Pertencimento ao Complexo do Alemão
Autor: Thiago Oliveira Lima Matiolli.
Introdução
É comum entre pesquisadoras(es), sobretudo aquelas(es) que se pretendem estudar as favelas, tomar como pressuposto o fato de que as pessoas que vivem em áreas que hoje são percebidas como complexo de favelas não se vêem como moradoras de um “complexo”. Essa premissa, que não vem acompanhada de evidências empíricas rigorosas, é suficiente para que tais “especialistas” passem a afirmar que essa perspectiva espacial é algo construído pelo Estado e imposto a quem habita as áreas faveladas, numa lógica militarizada. Negligenciando, assim, em alguma medida, a agência de quem vive nesses espaços.
Todavia, a relação que é estabelecida pelas pessoas que vivem nesses espaços renomeados como “complexo de favelas” com seu lugar de moradia promove menos sua identificação (ou não) definitiva como moradoras de um “complexo”, do que a possibilidade de um pertencimento (ou não) a ele, o qual é acionado de modo bastante heterogêneo e, usualmente, estratégico. O que isso quer dizer: primeiro, que não podemos fazer afirmações generalistas e duais que afirmem ou neguem a identidade de alguém a “um complexo”; segundo, e em decorrência do primeiro, que os pertencimentos a essa nova escala espacial da cidade do Rio de Janeiro (complexo) são múltiplos, variados e imprevisíveis[1].
As pessoas vão se perceber como moradoras ou não de um complexo de maneiras diferentes. Ante a uma pergunta do tipo: “você mora no Complexo do Alemão?”, uma moradora ou morador da área pode responder que “não”. O que não implica necessariamente numa resistência em reconhecer esse novo espaço da cidade, que lhe teria sido imposto como lugar de moradia.
Há, pelo menos, duas outras motivações para que essa resposta negativa tenha sido dada. A primeira, por exemplo, é se a pessoa que for indagada tivesse se mudado para essa região na década de 1980 ou antes, ela, de fato, não foi morar no Complexo do Alemão, mas em outro lugar, seja Olaria, Ramos, Inhauma ou Bonsucesso. A lei 2055 de 1993 mudou o nome do bairro onde ela mora (ou morava), e isso pode não ter-lhe sido comunicado; assim, mudou-se o nome bairro onde essa moradora ou morador vive e não lhe contaram. O que, também explicaria, porque há quem situe o lugar em que reside como “rua x, 'complexo do alemão', Ramos”, considerando este último como a referência formal de local de moradia.
A outra explicação é que, internamente ao Complexo do Alemão, há diversas localidades, de modo que o pertencimento inicial pode ser à Nova Brasília ou à Alvorada, à qual a filiação ao complexo se sobrepõe. Assim, alguém pode localizar sua moradia na Nova Brasília, no Complexo ou ainda a ambos ao mesmo tempo: “moro na Nova Brasília, no Complexo do Alemão”[2].
Então, para se apreender como as pessoas se identificam ou pertencem ao Complexo do Alemão é preciso entender que esse pertencimento seguirá perspectivas variáveis e estratégicas. Trata-se de mais uma escala espacial que se sobrepõe ao lugar onde se vive e pode ser acionada se necessário, isto é, uma pessoa pode se ver como moradora, ao mesmo tempo, da Nova Brasília e do Complexo do Alemão, tal como, da Zona da Leopoldina, da cidade e do estado do Rio de Janeiro; e, ainda, deste país chamado Brasil.
Neste verbete, não se vai abordar a relação de moradoras e moradores com o Complexo do Alemão ao longo do século[3], haja vista que essa denominação começou a ser produzida apenas na década de 1980, até que virasse bairro na década seguinte. Mas, resgatar o processo histórico de produção desse novo espaço na cidade e como ele passou a ser experimentado pelos moradores nas últimas décadas.
