Pandemia nas favelas - entre carências e potências

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Originalmente produzido por Sonia Fleury e Palloma Menezes e publicado na revista Saúde em Debate (vol. 44, n. 4, Rio de Janeiro, 2020.).   INTRODUÇÃO   A pandemia da Covid-19 espalhou-se desde as classes médias altas para as populações de favelas e periferias. Embora tenha atingido diferentes classes sociais, as condições sociais e sanitárias absurdamente diferenciadas, além do descaso das políticas públicas, colocaram os moradores das favelas em uma situação de extrema vulnerabilidade.   Ficou patente que as condições de determinação social da saúde e da doença, associadas às políticas e acesso aos serviços de saúde, condicionam as possibilidades daqueles que sobreviverão e dos que morrerão, para além das condições pessoais; o que inclui condições como falta de saneamento, abastecimento irregular de água e coleta de lixo, precárias condições de urbanização e de moradia, aliadas às carências nutricionais e insegurança alimentar. A estas, somam-se as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, a exames e medicamentos, gerando uma situação de peregrinação que materializa o contradireito à saúde. Para Foucault1 , enquanto a ordem política cria laços jurídicos igualitários entre os cidadãos, as disciplinas operam como um contradireito, pois produzem assimetrias insuperáveis. Em estudo sobre a atenção hospitalar, Fleury (2011) identifica que:   A precariedade das condições de funcionamento [...] se torna um dos fatores fundamentais de concretização do contradireito à saúde. A banalização das injustiças provocadas pela inexistência das condições necessárias ao funcionamento em padrões de qualidade torna os profissionais e usuários reféns da precariedade, o que se expressa, no caso do usuário, no sofrimento das peregrinações de uma a outra unidade, e, no caso dos profissionais, na impossibilidade de atender à demanda com qualidade.    A ampliação do atendimento na Atenção Primária buscou tanto estabelecer um vínculo dos moradores com os serviços de saúde quanto reduzir a peregrinação por meio do encaminhamento dos pacientes. No entanto, no contexto da pandemia, a ausência de políticas, recursos e orientações específicas para o atendimento na Atenção Primária reduz a capacidade resolutiva desse nível de atenção, o que aumenta os riscos para os profissionais e para a população de favelas, estimada, no censo de 2010, em 22,03% dos moradores em 762 favelas na cidade do Rio de Janeiro.   As medidas de enfrentamento difundidas pelas autoridades sanitárias dirigiram-se às camadas mais ricas da população, recomendando isolamento social, trabalho em casa via internet, uso de álcool em gel e lavagem das mãos. O descaso dos governantes em relação às necessidades dos moradores das favelas foi evidenciado pela adoção de uma linha política equivocada, centrada no hospital, em detrimento do acionamento da rede de Atenção Primária e dos centros de referência da assistência social. Estes seriam fundamentais para identificar pessoas sintomáticas e seus contatos, referir pacientes a outros serviços do sistema de saúde, e fortalecer a prevenção, a identificando necessidades e as possibilidades de quarentena dentro e fora da favela.   Não foram tomadas medidas de políticas públicas para mitigar o impacto econômico devastador na economia das favelas – onde grande parte da população atua na informalidade ou em serviços domésticos – nem para obrigar as concessionárias a prestarem regulamente os serviços de abastecimento de água e coleta de lixo, tampouco foram tomadas providências para prover acesso gratuito à internet, condição necessária tanto para o trabalho dos agentes comunitários de saúde quanto para a preservação dos moradores em condições de isolamento. Diante dessa situação, organizações e lideranças existentes nas favelas se mobilizaram por meio de diferentes tipos de ação e distintas estratégias no enfrentamento da pandemia.   Há mais de um século, desde que as primeiras favelas começaram a se formar nos morros e encostas da cidade do Rio de Janeiro, a população que começou a habitar esses territórios teve que se auto-organizar não só para construir suas casas, mas também para conseguir ter acesso a serviços básicos como água, luz, saneamento, recolhimento do lixo, entre outros. Essa organização comunitária começou a ganhar força e destaque no debate público, principalmente, a partir da criação das primeiras associações de moradores de favelas, nos anos 1940, que ocorreu em um contexto de reação dos favelados às propostas de remoção das favelas para lugares distantes do centro da cidade. Como resume Rocha (2018).   [...] a relação das organizações coletivas de moradores de favelas com o poder público, os políticos, as organizações supralocais (Leeds & Leeds, 1978) e o próprio movimento mais amplo de favelados variou ao longo de sua história conforme as conjunturas políticas locais e nacionais, e também as dinâmicas internas e específicas de cada uma dessas localidades. A capacidade dessas associações de fazer exigências, sua autonomia de organização, sua cooperação com políticas estatais, o nível de repressão a suas atividades etc., sempre dependeu de uma correlação de forças que se deu em ambiente altamente desfavorável politicamente para esses grupos sociais. E, ainda assim, elas lograram continuar existindo. A esse movimento, que incluiu perdas e danos, Machado da Silva (2002) definiu como controle negociado.   