Relíquias da Provi

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O termo "Relíquia" transcende seu significado religioso e artístico para, no contexto favelado, valorizar indivíduos e suas contribuições culturais. "Relíquia da Providência" simboliza a resistência e continuidade da identidade local, no contexto do Morro da Providência, situado na região central do município do Rio de Janeiro, reconhecendo figuras históricas e contemporâneas que moldam a cultura e a memória da comunidade.

Autor: Hugo Oliveira

Sobre[editar | editar código-fonte]

Relíquia: O Significado e a Relevância no Contexto Favelado[editar | editar código-fonte]

O termo "Relíquia", tradicionalmente associado a tradições religiosas e artísticas, tem se expandido para incluir significados que transcendem o sagrado e abarcam também a dimensão humana. Historicamente, relíquias eram partes do corpo de santos ou objetos que pertenciam a eles, simbolizando a continuidade entre o corpo vivo e o morto, com uma forte carga de devoção e respeito. No entanto, na contemporaneidade, essa palavra ganha novas camadas de significado, especialmente nas culturas periféricas e faveladas.

No contexto da favela, o termo relíquia assume um significado potente, ao referir-se a pessoas que, através de suas ações e contribuições, deixaram uma marca indelével na comunidade. Essas pessoas, muitas vezes marginalizadas ou vistas de forma pejorativa, são reconhecidas como portadoras de uma herança cultural e social valiosa, transformando-se em figuras de reverência e respeito.

A relíquia, nesse sentido, não é apenas um objeto ou uma memória estática, mas um símbolo vivo da resistência, da luta e da identidade de um povo. Assim como as relíquias religiosas carregam a história e o poder de transformação espiritual, as "Relíquias da Providência" carregam a história de vida, luta e superação dos moradores da favela, simbolizando a continuidade de uma cultura que resiste e re-existe.

O uso do termo pelos jovens, especialmente no universo do funk carioca e entre pichadores, ilustra essa transformação. O termo, antes restrito a um contexto religioso, é agora uma forma de reconhecer e valorizar aqueles que, no passado, pavimentaram o caminho para as novas gerações. Esses indivíduos, conhecidos como "Relíquias", são os guardiões de uma memória coletiva e de uma cultura rica em significados e valores.

Além disso, o termo também é utilizado para distinguir os moradores antigos das favelas, aqueles que, com sua história e experiência, construíram e continuam a construir a identidade do lugar. Esse reconhecimento é tanto interno, vindo da própria comunidade, quanto externo, de quem admira e respeita a cultura local.

Essa nova apropriação do termo reflete uma linguagem viva e em constante transformação, como bem pontuam Bakhtin e Volochinov ao afirmar que a língua não é estática, mas sim dinâmica e carregada de inovações linguísticas. O termo "Relíquia" é, assim, uma ponte entre o passado e o presente, entre o sagrado e o profano, entre o objeto e o sujeito, representando uma rica tessitura de significados que dialogam com a realidade contemporânea.

Nesse contexto, "Relíquia da Providência" ganha ainda mais força, tornando-se um símbolo da resistência e da continuidade de uma cultura que, apesar das adversidades, mantém-se viva e pulsante. É a palavra que, ao mesmo tempo, reconhece e afirma a importância daqueles que construíram e constroem a história do lugar, gerando uma identificação e um respeito mútuo que alimenta a autoestima e o orgulho de ser parte dessa comunidade.

Relíquias da Providência[editar | editar código-fonte]

Machado de Assis[editar | editar código-fonte]

Machado de Assis, celebrado como um dos maiores escritores da literatura brasileira, é também considerado uma "relíquia" do Morro da Providência. Embora tenha vivido em diferentes partes do Rio de Janeiro, sua história está intimamente ligada à região central e portuária, próxima ao morro, que simboliza a resistência e a riqueza cultural afro-brasileira. Filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, Machado de Assis superou as adversidades de uma origem humilde para se tornar um ícone literário, refletindo em sua obra as complexidades sociais e culturais do Brasil. Sua trajetória personifica a resiliência e a criatividade do povo da Providência, fazendo dele uma relíquia não apenas da literatura, mas também da identidade histórica desse território.

Cocheiro Manoel Alves[editar | editar código-fonte]

Um cocheiro negro livre de grande prestígio na Corte Imperial, é uma figura emblemática na história do Morro da Providência. Nos primeiros meses de 1875, aos 28 anos, ele se destacou por conduzir “o tílburi mais elegante da cidade” e se tornou o preferido da elite da época. Enamorado, decidiu constituir família e procurou uma moradia que unisse dignidade e acessibilidade financeira. Assim, mudou-se para o alto do Morro da Providência, onde encontrou um lugar seguro e gratuito para construir seu lar, em meio a uma comunidade de trabalhadores como ele. Manoel Alves, com sua trajetória de vida, simboliza a resiliência e o espírito de sobrevivência que marcaram os primeiros habitantes do Morro da Providência, tornando-se uma verdadeira relíquia desse território. Sua história, de luta e adaptação, ecoa a experiência de muitos que encontraram no morro um refúgio e uma oportunidade de vida digna em uma cidade marcada pela desigualdade.