O Morro do Alemão como um aglomerado de favelas
Talvez a primeira menção pública a um possível Complexo do Alemão possa ser resgatada de uma edição do Jornal do Brasil de 13 de Janeiro de 1980, através da transcrição de uma fala do então Secretário Municipal de Desenvolvimento Social do Município do Rio de Janeiro, Marcos Candau, ao abordar o crescimento do processo de favelização da cidade. Ao listar as favelas que mais teriam crescido nos anos anteriores, ele afirmava:
“Se você for ao morro do Alemão, entre o Méier e Ramos, que é um aglomerado de seis favelas, vai sentir-se numa enorme cidade, com milhões de pessoas. Feita a contagem, constatou-se a existência de cerca de 122 mil habitantes. As favelas da Rocinha e Vidigal, juntamente com essas do Alemão, foram as que mais cresceram nos últimos anos e, se olharmos do alto, do helicóptero, vemos que dentro de pouco tempo Vidigal e Rocinha se juntarão, formando uma única favela” (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 19).
Nesta fala, ainda que não haja o uso do termo “complexo”, já é possível notar uma identificação entre o Morro do Alemão como um espaço que congregava mais de uma favela. Na mesma edição há uma matéria intitulada:“Morro do Alemão, o que mais cresce”, na qual, a área é descrita como uma região de quase um milhão de metros quadrados distribuídos pelos bairros de Ramos, Olaria e Bonsucesso.
"Com 24.535 barracos e uma população de 122 mil 675 habitantes, o morro do Alemão é, na verdade, um aglomerado de favelas (Nova Brasília, Grota, Alvorada, Alemão, Alto Florestal e Itararé) que não para de crescer e já ocupa uma área de área de 973.600 m2 segundo o último levantamento de 1979" (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20).
A reportagem segue trazendo alguns “personagens”: Severino dias, que fora morar lá após casar, em um “puxado” na casa n. 23 da Avenida Central[4] e, seria, segundo o jornal, de “puxado em puxado” a forma pela qual o Alemão se expandia; Jorge da Costa, “empreiteiro do Morro do Alemão”, para quem o que não faltava ali, era trabalho; e Manoel Hermógenes, o “morador mais antigo do Morro do Alemão”, que teria chegado ao Alemão em 15 de Dezembro de 1946. Há também menção à UDAMA (Associação de Defesa e Assistência dos Moradores do Morro do Alemão) que fazia a manutenção das bombas hidráulicas que bombeavam água para o alto do morro e de duas creches, além de fornecer documentos aos “favelados”. Segundo o tesoureiro, à época, João Alexandre da Silva, o sonho da UDAMA era “ver a favela urbanizada”. Já a maior aspiração dos moradores seria a construção de galerias de esgoto.
Partindo da fala de João Alexandre, o Jornal apresenta esta caracterização do Alemão: "o morro em si, sem as favelas que o cercam, é delimitado pelas Ruas Joaquim de Queirós, Armando Sodré, Olaria e Estrada do Itararé e Rua Paranhos, em Ramos. O último levantamento oficial foi feito em 1972. Os dados: 18 mil moradores e 4 mil casas, número que não cessou de crescer garante o tesoureiro” (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20).
O que as reportagens retratam é a emergência de um novo espaço na cidade, uma nova escala territorial para pensar as favelas. A caracterização transcrita acima traz uma tensão entre o morro (do Alemão) em si e esse novo espaço, que virá a ser, anos depois, o Complexo do Alemão. Mais do que o nome, são lugares com delimitação e população diferentes e, a princípio, intercambiáveis; o Morro do Alemão passa a ter simultaneamente 4 mil e 24 mil “barracos”, 18 mil e 122 mil moradores. Com o passar do tempo, e com esse complemento “complexo”, a diferenciação entre esses dois espaços vai se consolidando, e a cidade verá surgir um de seus maiores espaços favelados nas décadas seguintes. O que seria percebido dois anos depois da entrevista, com a escolha do “Morro do Alemão”, composto por seis favelas, para receber um diagnóstico da Prefeitura, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), junto com o Jacarezinho, dois dos maiores espaços favelados da cidade à época.
