Desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 14h00min de 22 de dezembro de 2020 por Clara (discussão | contribs)

Autores: Giselle Florentino e Fransérgio Goulart  

Nota: Artigo retirado pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco de publicação realizada em 01 de setembro de 2020 no site da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.  

 

No Brasil o aprisionamento e a retirada forçosa de corpos de seus território perpassa toda a formação social e econômica brasileira desde o tempo de colonização até o atual período dito democrático. O sistema colonial deixou um rastro de extermínio de povos originários, escravização, pilhagem, expulsões, expropriações, doutrinação cristã, violência e espoliação por onde passou as expedições ‘civilizatórias’.  

Foram 12,5 milhões de africanos e africanas transportados para as Américas entre os séculos XVI ao XIX em quase 20 mil viagens, sendo 64,6% formados por homens e 35,4% por mulheres. Ademais, 2,5 milhões de pessoas morreram durante o translado. Sendo que 5,8 milhões de escravos foram enviados para o Brasil através de embarcações portuguesas, o Brasil foi o maior destino de escravos do tráfico negreiro nas Américas durante três séculos, 1560 a 1850. 

Ademais, o grau de violência na captura de negras e negros do continente africano e o processo de desumanização e, em seguida, a sua transformação em simples mercadorias dispostas no comércio ultramarino sendo refém dos anseios do capital, portanto, o violento nascimento do capitalismo está totalmente associado a escravidão do povo negro servindo como alavanca do processo de acumulação originária. (Wiliams, 2012)[1].

Por conseguinte, uma das principais determinantes do período escravagista foi o caráter violento na captura do povo africano viabilizado através de mecanismo de tortura, sequestro e dominação de corpos negros. 

Logo, a realização de desaparecimento forçados não origina-se apenas no período da ditadura empresarial-militar na América Latina, e sim, ao longo de todo brutal processo de colonização do continente, marcado pelo extermínio dos povos originários, subjugação dos povos africanos, pilhagem, espoliação e destruição de recursos naturais, entre outros processos dramáticos de humilhação e subordinação das colônias para inserção subordinada do países latino-americanos na fase industrial do capitalismo mundial.

Os métodos de desaparecimentos forçados de corpos foram utilizados constantemente como forma de terror do Estado em diferentes tempos históricos e sob distintas condições. Entretanto, ressalta-se que nos dramáticos anos de ditadura empresarial-militar na América Latina, o desaparecimento forçado de pessoas foi empregado como instrumento político de amplo cerceamento de liberdade e cassação de direitos políticos.

O caráter de privação de liberdade através da captura, sequestro, tortura, mutilação e outros métodos torpes de desumanização e controle de corpos durante a vigência do período ditatorial brasileiro deixaram marcas latentes na memória social e na atuação política da sociedade até os dias atuais.

Em que as frações de elite e organizações políticas (internas ou não ao Estado) que possuem o monopólio de poder econômico e político na sociedade utilizam-se de formas de captura, torturas e execuções para eliminar seus opositores políticos. Haja vista, pela primeira vez nos últimos 17 anos, o Brasil não ficou em 1° lugar no ranking dos países que mais assassinam defensoras e defensores de direitos humanos. Segundo, o relatório “Inimigos do Estado?” da Global Witness, o Brasil encontra-se na 4° posição do ranking de execuções de ativistas de direitos humanos, ficando atrás de países como Filipinas, Colômbia e Índia.

Por conseguinte, no Brasil não há uma tipificação para os crimes de desaparecimento forçados mesmo havendo inúmeras recomendações internacionais sobre a temática e principalmente sobre o grau de omissão do Estado sobre os incontáveis casos de desaparecimentos de corpos que ocorrem em áreas periféricas e faveladas. Os casos que deveriam ser tipificados como desaparecimento forçados são alocados de forma decadente e leviana na categoria de pessoas desaparecidas. 

Ao longo dos anos 2000, quase 87 mil pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro. No gráfico abaixo, podemos observar que com a implementação e expansão da UPP na área metropolitana do Rio de Janeiro, os casos de pessoas desaparecidas registraram uma trajetória pujante de crescimento. Em 2003 foram 4.800 casos de desaparecimentos, um aumento de 32% em relação a 2015, um total de 6.348 pessoas desaparecidas. Apenas em 2019, o Instituto de Segurança Pública registrou 2.807 casos de desaparecimento em todo o estado.

Gráfico 1 – Pessoas Desaparecidas e Autos de Resistência no Estado do Rio de Janeiro

Desaparecimentos Forçados Baixada.png

Fonte: Instituto de Segurança Pública; Elaboração Própria.*Dados até Julho de 2019.

 

A completa ausência da categorização sobre desaparecimentos forçados evidencia o nítido desinteresse político para investigações desses casos. Afinal, a maior parcela dos casos de desaparecimentos forçados envolvem agentes ou ex-agentes de segurança pública e/ ou pessoas da estrutura institucional do próprio Estado. 