Honorata[editar | editar código-fonte]

Honorata é uma figura icônica na história do Morro da Providência, representando a luta e a conquista da liberdade dos afrodescendentes. Em 1876, após obter sua alforria por meio de uma relação de dependência com seu antigo senhor, Honorata se estabeleceu na parte alta do morro, com a ajuda dele. Sua chegada marcou a intensificação da presença negra na comunidade, à medida que outros trabalhadores afrodescendentes também buscavam espaços de autonomia. Honorata, com sua postura altiva e determinação, tornou-se uma relíquia da Providência, simbolizando a força e a resistência das mulheres negras em busca de uma vida digna e independente, mesmo diante dos desafios impostos pela sociedade da época.

Dona Dodô da Portela[editar | editar código-fonte]

Dona Dodô da Portela é uma figura icônica na história cultural do Rio de Janeiro, especialmente conhecida por sua profunda conexão com a Portela, uma das escolas de samba mais tradicionais da cidade. Embora não tenha nascido no Morro da Providência, Dona Dodô é considerada uma relíquia da comunidade por seu impacto significativo na cultura local e por seu envolvimento apaixonado com o samba. Sua trajetória é marcada por uma dedicação incansável à preservação e promoção do samba, refletindo a riqueza cultural das favelas cariocas. Dona Dodô, com sua presença marcante e amor pelo samba, simboliza a continuidade da tradição cultural que ressoa profundamente na Providência e em outras comunidades do Rio. Sua contribuição para o samba e sua influência na cultura carioca a tornam uma figura de grande respeito e uma verdadeira relíquia da Providência e do samba.

Tia Aurenir[editar | editar código-fonte]

Mulher guerreira, aos 12 anos veio do Ceará em busca de realizar seus sonhos na capital fluminense. E foi na comunidade do Morro da Pedra Lisa, que ela encontrou refúgio. O artesanato e a criação de semijoias foram seus primeiros empreendimentos no Rio de Janeiro, que possibilitaram estabelecer sua casa e sua família na comunidade. Com 69 anos de trajetória, ela sempre compartilhou sua empatia e amor, conquistando a confiança de todos que esperam encontrar em sua barraquinha suas cartas e encomendas.

Dona Marizinha e o Seu Moa[editar | editar código-fonte]

A Mariazinha era considerada mãe do King Kong. Ela abria a casa dela para todo mundo, sem discriminação. Se alguém não tinha o que comer, ela dividia o que tinha, se alguém não tinha onde morar, ela cedia o sofá da sala. Mariazinha era alegria pura, sorriso aberto, samba no pé... E o Seu Moa, seu companheiro, era sábio, respeitoso, gentil, amava pescar e contar histórias. Ele sempre lia seu jornal no portão de casa esperando algum morador para entregar cartas, sabia o nome de todos de cor e nunca negava conselhos para quem pedia.

Dona Chiquinha[editar | editar código-fonte]

Há mais de cinco décadas ela é a guardiã da Capela das Almas. Tombada pela prefeitura em 1986, a capela fica em um pequeno santuário erguido no alto do Morro da Providência. Nascida na Paraíba, Dona Chiquinha veio para o Rio em busca de uma vida melhor. Na cidade, foi logo morar na Providência. Mãe de cinco filhos e viúva, ela tem a chave do oratório há cerca de 50 anos e sempre que precisa vai ao oratório para ter paz e se encontrar com Deus.

Tia Bené[editar | editar código-fonte]

Dona Benedita sempre será uma relíquia do morro da Providência! Cozinheira de mão cheia e dona de uma casa que exalava seus temperos e seus incensos do altar budista sempre impecavelmente arrumado. Mulher preta que tinha em seus quitutes e quentinhas sua fonte de renda, mas também o alimento para toda sua família, a de sangue e a de samba! Porque batucada e comida boa não faltavam na casa da Ladeira do Barroso, principalmente nos domingos de família reunida, com as tias-vizinhas, os amigos da mercearia, os sobrinhos da rua, gerações que cresceram nas casas abertas da Providência como a de Dona Bené e aprenderam lá a respeitar suas raízes e a saudar seus mais velhos.