Para Pandolfi e Grynspan (2002), o associativismo nas favelas variou ao longo das últimas décadas, sendo que as associações de moradores se afirmaram, a partir da década de 1990, como gestoras de recursos públicos, aumentando seu poder, mas redefinindo, assim, suas funções e provocando seu esvaziamento político. A introdução de agentes comunitários criou vínculos diretos entre o Estado e as comunidades, absorvendo nos quadros públicos inúmeras lideranças locais. Já a presença de agentes externos como Organizações Não Governamentais (ONG) também interferiu na dinâmica associativa das favelas, além da criação de novos vínculos a partir da contratação de profissionais daquelas organizações para execução de programas de políticas públicas. Esvaziadas em sua capacidade de mobilização, mas contando com importantes recursos, as associações passaram a ser disputadas também por traficantes e milicianos, sendo dominadas pelo que Zaluar (1998) chamou de cultura do medo.   A desidratação política das associações de moradores não representou, no entanto, a redução do associativismo nas favelas. A experiência aportada pelas ONG também modificou as formas de organização locais que se tornaram muito menos hierárquicas e mais plurais, dando origem ao fenômeno atual dos coletivos culturais, definidos por Aderaldo (2013) como associações, geralmente informais e sem estrutura hierárquica. Esses coletivos são constituídos por pessoas com certas afinidades, que se organizam para realizarem intervenções simultaneamente estéticas e políticas que visam ressignificar simbolicamente o sentido social dos locais ocupados na vida cultural e política da cidade.   Quando se fala de favelas, é preciso reconhecer a diversidade desse universo, tanto em termos de sua localização, trajetória política, organização comunitária, lideranças e recursos existentes em cada localidade; como sua capacidade de mobilizar apoios, fazer parcerias e montar coalizões. No entanto, um fenômeno comum nas últimas décadas tem sido identificado como a emergência do sujeito favelado ou periférico, como aponta D’Andrea (2013), designando o aumento da autoestima dos jovens moradores expresso por meio do funk, do hiphop, das batalhas de slams, museus e centros culturais, jornais e rádios, enfim, de uma enorme efervescência cultural na qual o pertencimento à população favelada é motivo de politização e crítica social, problematizando a questão da identidade racial, de classe e de gênero.   O enfrentamento da pandemia em cada favela tem variado enormemente dependendo das capacidades e recursos ali existentes, frutos da sociabilidade e de sua organização, bem como das articulações externas com parceiros/apoiadores, e do aprendizado propiciado pela circulação de informações e difusão de tecnologias sobre as diferentes iniciativas empregadas. Essa movimentação tem sido potencializada pelo acesso às tecnologias de informação, por meio das quais os atores políticos difundem informações sobre prevenção por intermédio de vídeos, áudios, cartilhas, fazem denúncias, pedidos de apoio, demonstram as formas de sanitização e de organização sanitária da população etc.   A existência de uma plataforma wiki (wikifavelas.com.br), responsável pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco e de outras iniciativas como o Rioonwhatch (https://rioonwatch.org.br), passou a ser canal para coleta e difusão dessas informações. O Dicionário de Favelas Marielle Franco foi utilizado nesta pesquisa como a fonte dos dados sobre a pandemia nas favelas do Rio de Janeiro, pois é uma plataforma virtual de acesso público para a produção e veiculação de conhecimentos sobre favelas e periferias. A iniciativa, sediada e financiada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), visa estimular e permitir a coleta e a construção coletiva do conhecimento existente sobre as favelas, por meio da articulação de uma rede de parceiros que se dedicam a esse tema, tanto nas universidades quanto nas instituições e coletivos existentes nesses territórios. Desde o início da pandemia, a partir da demanda dos moradores, foi criada na Wikifavelas, uma área para debater os impactos do coronavírus nas favelas e periferias brasileiras, permitindo o mapeamento e divulgação das ações que estavam ocorrendo nesses territórios.   Neste artigo, apresentamos como as favelas estão enfrentando a pandemia por meio das formas de ação durante a quarentena, na primeira parte, e dos tipos de organização, na segunda parte. Trata-se de pesquisa original, de caráter exploratório e restrita às favelas cariocas, com base na coleta e na organização das informações na seção Coronavírus nas Favelas do Dicionário de Favelas (wikifavelas.com.br/coronavirus), na qual podem ser encontradas maiores informações sobre cada uma das favelas aqui mencionadas. O porte, a localização e a trajetória histórica são variáveis que certamente deverão ser consideradas para o aprofundamento da análise sobre as diferentes formas de enfrentamento da pandemia, pois elas definem tanto as carências e as necessidades quanto as potências e os recursos que podem ser mobilizados internamente e externamente. No entanto, nosso objetivo no atual artigo é mais limitado, visto que se trata de apresentar as formas de ação e os tipos de organizações mobilizados pelas associações locais. Mesmo limitado, esse objetivo não é isento de um olhar analítico, sendo que a descrição envolve necessariamente uma categorização analítica.   Tilly(1977) identifica os grandes componentes da ação coletiva como sendo: interesses, organização, mobilização, oportunidade e ação coletiva propriamente dita. Ele define que:   […] collective action consists of people's acting together in pursuit of common interests. Collective action results from changing combinations of interests, organization, mobilization and opportunity.   Em nossa análise, o método utilizado foi a criação de categorias relativas a duas dimensões analíticas: as formas de ação coletiva e os tipos de organização. As formas de ação coletiva dizem respeito às diferentes ações vinculadas aos objetivos/interesses visados, já os tipos de organização tratam dos recursos associativos mobilizados para a ação, combinando interesses, estruturas organizativas existentes, mobilização de recursos e oportunidades.  