O Conjunto de favelas do Alemão
O Relatório Preliminar do Projeto de Desenvolvimento Social de Favelas do Rio de Janeiro foi produzido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) com recursos do BID, entre os anos de 1981 e 1983. O texto está organizado em três grandes áreas: socioeconômica, físico-urbanística e jurídica. Logo na apresentação do relatório, o programa faz menção ao objetivo de gerar propostas para cinco favelas do Município do Rio de Janeiro: Jacarezinho e o “Conjunto Favelado do Alemão”, composto por Morro do Alemão, Nova Brasília, Itararé e Joaquim de Queirós. E, ao longo de suas 800 páginas, o “Conjunto Favelado do Alemão” vai ser apresentado de formas distintas.
Cada órgão contratado para realizar os levantamentos fez referência à região estudada de maneira mais ou menos regular, mas diferente um do outro; contudo, há variações na forma de apresentar o objeto “Alemão” internamente aos textos de cada um deles. Isto é, ainda que este seja um projeto de diagnóstico unificado, produzido a partir de dimensões distintas, não houve um esforço em unificar as noções utilizadas ou de se estabelecer previamente o que cada um desses órgãos deveria considerar como Complexo do Alemão, de modo que, cada área definiu-o segundo os parâmetros de suas pesquisas.
Isso pode ser percebido logo nos textos de apresentação de cada setor: no levantamento socioeconômico, faz-se referência ao “Conjunto do Alemão”; a área jurídica ao “Complexo do Alemão”; e o Iplanrio, responsável pelas informações físico-urbanísticas, faz menção às “favelas do Morro do Alemão”. E, quando na análise dos dados levantados, muitas outras enunciações surgem. Apenas, a título de ilustração, na caracterização físico-urbanística da área, os termos utilizados foram “Favelas do Morro do Alemão” e “área favelada do Morro do Alemão”. Nesta seção, marca-se muito a ideia do “Morro do Alemão”, conferindo-lhe uma centralidade em torno da qual, outras favelas teriam se desenvolvido. Por isso as expressões utilizadas mantêm a ideia de “morro”. Inclusive, há uma menção ao “verdadeiro morro do Alemão”[5].
A análise do relatório traz alguns dados interessantes (MATIOLLI, 2016). Primeiro, uma variação no uso da noção de “Morro do Alemão”, ora expressando todo o conjunto de favelas, ora apenas uma delas. Depois, o reconhecimento de uma nova escala territorial, o “Complexo do Alemão”, de modo que, os dados apresentados, ora dizem respeito a esta nova unidade territorial, ora às diferentes favelas que o compõem, marcando sua diferenciação interna. Essa perspectiva reconhece uma continuidade entre as favelas do Alemão, sem perder de vista a sua heterogeneidade interna.
Por fim, é interessante destacar a recorrência, no levantamento jurídico da expressão “Complexo do Alemão”, uma vez que essa seção foi realizada por técnicos da própria SMDS. Assim, talvez seja possível sugerir que a consolidação do uso do “Complexo” para o Alemão, e não outra das noções utilizadas ao longo do Projeto pode ser fruto de sua cristalização nas rotinas burocráticas e administrativas dessa secretaria (MATIOLLI, 2016).
A delimitação geográfica e da quantidade de favelas existentes no Rio de Janeiro, tal como de sua população, se colocava como um dos grandes desafios do governo municipal no início da década de 1980. Para tentar lidar com essas questões o Iplanrio assume um papel importante na produção de dados para o Município; através dele, foi produzido um Cadastro de Favelas; neste período, também foram divulgados os dados do censo de 1980, com informações referentes às favelas; e houve uma movimentação de conciliação entre os dados do IBGE e os produzidos por esse novo quadro e saber administrativo produzidos pela Prefeitura. Neste ínterim, a ideia de que há um Complexo do Alemão, ou de Complexos de favelas, se consolida ainda mais, com a diferenciação entre “favelas isoladas” e “aglomerados de favelas” (IPLANRIO, 1984)[6].