Jarbas Carvalho "Seu Binha"[editar | editar código-fonte]

Pai de sete filhos, esposo da dona Zeni e morador do Santo Cristo(Vila Portuária). Com seu irmão Geraldo Babão e o grande sambista Djalma Sabiá, Binha compôs o samba Chico Rei, samba - enredo do Salgueiro em 1964. Além disso, participou da primeira viagem diplomática de uma escola de samba do Brasil em 1959 ao visitar Cuba. Trabalhou por anos no Porto, mas encontrou sua paixão no samba. Binha faleceu em 2016 aos 82 anos e deixou o seu amor pela música como herança para sua família e amigos.

Mãe Glória[editar | editar código-fonte]

Yalorixá do Ilê Axé Yemonjá Omi Fun Fun, único candomblé ainda ativo no Morro da Providência, localizado na antiga sede do Barroso Futebol Clube. Ela segue os ensinamentos da nação Ketu e é uma figura fundamental para manter viva a tradição do candomblé na região. Olorum modupé por tudo, Mãe Glória!

Ângela Sol[editar | editar código-fonte]

É cria da Providência, cantora e compositora, mas sua notoriedade se dá como backing vocal pelas inúmeras gravações de samba enredos da maioria das escolas do grupo A e também de participações em discos e cds de artistas renomados como: Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Neguinho da Beija Flor, Martinho da Vila entre outros.

Eron Cesar dos Santos[editar | editar código-fonte]

Morador do Morro da Providência, biólogo de formação e contra-mestre de capoeira do Grupo Ventre Livre, com mais de 20 anos de participação ativa no núcleo de capoeira do morro. Historiador autodidata, Eron é o criador do blog Museu Comunitário da Providência, onde, ao lado do morador Roberto Marinho, narra as histórias e memórias do Morro da Providência. Além disso, Eron se dedica a guiar visitas pelo morro, compartilhando seu vasto conhecimento sobre a cultura e a história local, contribuindo para a preservação e valorização do patrimônio da comunidade.

Maurício Hora[editar | editar código-fonte]

Renomado artista e morador do Morro da Providência, amplamente reconhecido como uma das maiores referências culturais da comunidade. Pioneiro na fotografia dentro de favelas, Maurício foi um dos primeiros a capturar imagens autênticas e reveladoras da vida no Morro, oferecendo uma visão íntima e respeitosa da realidade local. Seu trabalho fotográfico é um reflexo vibrante da vida e das histórias do Morro, celebrando a identidade e a resistência dos moradores da favela. Com um estilo único e inovador, ele não só documenta o Morro, mas também inspira novas gerações a valorizar e preservar sua herança cultural.

Dona Iraci[editar | editar código-fonte]

Morou desde a sua infância aqui na Providência, vivenciou diversas transformações da região e foi um dos pilares das atividades religiosas e culturais da cultura negra do centro do Rio. Além disso, foi a primeira presidente da Associação dos Moradores e membro do Conselho de Anciãos do Quilombo Pedra do Sal. Dona Iraci faleceu em 2020, mas sua memória permanece entre nós. Viva Dona Iraci dos Santos!

Maria[editar | editar código-fonte]

Maria é mais do que uma moradora da Providência; ela é um verdadeiro ícone da comunidade. Super prestativa e sempre presente, sua generosidade e franqueza descompromissada a tornaram uma figura central na favela. Não há um morador que não a conheça, e, em muitos casos, ela é até referência para se descobrir se alguém é realmente da comunidade — basta perguntar se conhece a Maria. Transitando pelas vielas da favela, Maria mobiliza afetos e alegrias de forma natural, tocando o coração de dezenas de gerações. Sua presença é sinônimo de acolhimento e união, criando laços que atravessam o tempo. Cada gesto seu, por mais simples que seja, carrega um profundo senso de comunidade e pertencimento, tornando-a um pilar indispensável na vida da Providência. Maria não é apenas uma pessoa; ela é a personificação do espírito coletivo que faz da favela um lugar de resistência e esperança.

Dona Jura[editar | editar código-fonte]

É uma autêntica relíquia do Morro da Providência, é a carismática chef e proprietária do famoso "Bar da Jura", situado na Praça Américo Brum. Nascida em Pernambuco e retirante desde os 3 anos de idade, Dona Jura encontrou no Morro da Providência seu lar e palco para expressar seu talento culinário. Em 2012, seu talento foi amplamente reconhecido quando conquistou diversos prêmios no Festival Gastronômico Sabores do Porto, incluindo o de melhor prato e a cerveja mais gelada da região portuária. Seus pratos, sempre elogiados, continuam a encantar paladares, tanto dos moradores do morro quanto de visitantes, consolidando-se como uma figura icônica da culinária local e um orgulho da Providência.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Morro da Providência - Da Providência a Favela

Morro da Providência: Práticas Artísticas e Culturais

Memória Viva (série de entrevistas)