PARTE I – FORMAS DE AÇÃO

  Nesta primeira parte, serão tratadas as ações desenvolvidas nas favelas na garantia da subsistência, na comunicação comunitária, na prevenção, mapeamento e produção de dados sobre incidência e mortalidade, bem como as críticas ao poder público e a produção de planos comunitários de ação. Elas expressam como se concretizou o lema ‘Nós por Nós’, adotado pelas favelas diante da omissão do poder público.  

Garantia da subsistência

  A pandemia afetou a economia do País, aumentando a vulnerabilidade das populações das favelas e periferias brasileiras. Nesses territórios, concentram-se muitos trabalhadores informais que se viram impossibilitados de garantir a subsistência de suas famílias. Embora o auxílio emergencial tenha sido aprovado em março, depois que o Congresso triplicou o valor proposto pelo Executivo, houve dificuldades para efetuar o cadastramento, gerando enormes filas na Caixa Econômica Federal, aumentando, assim, o risco de contágio. Muitos também tiveram o auxílio negado, com isso, o governo se viu obrigado a montar um sistema para as pessoas nessa situação poderem contestar por telefone, pelo site ou nas agências dos Correios. Porém, os beneficiários só começaram a receber a primeira parcela do auxílio emergencial dois meses após o início da quarentena.   Se fossem esperar apenas pela ajuda do governo, muitos moradores de favelas e periferias do Brasil teriam morrido de fome. Para evitar que isso ocorresse, diversas associações de moradores, coletivos e grupos já existentes e estruturados nesses territórios começaram a se mobilizar para conseguir doações e ajudar os mais necessitados. Essa ação envolveu um trabalho de múltiplas dimensões:   a) organização interna para decidir como as doações poderiam ocorrer;   b) mapeamento de famílias que seriam beneficiadas;   c) acionamento das redes de contatos externos para solicitar;   d) organização para recebimento das doações e distribuição dos alimentos, mantendo medidas para evitar contaminação;   e) prestação de contas.  

Comunicação comunitária

  As medidas de garantia da subsistência, desde que começaram a ser estruturadas, estão intimamente relacionadas com ações de comunicação, pois os moradores tiveram que produzir materiais, como cartazes e vídeos, para mobilizar ajuda externa envolvendo doações individuais, de empresas e de ONG. Também precisaram ampliar a comunicação interna, com o objetivo de prevenir a disseminação do novo coronavírus, investindo fortemente em diferentes estratégias de comunicação comunitária para conseguir dialogar com mais eficiência com os moradores e explicar, em linguagem apropriada para cada grupo etário, as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a transmissão.   Enquanto alguns territórios já contavam com uma estrutura de comunicação comunitária (com jornalistas formados com larga experiência, jornais impressos e/ou on-line,rádio-poste, grupos de WhatsApp, páginas no Facebook, Instagram e Twitter, canais no YouTube), o que facilitou a organização e o alcance do trabalho de comunicação, outros precisaram realizar um esforço maior para estruturar canais de comunicação comunitária. A comunicação envolveu produção de materiais em três frentes de divulgação, cada uma delas utilizando o meio mais adequado, tais como: cartazes, vídeos, faixas, grafites, carros de som, cartilhas, alto-falantes, cards, lives etc.   a) externa, para pedidos de doação;   b) interna, para divulgação de informações;   c) via redes sociais.  

Prevenção

  As ações de prevenção buscaram passar instruções confiáveis sobre como os moradores devem agir durante a pandemia e a busca de condições materiais para que a população pudesse se prevenir de fato. Assim, lideranças e coletivos organizaram-se para:   a) distribuição de materiais de limpeza e máscaras;   b) criação de lavatórios nas favelas;   c) ações de sanitização;   d) criação de canais para colocar em contato moradores e médicos voluntários dispostos a fazer teleconsultas.   Uma das ações mais inovadoras foi a incorporação de tecnologia adequada para a sanitização das ruas, becos e vielas das favelas. Foi necessário recorrer a especialistas para dominar essa tecnologia e depois treinar brigadas para essas ações. Foram criadas parcerias entre favelas para intercâmbio de tecnologias, saberes e experiências. Moradores do Santa Marta, pioneiros na sanitização do espaço, passaram informações para outros territórios sobre como essa ação deveria ser realizada, treinando lideranças de outras favelas, como Chapéu Mangueira e Babilônia, para difundirem essa técnica.  

Mapeamentos e produção de dados sobre incidência e morbidade

  Desde o início da pandemia, muitas críticas foram feitas aos dados oficiais, notadamente à subnotificação, devido ao número reduzido de testes e deficiências na contabilização dos óbitos, em especial no caso das favelas. Em muitos estados, as informações sequer identificam os óbitos por raça, fato que impede que haja uma visão realista sobre o impacto diferencial na população.   Diversas favelas começaram a se organizar para fazer mapeamentos próprios, desenvolvendo sistemas de informação e monitoramento das moradias afetadas e da ocorrência de óbitos. Alguns exemplos (disponíveis em https://bit.ly/33f5hMg) são: Voz das Comunidades; CoronaNasFavelas – Frente Maré; Painel do Santa Marta; Painel do Alemão; Painel de Manguinhos; Painel de Monitoramento Covid-19 na Rocinha; Coronazap Borel; Painel Providência.   Os levantamentos são realizados por meio de visitas domiciliares, como na Providência; por WhatsApp, como acontece no Borel e no Santa Marta; ou ainda com mapeamentos mistos. No caso do Alemão e de Manguinhos, as unidades de saúde estão ajudando na produção e na publicidade desses dados. Usando técnicas de coleta e metodologias diferentes, o desafio atual tem sido a busca de unificação dos dados, promovida pela Rioonwatch, para que se possa produzir um mapeamento mais amplo e fidedigno dos casos de Covid-19 nas favelas.  