A XXIX Região Administrativa - Complexo do Alemão
Saturnino Braga foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro eleito diretamente depois do fim a ditadura civil-militar. Uma de suas iniciativas mais marcantes foi a criação de Regiões Administrativas nas quatro maiores áreas faveladas da cidade: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. E a eleição para os administradores regionais do município.
O processo de eleição para Administrador Regional da XXIX R.A. é muito significativa para se pensar o primeiro registro de organização coletiva em torno deste novo lugar da cidade: o Complexo do Alemão. Mariza Maria da Conceição do Nascimento se candidatou e foi eleita a primeira administradora regional da XXIX Região Administrativa. Moradora do Morro do Adeus, onde chegara na década de 1970, vinda da Paraíba, havia feito parte da diretoria da associação de moradores do Adeus, da qual virara presidente. Também integrou a Secretaria de Mulheres da FAFERJ (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro).
Uma “Carta de Apoio”, assinada por representantes das associações de moradores que comporiam a área de atuação da Região Administrativa do Complexo do Alemão, foi redigida em 24 de Abril de 1986 e trazia o seguinte texto:
Nós abaixo assinado, lideranças e representantes da sociedade de Ramos e do Complexo do Morro do Alemão, apoiamos a candidata Mariza Maria Conceição do Nascimento chapa nº. 2, que concorreu ao pleito de administradora no dia 30 de Março de 1986.
Tendo em vista que, a candidata está dentro dos parâmetros criteriais adotados pelo Ilmo. Senhor Vice Prefeito Jó Rezende.
Visamos principalmente a participação atuante da mesma, junto ao governo em favor do povo.
Assinam a carta representantes da Associação de Moradores do Bairro Nova Brasília, Associação de Moradores do Morro do Itararé, Associação de Moradores do Parque Alvorada e Cruzeiro, Centro Comunitário do Morro da Baiana, Centro Social Joaquim de Queiroz e União de Defesa e Assistência do Morro do Alemão. Mariza também recebeu “Declarações de Apoio” da Rotary Clube do Rio de Janeiro – Ramos e Associação Comercial e Industrial Leopoldinense.
Como aponta carta, o Complexo do Alemão, quando ganha sua Região Administrativa, surge composto por sete favelas (ao menos aquelas com associação de moradores), as seis que assinam a carta mais o Morro do Adeus, representado pela própria Mariza. Este, junto com a Baiana, não são contíguos às quatro favelas que compunham, inicialmente, o espaço do Complexo do Alemão, tal como definidos nos estudos e documentos oficiais analisados anteriormente; todavia, são próximos, separados do restante do Alemão, apenas pela Estrada do Itararé, o que pode ter contribuído para sua inserção na área da nova Região Administrativa, o que viria viabilizar, inclusive, a candidatura de Mariza.
Esta “Carta de Apoio” surge como o primeiro registro de uma articulação de organizações sociais em torno de uma nova escala de pertencimento.. Movimentos políticos posteriores na região do bairro, da década de 1990 em diante, como a luta pela implantação do Conselho de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA), o Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (CDLSM) ou o mais recente o Juntos Pelo Complexo do Alemão, parecem ter tido como embrião essa carta, na qual representantes de distintas associações dialogam em prol do Complexo do Alemão.
Da década de 1990 pra cá
Como pode ser visto no verbete “complexos” deste dicionário, um dos desdobramos da criação dessas novas Regiões Administrativas nas grandes áreas faveladas da cidade, foi a criação dos bairros homônimos: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Mas, também, a exclusão das favelas pertencentes aos espaços considerados como Complexos das obras do Programa Favela-Bairro, por serem tomadas como grandes favelas. As quais seriam contempladas, posteriormente, como Planos de Desenvolvimento Urbanísticos específicos, por conta de suas dimensões e complexidades. O PDU que foi desenvolvido para o Complexo do alemão foi base para o desenvolvimento do projeto que será financiado, no final da década de 2000, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Além disso, de modo geral, as favelas da cidade do Rio de Janeiro, bem como as periferias do país como um todo (TELLES, 2010), experimentaram o de novos ddois novos atores sociais: as ONG’s e os operadores do varejo dos entorpecentes ilícitos. O que afeta toda a cartografia política, econômica, social e cultural desses espaços.
