A cidade coesiva enfrentando a estigmatização em bairros urbanos em desvantagens (relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 12h11min de 5 de junho de 2023 por Nsmiranda (discussão | contribs)
Verbete criado a partir do Case Study, na favela Santa Marta, após o encerramento do Workshop - Santa Marta Without Borders - em agosto de 2018.
Case Study - Santa Marta
Case Study - Santa Marta

Introdução

A decisão e a oportunidade de realizar este Case Study na favela Santa Marta surgiu quando da última reunião de avaliação após o encerramento do Workshop - Santa Marta Without Borders -, em agosto de 2018.

Naquela ocasião, com a participação de mais de vinte parceiros internacionais - professores e pesquisadores e estudantes de PhD das Universidades de Oxford-Brookes, Bath e UNAM; pesquisadores de três ONGs europeias – European Alternatives, Tesserae e City Mine(d) - e com professores e estudantes de PhD e de estudantes de Graduação da PUC-Rio com a liderança dos membros do projeto Grupo Eco/favela Santa Marta, consolidou-se uma parceria que se desdobrou nas duas etapas seguintes:

a) a organização do Seminário Internacional em junho de 2019, na PUC-Rio;

b) o debate sobre o espaço público na favela Santa Marta, que se configurou como tema escolhido pelo Grupo Eco junto com a equipe da PUC-Rio para o desenvolvimento do Case Study, cujo momento de concretização/finalização aconteceu no evento da construção do MAPA MURO MINA Santa Marta, em 08, 09 e 10 de julho de 2022, com a inclusão das equipes de professores de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio e da UFRJ (Labit), além do Grupo Eco e a equipe de Ciências Sociais da PUC-Rio.

A participação do PhD student Oscar Puig, de Oxford Brookes, ocorreu através da participação em várias reuniões durante o período de julho/agosto de 2019, durante a pandemia via zoom, e finalmente a participação de Oscar no evento de julho de 2022.

Desde 2018 ficou claro para a equipe da PUC-Rio que poderíamos avançar naquela parceria com o Grupo Eco, estabelecendo um debate em colaboração com dois universos de reflexão – acadêmico e de ativismo popular, geralmente mesclado com alguma forma de intervenção artística, prática recorrente na história do Grupo Eco, na favela Santa Marta.

Esta parceria com a equipe do Grupo Eco foi fundamental para programarmos as atividades previstas no projeto Co Creation, já que a favela constitui o local que melhor representa a segregação urbana e a estigmatização daqueles territórios e de seus moradores. 

No Rio de Janeiro, segundo dados do Censo de 2010, IBGE, seriam 763 favelas na cidade, que abrigam 22% da população da cidade do Rio de Janeiro. O que faz da capital fluminense o município brasileiro com o maior número de moradores em favelas: 1.393.314 habitantes. E no caso do Rio de Janeiro, a favela Santa Marta é um caso “bom para pensar” aspectos de longa duração da segregação urbana, uma das favelas em que a distância social - de classe, racial, de local de moradia – coexiste com a proximidade espacial, na medida em que a favela está situada em bairro da área nobre da cidade, a zona sul.

A participação dos professores de arquitetura da PUC-Rio e da UFRJ no Seminário Internacional (junho 2019) foi fundamental para selar uma parceria na última etapa do projeto, o Case Study, cuja construção do MAPA MURO MINA SANTA MARTA e de seu entorno foram obra de intervenção artística daqueles professores e pesquisadores, membros de seus laboratórios. A proposta do MAPA MURO foi sugestão da professora Adriana Sansão, criação de sua orientada no mestrado e membro de seu laboratório, a arquiteta Gabrielle Rocha, ex aluna da PUC-Rio e nascida na favela Rio das Pedras, Rio de Janeiro. A idealização do espaço, conforme mostraremos em fotos e vídeos, foram resultado de estreita colaboração entre as arquitetas, os arquitetos, em sintonia com as instituições e projetos de moradores da favela Santa Marta, com a liderança do Grupo Eco. Esta intervenção, que culminou no evento dos dias 8, 9 e 10 de julho, foi o resultado de um rico debate entre todos os parceiros deste Case Study, ao longo dos meses em que este projeto de intervenção foi sendo concebido, especialmente entre março e julho de 2022.