Críticas ao poder público e produção de planos de ação

  A mobilização nas favelas tem utilizado novas tecnologias e as redes de articulação previamente existentes, envolvendo a prevenção e o diagnóstico nesses locais, realizados a partir de pesquisa e mapeamentos feitos pelos moradores. Não contando com um plano de ação do poder público voltado para as favelas, os moradores buscam criar planos de ação a partir da realidade diagnosticada. Essas iniciativas não têm a capacidade de substituir o que deveria ser o papel constitucional do governo na proteção dos cidadãos nem apagam a crítica a essa omissão.   Postagens críticas nas redes sociais, cartas abertas, notas públicas vêm sendo divulgadas por vários movimentos, desde o início da pandemia, para denunciar racismo estrutural, violência estatal, além de falta de ação governamental no combate à pandemia. Vários grupos e coletivos de favelas, em parceria com universitários, pesquisadores e professores, têm elaborado planos de ação (disponíveis em https://bit.ly/3hZEl7D), indicando as responsabilidades das esferas de governo.   Um exemplo disso foi uma articulação feita entre lideranças do Complexo do Alemão, Cidade de Deus, Maré, Rocinha e Santa Marta, e pesquisadores da UFRJ, PUC-Rio e UERJ, em diálogo com a Fiocruz, que resultou em um plano de ações para o enfrentamento da Covid19 com foco nas especificidades das favelas. Em um esforço para reunir dados sobre os impactos da pandemia nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, essa mesma rede de instituições, mobilizada centralmente pelo Observatório das Metrópoles, criou um questionário on-line para levantamento tanto das iniciativas locais já em curso quanto das omissões do poder público. As informações coletadas servirão de base para ações de incidência política e de defesa dos direitos humanos, em parceria com o Dicionário de Favelas Marielle Franco e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.   O poder público, além de não ter um plano específico para as favelas, em muitos casos, acaba atrapalhando o controle da disseminação do vírus e o apoio à subsistência que vêm sendo feitos pelos próprios moradores nos territórios. Ações de distribuição de alimentos tiveram que ser interrompidas quando da realização de operações policiais nas favelas com ocorrência de tiroteios. Ações de sanitização tiveram que ser paralisadas devido à recorrente falta de água que interdita aos moradores o simples direito de lavar as mãos.   As denúncias dos moradores ganharam ressonância no debate público com conquistas importantes, como ação da Defensoria Pública da União para garantir assistência em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, aprovada pelo STF, apesar da posição contrária do governo estadual, o que incentiva a transgressão da norma por parte dos policiais. Mães de vítimas da violência de Estado e participantes de diversos movimentos atuaram como amicus curie na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, solicitando a interrupção das operações policiais nas favelas durante a pandemia.  

PARTE II – TIPOS DE ORGANIZAÇÃO

  As ações de combate à pandemia vêm sendo articuladas por lideranças e grupos bastante heterogêneos. Vários deles já tinham experiências organizativas anteriores à pandemia e se articularam em associações, coletivos ou ONG. Contudo, outras experiências de organização local resultaram das urgências geradas pelos múltiplos impactos que a pandemia causou na vida das famílias nas favelas. Abordaremos aqui algumas diferenças de articulação, formalização, abrangência e visibilidade, assim como de experiência prévia dessas organizações comunitárias, apresentando casos em um contínuo que varia de acordo com formas de organização, como: a) frentes e gabinetes de crise (bastante estruturados e articulados para combate à pandemia); ações múltiplas, mas não unificadas no mesmo território; c) ações pontuais e menos institucionalizadas. O grau de institucionalização e articulação pode ser tomado como um indicador importante do capital social, envolvendo relações de confiança e recursos acumulados nas organizações comunitárias. O grau de institucionalização não deve ser confundido com o nível de politização. Qualquer mobilização tem forte potencial político, seja ela oriunda de um sujeito político organizado anteriormente à ação ou de um contexto de urgência que requer uma ação na qual o ator se forma como sujeito político. Ou seja, o sujeito político se constitui na teia de relações que mobiliza com seu agir.   Trataremos como o tipo mais institucionalizado a organização de frentes e gabinetes de crise, abordando os casos do Complexo da Maré, do Complexo do Alemão, da Cidade de Deus, da Providência e da Vila Kennedy. Um tipo de institucionalização mediana promoveu ações múltiplas, mas não unificadas em uma mesma favela, como ocorre em algumas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro – como Rocinha, Vidigal, Santa Marta, Chapéu Mangueira e Babilônia – e outras da Zona Norte – como Complexo da Penha, Manguinhos e Mangueira. Encontramos um terceiro tipo, que engloba ações mais pontuais e menos institucionalizadas, em que localizamos, por exemplo, Acari. Sendo uma tipologia, não se trata nem de uma amostra nem tem pretensões de englobar a totalidade de tipos de ação, apenas ilustrar distintas formas de organização que estão acontecendo, de acordo com seu nível de institucionalidade.  