A localização do varejo do narcotráfico nas favelas vai contribuir para uma nova chave de criminalização desses espaços na cidade, produzindo representações que caracterizavam as favelas como a grande fonte do “mal” e da insegurança para a cidade. Fenômeno, de modo algum novo, pois tal criminalização afeta as favelas desde seu surgimento na cidade, bem como atingia outras formas de moradia popular antes delas. O que pode ser visto como novidade, são os atores que alimentavam essa visão criminalizante.
Por outro lado, a tematização pública do problema da favela na cidade passou a ser dominada pelas leituras da violência e insegurança, não mais na chave da reivindicação de direitos (como em período imediatamente anterior, na década de 1980 e início da de 1990). O que pode ter impactado na abertura de mais espaço e reconhecimento para a fala de autoridades policiais, que ganham também, mais espaço nos governos do estado e, em decorrência disso, associado o uso da noção de complexos apenas a uma lógica militarizada. Mas, isso é só uma hipótese.
A entrada das ONGs nas periferias toma dois caminhos, por um lado, as grandes organizações não-locais que passaram a chegar com seus projetos sociais nessas regiões (muitas vezes com financiamento internacional). E, por outro, como uma nova forma de associativismo oferecida para as/os moradoras/es das favelas. O que, no caso do Complexo do Alemão, traz mais um elemento, o espacial, na complexificação de sua cartografia política. A referência territorial dessas novas organizações pode ser construída a partir da localização no “Complexo do Alemão, diferente das associações de moradores, que estão ligadas às comunidades que o compõem..
Assim, por um lado, a década de 1990 e de 2000 veem a luta pela criação do CONSA (Conselho de Saúde do Complexo do Alemão), do Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (outro referencial espacial possível para as reivindicações políticas), que viria a ser a base para o Comitê de Fiscalização das obras do PAC no Complexo do Alemão, agregando diversas organizações do bairro. E mais, as novas organizações e instituições que passam a se constituir nesse período tomam como referência de pertencimento político o Complexo do Alemão. Não apenas porque isso potencializa sua voz, mas porque esse pertencimento já era possível na década de 1990.
Outro exemplo, agora com relação às associações de moradores. Na época da realização das obras do PAC, foram realizadas reuniões com essas organizações para definir os limites das áreas representadas por cada uma delas. Os presidentes teriam levado as delimitações que eles reconheciam como correspondentes às suas associações. Quando foram sobrepostas ao mapa do bairro, alguns pontos chamaram a atenção dos participantes das reuniões. A área representada por algumas transcendiam os limites das delimitações do Complexo do Alemão, se estendendo por Inhaúma, por exemplo. Havia lugares que estavam num vácuo, pois não estavam contidos nos contornos delimitados por nenhuma das associações, e outros que eram situados na intersecção da ação de mais de uma delas. Esse fato também foi destacado no texto do Plano de Desenvolvimento Urbanístico do Complexo do Morro do Alemão (Prefeitura, 2006).
Essas indeterminações são menos fruto da incapacidade de organização das instituições locais e mais resultado do jogo político de delimitação das fronteiras. Esse jogo diz respeito aos limites do bairro e de cada uma de suas “comunidades”, mas também às múltiplas relações de pertencimento a estes territórios nas quais moradoras e moradores estão inseridos. Essas relações são recriadas a partir da história de cada morador(a) e se localizam na vida social do lugar e podem ser acionadas estrategicamente de acordo com suas necessidades.