Os casos de autos de resistências são emblemáticos em como a execução e descarte de vidas ocorre de forma cotidiana e sistemática em áreas periféricas, sendo esses territórios os que mais sofrem com as intensas violações cometidas pelo Estado. Ao observar a trajetória de autos de resistência em todo o Rio de Janeiro, destaca-se o crescimento exponencial dos registros de assassinatos cometidos por intervenção policial a partir da UPP e da expansão das áreas de controle das milícias. Em 2018, foram registrados 1534 vidas ceifadas devido aos autos de resistência, um aumento de 36% em relação ao ano anterior. O maior número de assassinatos cometidos por agentes do estado de toda a série histórica! 

Entretanto, a maior parcela das violações cometidas pelo Estado não chegam a ser registradas. Além da problemática das subnotificações,  as  metodologias  utilizadas  pelos  órgãos oficiais não são disponibilizadas para livre acesso e os procedimentos  metodológicos  são  alterados  de  acordo  com os interesses do Estado para esconder a ineficiência  da  política  de segurança  pública que não trata  o enfrentamento do racismo institucional como uma questão estrutural.  

Os  efeitos  da  radicalização  do  discurso  genocida  e altamente  militarizado  do  governo  atual  traz  à tona a necessidade de discutir o modelo retrógrado de segurança pública brasileiro que têm como alvo a juventude negra periférica, em que a “guerra às drogas”  resulta  em  encarceramento  em  massa  e legitimação  do  extermínio  dos  corpos  negros  que podem  ser  executáveis  a  qualquer  momento. 

De 2010  à  2018,  3.725  pessoas  foram  executadas  por intervenção de agentes do Estado na Baixada, esses dados  ratificam  o  racismo  estrutural  e  institucional no  processo  de  extermínio  do  povo  preto,  pobre  e periférico.  

Apenas  nos 5  meses  de  2019,  531  pessoas desapareceram, um  aumento  de  6,2%  em  relação ao  mesmo  período  de  2018.  Entretanto,  os  dados oficiais não representam a realidade brutal da Baixada,  considerando  a  recorrente  problemática da subnotificação nos casos de homicídios e desaparecimentos.

Aproximadamente 60% do total de pessoas desaparecidas  no  estado  ocorrem  na  Baixada  Fluminense.  A  metodologia  dos  dados  oficiais  não  engloba os casos de desaparecimentos forçados dificultando  ainda  mais  a  possibilidade  de  quantificar  o real número de pessoas vítimas da violência urbana que são executadas pelo Estado.

O perfil das vítimas, em geral, é o de jovens, pretos e pardos, com baixa escolaridade, do sexo masculino e moradores de favelas e periferias. O histórico de violência urbana na Baixada Fluminense é marcado pelo cotidiano desaparecimento de corpos, mortes que são ignoradas pelas estatísticas oficiais. As Mães de vítimas da violência do Estado recebem informações diárias de jovens que sofreram  esse tipo de violação. Na maioria dos casos, os desaparecimentos forçados ocorrem com o envolvimento da própria polícia militar, polícia civil e da milícia que atuam nos territórios.

Atualmente, as áreas com maior número de denúncias e depoimentos de desaparecimentos forçados são as  áreas  de  controle  de  milícias  que  de  forma  arbitrária  e  violenta  encarceram,  assassinam  e desaparecem com os corpos dessas pessoas. Os corpos são descartados em cemitérios clandestinos ou rios para impedir a identificação das vítimas. 

Há um processo de acirramento da disputa territorial entre frações de milícias na Baixada nos últimos meses. Conforme informações sistematizadas pela IDMJR,  em 2019 mais de 50 pessoas foram executadas e tiveram seus corpos torturados, mutilados e deixados à margem do Rio Guandu em Nova Iguaçu. Ocorreu também uma chacina em Belford Roxo, no bairro Vila Dagmar, em que 4 pessoas foram assassinadas e 16 pessoas feridas em um bar da região. E após uma investigação sobre milícias em Itaboraí, um cemitério clandestino foi encontrado sendo utilizado para descartar corpos no município.

Apesar de nosso país ter assinado em 1994 a Convenção Interamericana de Desaparecimentos Forçados de Pessoas, a prática hedionda persiste no Brasil, especialmente contra os mais pobres e negros. Falta um marco legal no Brasil. Projetos de leis sobre Desaparecimentos forçados já estiveram em discussão no Congresso Federal, mas nunca o Estado teve vontade política de votá-los e aprová-los, qual seria o motivo? 

O Brasil, como signatário da Convenção está comprometido a não praticar, nem permitir, nem tolerar o desaparecimento forçado de pessoas; responsabilizando os autores desses crimes a partir do seu sistema de justiça. Fica então a pergunta: o que o Estado brasileiro está fazendo efetivamente para reduzir os desaparecimentos forçados? A pergunta gera incômodo ao constatarmos o envolvimento do próprio Estado, por ação ou omissão. Diante do problema, realizar estudos e pesquisas sobre o tema é garantir a democracia brasileira a construção de uma memória coletiva que sirva para a luta por reivindicação de mudanças estruturais históricas.

Portanto, fica evidente a necessidade de garantir a criação da tipificação da categoria desaparecimento forçados para estimular a investigação e elucidação desses inúmeros casos de privação de liberdade. O Estado deve ser responsabilizado por esse tipo de violação e garantir a reparação econômica e psicossocial para as vítimas e familiares. 

     

  1. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Primeira edição: 1944/Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.