Criação de frentes e gabinetes de crise

  Devido à grande capacidade de mobilização dos moradores, Paraisópolis chamou a atenção da mídia, que noticiava que nessa favela havia melhor controle da pandemia de Covid19 do que em outros bairros paulistanos. No entanto, outras regiões pobres da capital eram as mais castigadas pela doença, mostrando a enorme heterogeneidade entre periferias, em termos de recursos materiais, organizativos e políticos. No Rio de Janeiro, algumas favelas, logo na primeira semana de quarentena, começaram a organizar frentes de combate ao coronavírus e gabinetes de crise, ações que também ganharam grande projeção midiática, amplo apoio da sociedade e de diversas empresas. Esses são os casos, por exemplo, da Maré, do Alemão, da Cidade de Deus, da Providência e da Vila Kennedy.  

Complexo da Maré

  Praticamente na primeira semana de quarentena, comunicadores comunitários começaram a se organizar com o objetivo de fomentar ações que levassem informação aos moradores das 16 favelas da Maré. Pouco a pouco, a iniciativa foi ganhando força, e várias instituições começaram a compor a ‘Frente de Mobilização da Maré’. Algumas dessas instituições são: Maré 0800, Maré Vive, AmareVê, Casulo, Roça Rio, Ceasm, Museu da Maré, ONG Pra Elas, Rato Preto Studio, Agência LABirinto, Ativa Breakers Crew, Podcast Renegadus, CEC Orosina Vieira, Yoga na Maré, Roda Cultural do Parque União.   O objetivo da Frente – que reúne mais de 100 moradores – é, por um lado, fomentar ações de comunicação, difundindo informações sobre a importância de se proteger, de garantir hábitos de higiene e de respeitar o isolamento social na favela; por outro, a organização visa distribuir doações de produtos de limpeza e alimentos para moradores.   As ações do grupo são diversificadas e incluem iniciativas como produção de faixas, cartazes, grafites, panfletos que foram espalhados pela favela, além de um ‘Manual de como não vacilar em tempos de coronavírus’. Jornalistas e comunicadores populares locais têm participado constantemente de lives, podcasts, com posts informativos nas redes sociais. A Frente conta com um site (https://www.frentemare.com), no qual doações para o projeto podem ser feitas por transferência bancária para pessoa física ou jurídica, assim como transferência internacional, além de uma vaquinha on-line e a possibilidade de transferência por PicPay.   Com grande capacidade de articulação, o grupo tem estabelecido parcerias com lideranças, comerciantes da favela e grupos internos do Complexo, bem como com coletivos de outras favelas, instituições de direitos humanos e de pesquisa, como a Fiocruz. Gizele Martins, liderança na comunicação da Frente de Mobilização da Maré, assinalou: “a população vem sobrevivendo, e o Estado só vem à base de tiro, o que atrapalha, inclusive, as distribuições de cesta básicas”.  

Complexo do Alemão

  O Complexo do Alemão tem uma longa história de organização comunitária. Além das várias associações de moradores e das ONG, muitos coletivos foram criados nas últimas décadas em suas diversas favelas, sendo um deles o ‘Coletivo Juntos pelo Complexo do Alemão’, que existe desde 2013 e, atualmente, reúne o Coletivo Papo Reto, Voz das Comunidades, MEAA – Mulheres em Ação do Alemão, Educap, Solta a Voz Morador, Ocupa Alemão e o Instituto Raízes em Movimento. Esses grupos se articularam, logo no início da pandemia, para lançar uma carta aberta na qual ressaltam a importância de investir na comunicação comunitária: “precisamos chegar com informações que sejam assimiladas e isso só entendemos ser possível com comunicações específicas, feita por quem conhece as dinâmicas locais, com linguagens que possam alcançar públicos específicos dentro das favelas”. Alguns exemplos dos recursos usados pelo grupo são a produção de jornal (Fala Favela), de material comunicativo e lúdico para prevenção, de grafite com número de casos no Complexo e no Brasil, de cartazes, faixas, mensagens de carro de som e divulgação de posts nas redes sociais. O grupo conta com uma página no Facebook na qual, além de fotos e vídeos de ações realizadas, como a doação de mantimentos para famílias que foram mapeadas em um cadastro social, há a prestação de contas atualizada.   Na página do Juntos pelo Alemão no Facebook, são divulgadas outras ações de prevenção realizadas na favela, acompanhadas pelo Coletivo, como: o trabalho da Cedae de sanitização local; a iniciativa de médicos que fazem teleatendimento gratuito com consultas via WhatsApp; e o trabalho da equipe da Clínica da Família Zilda Arns que construiu o Painel de Monitoramento Covid-19 com dados obtidos dos atendimentos e monitoramento realizados na unidade.   As doações podem ser feitas por depósitos na conta de cada uma das instituições envolvidas, por meio de vaquinha coletiva ou ainda diretamente para o Raízes em Movimento pelo site da Benfeitoria em um sistema de ‘match-funding’, descrito como ‘uma vaquinha turbinada: uma nova modalidade de fomento, que mistura o financiamento coletivo (ou crowdfunding) com aporte de parceiros, que multiplicam a arrecadação’.   Além de participarem do Juntos pelo Alemão, o Coletivo Papo Reto, Mulheres em Ação no Alemão e Voz da Comunidade se juntaram e formaram o ‘Gabinete de Crise do Alemão’ com duas frentes de trabalho. A primeira voltada para dentro da favela com o objetivo de melhorar a comunicação e a conscientização para evitar a proliferação do vírus. A segunda frente é externa.   Nas redes sociais, membros do grupo deixam claro que o Gabinete não tem relação com ações governamentais e que, por isso, precisa de ajuda da população: “com todas as faltas do Estado, nosso Gabinete tem trabalhado muito melhor que muita instituição política. Isso é um fato”. A partir da projeção que jovens lideranças conseguiram alcançar nas redes sociais e na grande mídia, o Gabinete estabeleceu parcerias com marcas como Havaianas e Instituto Unibanco. Nas prestações de contas, os números impressionam, com doações volumosas de produtos de higiene, água, sandálias, leite em pó etc., atingindo mais de 42 mil pessoas.  