É nessa malha de indeterminações que se delineiam cartografias políticas diversas, marcadas por alianças e disputas entre essas novas organizações, que falam a partir do complexo do Alemão, e as associações de moradores que fala em nome de cada uma de suas 13 comunidades ou favelas, entrecruzando essas escalas possíveis, de acordo com o contexto que se colocou. Em momentos de crise, essa atuação conjunta pode até produzir uma voz uníssona entre todas essas instituições.
Por exemplo, no momento da criação do movimento Juntos pelo Complexo do Alemão, em reposta aos estragos causados por conta de fortes chuvas ocorridas em Dezembro de 2013. Quando
"Um grupo formado por moradores, que atuam informal ou institucionalmente no Complexo, tomou a frente das ações que socorreram as famílias: identificaram moradias em risco, improvisaram abrigos e criaram uma grande mobilização para doações aos desabrigados. Constituiu-se daí o grupo Juntos pelo Complexo do Alemão, que dialogou com entidades e atores da sociedade civil e órgãos públicos, e operou especialmente através de canais informais de trocas e da rede social, em particular do facebook. O grupo Juntos pelo Complexo do Alemão foi uma dentre outras ações desenvolvidas no enfrentamento dos impactos do temporal, tendo se convertido no movimento de maior dimensão, e que tomou a frente das negociações com várias instâncias governamentais e não governamentais" (Calazans, Cunha e Pinheiro, 2016, pg. 3).
As chuvas tiveram efeitos localizados no interior do bairro, mas a mobilização se deu em torno do Complexo do Alemão, atraindo o apoio de algumas associações de moradores[7].
Em 2015, o Juntos pelo Complexo do Alemão foi acionado novamente, mediante o contexto de recrudescimento dos conflitos armados e violência policial nos primeiros meses do ano. Uma série de ações reivindicatórias, pedindo o fim das ações truculentas da polícia, foi realizada: passeatas, um encontro com agentes governamentais na sede da ONG Viva Rio, uma audiência pública na C.A.I.C Theófilo de Souza Pinto entre outras, de modo articulado entre os diversos atores sociais, pessoas e instituições; ONGs, coletivos e mesmo associações de moradores. Uma pauta unificada, construída a partir da discussão entre 27 instituições locais, incluindo as 13[8] associações de moradores, foi construída no período, com cinco prioridades: a Implantação da Universidade Federal; Habitação; Saneamento Ambiental; Parque da Serra da Misericórdia e Segurança Pública.
Uma aliança tão grande torna difícil manter a sua coesão por muito tempo, entretanto, em momentos pontuais e críticos, o Complexo do Alemão se torna a escala de pertencimento acionada, agregando suas diversas organizações locais, que abrem mão de suas diferenças políticas, para uma atuação conjunta. Mesmo que momentânea.
O bairro do Complexo do Alemão inicia 2010 sob a intervenção de duas grandes ações governamentais: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), cuja implantação se deu após dois anos da midiatizada ocupação militar do final de 2010. Ao longo dos últimos anos, o Complexo do Alemão passou, então, a ter outras entradas nos meios de comunicação em massa:s recebeu a visita de apresentadores assistencialistas, como Luciano Huck, virou cenário de filme e novela. Ao mesmo, empresas e aparelhos governamentais, em particular o SEBRAE, descobriram no bairro, uma economia aquecida com mais de cinco mil empreendimento, de acordo com o Censo Empresarial de 2010, realizado pelo governo do estado.
O que vai abrir, para espíritos empreendedores do bairro, possibilidades de negócios, a partir de seus pertencimentos ao Complexo do Alemão. Esse branding do Complexo do Alemão é apropriado localmente e alimenta uma série de novos empreendimentos locais que buscam associar novos serviços e produtos à brand (marca) Complexo do Alemão. Assim, vê-se surgir uma agência de turismo, a “Turismo no Alemão”; uma marca de roupas a “complexidade urbana” (desde 2009); e mesmo de uma cerveja própria, a “Complexo do Alemão”, que pode ser encontrada no Bistrô R&R. Isso, para não falar, por falta de espaço, da apropriação da brand Alemão por circuitos do terceiro setor, do empreendedorismo social e algumas celebridades.
