Laje e Turismo
Autora: Bianca Freire-Medeiros.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, a palavra “laje” tem sua origem desconhecida, e significa “obra contínua de concreto armado, a qual constitui sobrado, teto de um compartimento, ou piso”. Se a definição dá conta dos aspectos técnicos, nem de longe consegue abarcar a pluralidade de usos que a laje permite e a diversidade de valores nela investidos no contexto da favela.
Como a arquiteta Danielle Klintowitz (2007) ressalta em sua dissertação sobre os usos e apropriações de diferentes espaços na Rocinha, as lajes apresentam grande diversidade morfológica dependendo da área onde se encontra a edificação e de sua tipologia: nas áreas mais precárias, elas são menores, em geral com cinco metros quadrados; nas áreas mais consolidadas, podem chegar a 10 metros de comprimento por oito de largura. A despeito de seu tamanho, as lajes não raro são tomadas como espaços provisórios, sempre em mutação – vergalhões expostos, às vezes sinalizados e protegidos por garrafas pet, acenam que outras edificações ainda estão por vir. Muitas vezes a intenção é que sirvam como base para se construir uma nova residência a ser ocupada por outros membros da família ou para uso no mercado imobiliário: na maior parte das favelas, lajes são vendidas e alugadas como se fossem um lote residencial regular. Em ambos os casos, como bem observam Jailson de Sousa e Jorge Barbosa (2005:65), elas representam um valioso patrimônio familiar, a maior herança que os pais podem prover a seus filhos.
No espectro quase infinito de papéis que a laje performa, alguns são mais recorrentes. Às lajes correspondem, sobretudo, ideais de lazer e interação social: são espaços de congregação, socialização e de usufruto do tempo do não-trabalho. Nas lajes as crianças brincam, as famílias fazem churrasco e comemoram as grandes datas, moças e rapazes relaxam e tomam sol -- não por acaso há tantas piscininhas de plástico e chuveiros instalados ali. De tão popular, a prática levou à criação do concurso “gata da laje” cujo objetivo é identificar e premiar, a cada verão, aquela que seria a mais bela da favela.
As lajes cumprem, igualmente, funções mais pragmáticas: abrigam as caixas d’água que tingem de azul a visão aérea da favela, costuram-se em intermináveis varais, funcionam como jardins suspensos e espaço para criação de pequenos animais – passarinhos, cachorros, coelhos, patos. Servem ainda para guardar tudo que não é imediatamente útil, mas que não se quer jogar fora, tudo que não cabe dentro de casa. Eventualmente, podem funcionar como palcos para músicos e artistas amadores, assim como suas paredes podem se transmutar em superfície para projeção de filmes.
Nas favelas verticalizadas, com altíssima densidade, algumas ruas não têm mais de 50 centímetros de largura. Além de estreitas, as ruas possuem trechos muito escorregadios e íngremes; em outros, seu fluxo é interrompido por escadarias. Torna-se inviável, portanto, transportar objetos de maior volume – uma geladeira ou um sofá, por exemplo. Para contornar esse sério e cotidiano problema de mobilidade, os moradores criam caminhos alternativos por cima das casas. Seu caminhar por lajes adjacentes possibilita a criação de verdadeiras ‘ruas suspensas’, as quais prescindem, obviamente, de um traçado prévio. As lajes transformam-se, ainda com maior frequência, nos extremos de pontes invisíveis e precárias quando as crianças perseguem suas pipas pulando com rapidez entre lajes não necessariamente contíguas.
Desde o início dos anos 90, por conta da popularidade da favela no mercado turístico internacional, lajes em diferentes favelas da Zona Sul carioca passaram funcionar como mirantes informais. Durante o “momento laje”, guias reproduzem seu texto explicativo sobre a favela e a sociedade brasileira em termos mais gerais, respondem eventuais perguntas e incentivam os turistas a tirar o maior número possível de fotografias. Comum a todas as promotoras de turismo, o “momento laje” é sem dúvida, um dos mais apreciados pelos milhares de turistas das mais variadas partes do globo: com o mar de casas a seus pés, eles podem confrontar a favela com seu entorno, as casas mal alinhadas com os edifícios luxuosos à beira do mar.
Se potencialmente as lajes poderiam funcionar como palco de encontros face a face entre turistas e moradores, na prática elas funcionam como palco de encontros entre turistas e imagens genéricas, previamente acumuladas e muitas vezes descontextualizadas, que eles trazem em suas bagagens. Não por acaso, as fotografias que tiram desde a laje em muito reproduzem aquelas disponibilizadas virtualmente – nos sites das agências de turismo ou nos blogs de viagem --, os mesmos temas e mesmos ângulos, com pouquíssimas variações.