Cidade de Deus

  Reunindo mais de 50 ativistas e organizações do território, a ‘Frente CDD Contra a Covid- 19’ tem articulado ações de solidariedade e comunicação comunitária para combater a expansão da pandemia na favela. Vale lembrar que a Cidade de Deus é a maior favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro; e, desde março, já tinha um caso de Covid-19 confirmado.   Considerando a dificuldade da população da favela de seguir as orientações de quarentena, tendo que sair de casa para garantir a subsistência, lideranças e instituições se organizaram na Frente para arrecadar e distribuir itens de limpeza, higiene pessoal, alimentação e água para os grupos sociais mais carentes. A Frente tem também se articulado para cobrar que o governo estadual cumpra o seu papel garantindo o fornecimento de água, que não ocorre regularmente na favela, em áreas como o Brejo, sem água encanada.   É possível colaborar com a Frente por meio de uma vaquinha on-line. No site, em que as contribuições podem ser feitas, informa-se que ‘a Frente CDD já ajudou mais de 8 mil famílias (cerca de 25 mil pessoas) com entrega de cesta básicas e materiais de limpeza. Também circularam panfletos, carros de som, faixas e materiais nas redes tirando dúvidas sobre a Covid-19, suas formas de contágio e seus principais sintomas’.  

Providência

  Na região central da cidade, moradores da Zona Portuária do Rio de Janeiro e ativistas do Morro da Providência criaram o ‘SOS Providência/Região Portuária’. Trata-se de um comitê de emergência, cujo foco de ação é a distribuição de cestas; a produção de máscaras; a instalação de bicas públicas, a criação de tutoriais de auxílio (guia com um passo a passo para realizar cadastro no auxílio emergencial do governo ou facilitar o processo em caso de morte domiciliar); além da formação de ‘Morador-Monitor’ que tem as funções de mapear a região, identificar as necessidades da população, reunir estatísticas, organizar a distribuição de cestas básicas, itens de limpeza e de proteção, além de conscientizar moradores.   O site do coletivo – que envolve instituições locais, como Casa Amarela, Galeria Providência, Providência Turismo, e Rio Memória Ação – informa sobre as ações realizadas e detalha as formas de ajuda: doações podem ser feitas por um site no qual são indicados os valores gastos por cesta básica, cesta de orgânicos, máscara, bica instalada. As lideranças que compõem o SOS Providência têm grande capacidade de articulação externa, o que lhes permite parcerias para, por exemplo, a ação de sanitização em áreas específicas e mais vulneráveis do território da Providência e adjacências realizada pelo grupo Sejamos Base de Santa Cruz, em conjunto com o bloco de carnaval Fala meu Louro. A partir da pesquisa dos MoradoresMonitores, o coletivo identificou as áreas mais críticas, assim, foram convocados os parceiros externos para realizar a sanitização dessas partes da favela.  

Vila Kennedy

  Logo no início da pandemia, foi criado o ‘Gabinete de Crise da Vila Kennedy’, no qual participam lideranças comunitárias, profissionais ligados à saúde pública, agentes comunitários, assistentes sociais, articuladores culturais, pastores, professores, esportistas, comerciantes, comunicadores, influenciadores digitais entre outros. O objetivo do coletivo é combater o avanço da Covid-19 na favela por meio de estratégias, tais como: circulação de carro de som com informações de prevenção; produção de faixas de alerta instaladas em pontos estratégicos da favela; e distribuição de alimentos e materiais de limpeza. Essas ações visam ao convencimento da população local a respeitar a quarentena; o cuidado especial em relação aos idosos; influenciar jovens a se engajarem na campanha; monitoramento de abastecimento de água etc. Embora o Gabinete não possua site próprio e tenha menos visibilidade nas redes sociais que outras favelas, o grupo já conseguiu diversas parcerias internas e externas – como com a Escola de Samba Unidos da Vila Kennedy – que possibilitaram a distribuição de centenas de cestas básicas desde o início da pandemia, doadas por uma grande rede de supermercados.  

Ações múltiplas não unificadas

  Algumas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro – como Rocinha, Vidigal, Santa Marta, Chapéu Mangueira e Babilônia – e outras da Zona Norte – como Complexo da Penha, Manguinhos e Mangueira –, embora não tenha constituído um comitê, uma frente ou um gabinete para centralizar a atuação contra o coronavírus, reúnem múltiplas e diversas ações no combate local à pandemia. Não teremos espaço aqui para detalhar como essas organizações estão atuando em cada uma dessas favelas, mas seguem alguns exemplos.  