Com esses exemplos, não se quer aqui reforçar a força do empreendedorismo local ou romantizar a vida econômica local, mas apontar que o arraigamento local da ideia do Complexo do Alemão, pode gerar apropriações múltiplas, seja como uma brand (marca), que aciona, inclusive, laços afetivos com moradoras e moradores com seus produtos; seja como um elemento aglutinador de forças em momentos de crise, como vimos na seção anterior. Os efeitos locais da noção de “complexo” de favelas, a partir da experiência de pesquisa no Complexo do Alemão, são variados; os exemplos aqui trazidos não tem a menor pretensão de esgotar essas possibilidades, mas contribuem bastante para a construção e apresentação do argumento.
Pertencer ao Complexo do Alemão
Resgatando a pergunta usada como exemplo no início do verbete: “você mora ou não no Complexo do Alemão?”, podemos encerrá-lo. A resposta vai ser simples, sim ou não. Contudo, as motivações por trás dessas respostas são múltiplas, e boa parte delas, estratégica. A existência dos complexos de favelas na cidade, não tem efeitos identitários, mas se colocam como novas escalas de pertencimento à qual, suas moradoras e seus moradores poderão acionar de acordo com suas necessidades. Podem omitir, mas também podem reafirmar esse pertencimento, seja por orgulho, ou por algum interesse econômico, como vimos.
Referências Bibliográficas
Matiolli, Thiago Oliveira Lima. O que o Complexo do Alemão nos conta sobre a cidade do Rio de Janeiro: poder e conhecimento no Rio de Janeiro no início dos anos 80. 2016. 234f. Tese de Doutorado em Ciências. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
TELLES, Vera S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argumentum, 2010.
- ↑ Para um visão mais detalhada desta questão, ver o verbete “https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Complexos_de_Favelas”, neste dicionário.
- ↑ Ou ainda “moro na Nova Brasília, no Complexo do Alemão em Ramos”.
- ↑ Para este aspecto ver verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Hist%C3%B3rico_fundi%C3%A1rio_do_Complexo_do_Alem%C3%A3o ou o trabalho de Couto e Rodrigues (2013).
- ↑ “O preço do barraco na Avenida Central – ponto chique do morro, onde existe acesso para automóveis graças a rua aberta em regime de mutirão – está em torno dos Cr$ 70 mil, quantia que cai até Cr$ 20 mil nas sinuosas vielas transversais, encharcadas por despejos de esgotos e sem calçamento. O Morro do Alemão mistura os tradicionais barracos de tábuas com casa de alvenaria dotadas de algum conforto: fossas, água encanada, luz, televisão e até aparelhos de ar condicionado” (Jornal do Brasil, 13 de Janeiro de 1980, pg. 20).
- ↑ “A área conhecida como o verdadeiro Morro do Alemão fica à direita da Rua Joaquim de Queirós, subindo até a crista do Morro (ver foto 2). Longitudinalmente, se estende até o largo do Graciano, onde tem início o Morro dos Mineiros (setor da Favela Morro do Alemão), que atinge a cota 160, terminando nas torres da Light” (SMDS, 1983, p. 384)
- ↑ Ver o verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Complexos_de_Favelas, neste dicionário.
- ↑ Para uma análise mais aprofundada do contexto, ver Calazans, Cunha e Pinheiro (2016) e o verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Coletivo_Juntos_pelo_Complexo_do_Alem%C3%A3o:_vou_te_exigir_o_meu_lugar, neste dicionário.
- ↑ O número de favelas que compõem o Complexo do Alemão pode ser tão indefinível, quanto seus limites físicos e número de moradores. Consideraremos o número de 13 aqui, pois faz referência ao número de associações de moradores existentes.