ameaçasse perturbar fundamentalmente o status quo tinha pouca chance de sucesso, e/ou (b) que a “Batalha” era uma atitude retórica e política que nunca pretendeu produzir mudança significativa.
O plano (a Batalha) era radical, e modificações de tão longo alcance seriam introduzidas na Administração e no Governo que implica- riam uma verdadeira revolução. Para executar (o plano) era necessária uma nova mentalidade no povo e nas elites... Mais uma vez a inépcia, a mediocridade e a rotina burocrática venceram. Venceram também aqueles interesses inconfessáveis que têm seu destino ligado às favelas, como outros são ligados à seca no Nordeste e outros ainda ao analfabetismo... todos conspirando contra o levantamento das massas brasileiras. (Sagmacs, Pt. I, 1960: 38, col. 2)
Em retrospecto, a política relativa à favela, ou a sua ausência durante os anos Dutra, 1945-1949, não é surpreendente quando vista no contexto da repressão geral desse período de cinco anos da história brasileira. Pensava-se ser o PC uma ameaça tão grande, depois das eleições de 1947, que ele foi posto totalmente fora da lei pelo governo Dutra. Os sindicatos, especialmente o grupo dos metalúrgicos e dos estivadores, foram também severamente atingidos. No primeiro ano desse governo, os organizadores trabalhistas comunistas e de esquerda haviam ganhado considerável poder nos sindicatos até o ponto em que Dutra interveio, em 1947, demitindo muitos dos elementos de esquerda.
Na estrutura do trabalho construída por Vargas no Estado Novo, os sindicatos estavam sob controle direto do Ministério do Trabalho, que, por exemplo, controlava a alocação dos direitos compulsórios dos membros dos sindicatos. A estrutura permaneceu a mesma sob Dutra, que “apenas explorou o controle do Ministério do Trabalho sobre as corporações sindicais para evitar a inquietação do trabalho” (Skidmore, 1967: 114). Assim, as políticas de controle geral e repressão podem ser vistas como o contexto institucional para o controle e repressão encontrados nas políticas relativas à favela durante o período de “democracia eleitoral” de Dutra.
O Segundo Período de Vargas e os Anos 50
O “democrático” Vargas do início dos anos 50 estabeleceu uma tendência ideológica que, embora não favorecesse explicitamente a causa do proletariado urbano, provia ao menos uma atmosfera na qual as favelas e o proletariado em geral poderiam encontrar canais para articular seus interesses. A suspeita da classe média e a oposição de elementos da conservadora UDN não deixaram outra escolha a Vargas senão a de buscar o apoio em grande escala da classe trabalhadora. Inicialmente, houve um afrouxamento substancial das restrições sobre os sindicatos estabelecidas por Dutra, me- diante a permissão de que os líderes sindicais mais radicais retornassem ao poder. Uma segunda tendência de maior alcance foi o estímulo a uma política de desenvolvimento econômico nacionalista que, pessoas da classe trabalhadora o perceberam, seria benéfica a elas (ver Skidmore, 1967: 109).
[...]
Pela primeira vez, a ideia de urbanização in loco começou a aparecer no debate público sobre as favelas. Essas ideias e declarações refletem um reconhecimento genuíno das diferentes funções sociais e econômicas das áreas invadidas por posseiros, aqui especificamente favelas.
O ano de 1952 viu também a maior atenção, em âmbito ministerial, dada à habitação e às favelas em particular. Pela primeira vez, o fenômeno das favelas era vinculado a estabelecimentos semelhantes em outras partes do país – mocambos no Recife e vilas de malocas em Porto Alegre. A Comissão Nacional de Bem-Estar Social, nessa época integrante do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, realizou uma série de conferências nacionais cujas conclusões gerais eram de que as favelas constituíam um problema nacional e deveriam ser vistas em seus aspectos social, econômico e legal; estudos deveriam ser feitos no contexto de um planejamento de escala nacional. Em afirmações semelhantes às de Victor Moura no início do período Vargas, os relatórios afastaram-se da representação mítica. Um relatório descrevia as favelas como espaços que têm populações heterogêneas que variam de criminosos procurados pela polícia a famílias legalmente constituídas que, devido a uma série de razões, são forçadas a arranjar um abrigo na favela utilizando os recursos de que dispõem. (ver Brasil, Ministério... 1952: 5-6, 20).
Considerações Finais