Santa Marta

  Na favela Santa Marta, situada em Botafogo, três grupos têm organizado atividades complementares no combate à pandemia. A Associação de Moradores organiza a doação de cestas básicas para população. O Grupo Eco, uma tradicional instituição com atuação na área educacional e cultural, assumiu o compromisso de ajudar mensalmente 50 famílias com alimentos e, também, com valor em espécie para compra de gás, além de postar material informativo em suas redes sociais e ter criado uma rede de teleatendimento médico.   Um terceiro grupo de moradores tem atuado em duas outras frentes na favela: a sanitização do morro e a produção de dados sobre impactos da pandemia na favela. Este último, organizado pelos irmãos Thiago e Tandy Firmino, por meio do Grupo Alerta Santa Marta, já conta com mais de 700 moradores. Com apoio de pesquisadores parceiros, eles montaram um questionário que está sendo aplicado semanalmente via Google Forms no grupo de WhatsApp para os moradores responderem se estão com sintomas ou se já foram contaminados com Covid-19, além de descreverem como está o fornecimento dos serviços de água e luz durante a pandemia na favela.   O trabalho de higienização das ruas e vielas do morro ganhou bastante repercussão na mídia nacional e internacional. Thiago Firmino disse que começou a idealizar a ação quando assistiu a um vídeo sobre a sanitização nas ruas da China. Pesquisou sobre o processo, consultando médicos e químicos, e, ao mesmo tempo, acionou seus contatos em diversas partes do Brasil e do mundo, oriundos de seu trabalho como guia de turismo na favela. Thiago começou usando água sanitária e depois conseguiu doações, por meio de uma vaquinha online, para comprar quaternário de amônio, produto considerado mais eficiente por especialista no processo de sanitização.   Ele começou a compartilhar sua experiência com moradores de outras favelas sobre o processo de sanitização que ocorre semanalmente com voluntários internos e externos à favela, ensinando quais equipamentos e produtos deveriam ser usados, assim como a técnica para realizar a ação. Favelas como Chapéu Mangueira, Cantagalo e Babilônia também passaram a sanitizar seus territórios, e, a partir desse intercâmbio resolveram construir a Rede Autônoma de Sanitizadores de Favela que fará ações conjuntas incorporando equipamentos, saberes e tecnologias.  

Rocinha

  Na Rocinha, além de diversas associações de moradores e das ONG, o coletivo ‘A Rocinha Resiste’ está atuando diretamente no combate ao coronavírus. Trata-se de uma rede mobilizadora, formada por pessoas ligadas à Rocinha, que reúne saberes múltiplos. Sua proposta é, em diálogo aberto com outras favelas, debater ideias, criar conceitos e concretizar ações para a transformação da realidade desse território, levando em consideração seus problemas históricos e emergentes. Em diálogo com atores locais e com a prefeitura, o coletivo realizou um cadastro, aplicado por voluntários, por meio de formulário digital, com o objetivo de entender melhor como a pandemia impacta a favela. Esse levantamento orientou a distribuição de alimentos e materiais de higiene coletados.   A partir dos dados levantados, o coletivo passou a apoiar as famílias em situação de pobreza extrema e que se enquadravam nos grupos de risco, mapeadas pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e pela equipe de saúde do Centro Municipal de Saúde (CMS) Dr. Albert Sabin, que acompanham o trabalho do coletivo durante todo o processo. O objetivo do grupo tem sido comprar e distribuir alimentos, água, produtos de limpeza e higiene, e montar kits para as famílias mapeadas. Ademais, auxilia orientando os moradores para se precaverem, conforme as orientações e procedimentos de saúde. O grupo está recolhendo doações por meio de uma vaquinha virtual, e em sua página são detalhados os custos do projeto, por kit e por família.   A Rocinha Resiste tem parceria com uma série de outros grupos de favelas e de ONG externas. Recebe, por exemplo, doações da #AÇÃO342 que está arrecadando auxílio financeiro para os coletivos Redes da Maré, Voz das Comunidades, Coletivo Papo Reto e A Rocinha Resiste. Essa ação já conseguiu receber mais de R$ 400 mil e conta com apoio de muitos artistas e celebridades que divulgam os projetos em suas redes sociais. O coletivo da Rocinha conta ainda com a ajuda de voluntários que podem se cadastrar por meio de um formulário para auxiliar nas entregas das cestas básicas e kits de limpeza.   Outra importante organização atuante na Rocinha é o Jornal Fala Roça, surgido da iniciativa de um grupo de jovens que participaram de atividades da Agência de Redes Para Juventude. Posteriormente, o grupo passou a produzir reportagens para a versão digital e vídeos. Atualmente, o Fala Roça tem uma parte de seu site reservado só para reportagens sobre impactos do coronavírus na favela, além de divulgar o Painel Coronavírus Rocinha com gráficos que mostram a evolução diária da pandemia na favela, segundo dados do Painel Rio Covid-19 fornecidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro.   Também, a Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza com a Clínica da Família Ronaldo Lamare e o CMS Albert Sabin criaram outro painel de Casos Suspeitos de síndrome respiratória aguda. Essa experiência resulta de uma troca de tecnologias entre profissionais e moradores de diferentes favelas. O Painel da Rocinha, inspirado em iniciativas semelhantes feitas no Complexo do Alemão e em Manguinhos, tem como objetivo tornar públicos os dados de vigilância feitos por profissionais de saúde. Em resumo, a ideia é: ‘compartilhar informações específicas da situação da Rocinha de forma mais detalhada e em tempo real, com o objetivo de empoderar a população com uma noção realista dos dados e reforçar a importância de estratégias de isolamento social’.  

Ações pontuais

  Enquanto algumas favelas cariocas concentram grande número de iniciativas, em outras, as ações são mais pontuais, protagonizadas seja por grupos preexistentes, seja por recém-formados. Essas ações não ganham tanta visibilidade na grande mídia nem nas redes sociais, mas envolvem um enorme esforço de lideranças e moradores locais, que se viram impelidos a se organizar nesse momento de crise. Essa é a realidade de inúmeras favelas que poderíamos aqui incluir, mas nos limitaremos a descrever apenas o caso de Acari. Outras iniciativas semelhantes podem ser encontradas no Wikifavelas (https://bit.ly/2XaqdjV).  

Acari

  O ‘Fala Akari’ é um coletivo de militantes defensores de direitos da Favela de Acari que se organizaram para realizar, disseminar e divulgar ações culturais e educacionais, e denunciar todas as opressões cometidas pelo Estado no território. Durante a pandemia, o coletivo está se mobilizando para arrecadar doações de alimentos e produzir faixas alertando a população sobre a Covid-19, em uma parceria com a Justiça Global. Além de tornar públicas as ações realizadas na favela e prestar contas das doações recebidas, a página do coletivo no Facebook denuncia a atuação estatal na favela, especialmente a violência policial. Buba Aguiar, uma das integrantes do coletivo Fala Akari, destaca que é necessário fazer essas críticas não só no mundo virtual, mas também ir às ruas. Segundo ela, especialmente, diante do aumento expressivo das mortes em operações policiais:   Ficou incabível continuarmos fazendo ações sociais somente nos nossos territórios, tivemos de tomar as ruas [...]. Inaceitável que em meio a uma pandemia a gente tenha que ir às ruas protestar por mortes em decorrência de ações policiais […]. Beira ao surreal.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

  Observando as diferentes formas de ação e os tipos de organização acionados pelas lideranças nas favelas para o enfrentamento da pandemia, a primeira coisa que chama atenção é a amplitude do repertório de ações coletivas mobilizado. A urgência apresentada pela enorme carência das famílias que perderam suas fontes de renda levou à busca de apoios externos para suprir as necessidades mais prementes de alimentação e higiene. Porém, como demonstramos, a mobilização de apoios externos implicou um conjunto diversificado de ações de organização interna, que vai da divulgação, mapeamento das necessidades, estruturação da distribuição à prestação de contas. Por outro lado, observa-se que essas ações foram coetâneas de diversas outras, que envolveram a apropriação de conhecimentos sobre a epidemia e dos meios para sua melhor divulgação aos moradores. Chama atenção a produção de conhecimentos sobre a própria favela, com o desenvolvimento de mapeamentos das famílias em situação de maior vulnerabilidade, bem como sobre a técnica correta de sanitização; e, por fim, a criação de painéis de incidência de morbimortalidade no território.   Todas essas ações são também políticas, pois requerem a construção de estratégias de ação e formação de consensos: mobilizando recursos, construindo alianças, formando novas lideranças, rompendo as barreiras seletivas do conhecimento. Porém, algumas delas estão mais diretamente voltadas para a ação política, seja no campo da denúncia, da judicialização ou da construção de planos de ação. Em todas elas, a defesa do direito à vida e à assistência à saúde conformam o conteúdo e a forma da ação política.   As formas de organização e os tipos de ação desenvolvidos mostraram que, mesmo em uma situação de crise sanitária e econômica, existem no território potencialidades e capacidades que podem ser mobilizadas pelo conjunto das relações sociais que ali se desenvolvem. Essa potência ficou patente na gestão da crise nos territórios das favelas, apesar da omissão do poder público. Também chama atenção a solidariedade entre as favelas, propiciando não só a distribuição dos recursos arrecadados como também a transmissão de conhecimentos.   Os moradores contaram com o apoio voluntário de indivíduos, de organizações, de empresas, e, principalmente, de profissionais oriundos de Universidades e de Institutos de Pesquisas, que abraçaram suas lutas, ampliaram suas ações e levantaram possibilidades de solução. Também foram apoiados pelas unidades de saúde e de assistência social localizadas nos territórios das favelas, em especial na produção de painéis de incidência da Covid-19. A mediação entre academia e favela, possibilitada pela disponibilização de tecnologias de informação, como o Dicionário de Favelas Marielle Franco, mostrou-se um instrumento fundamental para coleta, organização, difusão, análise e produção de conhecimentos sobre as favelas.   Se o governo se dispusesse a ouvir o que tem sido dito e a observar o que vem sendo feito, teríamos muito o que aprender com as organizações locais. Elas estão dando uma aula de organização, fruto de associações e mobilizações já existentes, mas também da urgência em preservar vidas com dignidade. As carências sempre existiram nos territórios das favelas, mas, quando a necessidade se transforma em demanda e a demanda aciona a ação coletiva, já estamos falando de potências.   Alguns cunharam, recentemente, o termo ‘invisíveis’ para designar a população das favelas e periferias, o que só demonstra o arraigado preconceito e a desigualdade estrutural que organizam as relações sociais brasileiras. Ao contrário, o trabalho que apresentamos mostra em detalhes a enorme potência e a riqueza de experiências de organização, inovação, politização, solidariedade e luta pelo direito à saúde em uma sociedade mais justa.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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