O debate sobre o espaço público dentro da favela começou pela solicitação de registros fotográficos aos jovens participantes do Grupo Eco, acompanhados, algumas vezes, por estudantes de Graduação da PUC-Rio, nos meses de julho e agosto de 2019. Naqueles registros havia uma procura pelos depoimentos das diferentes gerações sobre como era morar na favela em comparação com o tempo presente.

A partir daqueles primeiros registros ficou claro que a escassez do espaço, em geral, e especificamente de área livre para momentos de lazer, constituía um grande desafio para os moradores. As gerações de idosos facilmente se deslocavam pelo espaço da favela para seus momentos de lazer, como nos finais de semana; as crianças podiam correr e brincar nas árvores, possibilidades que praticamente não mais existem.

O avanço da construção de moradias e de pequenas lojas de comércio se sobrepôs, definitivamente, sobre a escassez de terreno. Apesar de na maioria das favelas da cidade do Rio de Janeiro a expansão ocorrer de forma vertical, com o aumento dos andares das moradias, o próprio terreno da favela Santa Marta, extremamente íngreme, dificulta bastante este tipo de expansão.

Diante da escassez de financiamento de moradia popular no Brasil, em que o déficit habitacional [1]permanece muito elevado, o crescimento das favelas e dentro das favelas ocorre de forma não planejada.

Este processo de debate foi bruscamente interrompido com a pandemia da Covid19 e a necessidade de repensar e interromper o processo até retomarmos em outubro de 2021.

Case Study

Participantes

  • Professores e alunos dos Departamentos de Ciências Sociais e Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio
  • Grupo Eco/favela Santa Marta; professora e membros do Labit, Escola de Arquitetura da UFRJ
  • PhD student de Oxford Brookes University
  • Equipe da TV PUC
  • Membros do Grupo de Turismo
  • Membro do Grupo Brazilidade
  • Membros da Folia de Reis
  • Membros da Associação de Moradores da favela Santa Marta
  • Membros do grupo de samba do Santa Marta; etc

Contexto

O debate surgiu a partir do Seminário Internacional de 2019, na PUC-Rio, identificada pelos membros do Grupo Eco acerca da importância do espaço público dentro da favela. O território vem sendo sucessivamente ocupado, de forma desenfreada, pela construção de novas habitações, restando pouquíssimo espaço “livre” para lazer das crianças e das famílias em geral.

As ruas entre as moradias se estreitam, em alguns locais há o comprometimento da ventilação das moradias, com a redução das distâncias entre as janelas e portas, que ficam muito próximas; bem como o desafio de assegurar alguma privacidade entre as moradias.

Este processo não é recente, mas diante do aumento da pobreza[2] intensifica-se a ocupação desordenada, selvagem, do espaço da favela. A ausência de regulamentação transforma a insatisfação dos moradores que sofrem este processo em sensação de impotência frente à autoridade imposta pela força do tráfico de drogas, com a omissão das forças de segurança – principalmente polícia militar.

Localização

A finalização do Case Study ocorreu com uma intervenção no local da primeira mina d´água da favela, local em que os moradores buscavam água para beber, se alimentar, lavar suas roupas e seus objetos, além de tomar seus banhos e se refrescar.

Este local, cheio de significado para os moradores na história da favela, foi fundamental para suas vidas até a conquista da água corrente em suas torneiras/moradias (anos 1970?).

Esta decisão sobre o local da intervenção artística surgiu a partir do debate entre as equipes do Grupo Eco, que apontou o local e a importância do resgate daquela primeira mina d´água e a criação de um mapa-muro naquele local por membros do Laboratório de Intervenção Temporária, Labit, UFRJ.

História da primeira Mina D'água na favela Santa Marta. Texto elaborado pelo Grupo Eco

Mina D'água

Placa de Madeira instalada no local da Mina, texto do Grupo Eco e placa confeccionada pelo Laboratório de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio. O texto, abaixo, e a foto da Placa em seguida:

“This Mine was for many years a meeting place. Women came to wash clothes, dishes and pans. The men bathed and the whole community collected water to take home. The sound of the canecão, made of an empty oil or powdered milk can, was common, scraping the stone hole in the shape of a gourd to fill a twenty or fifteen liter can that was carried to the houses.

The older ones know what a drama it was when summer came. The need for water increased and the sources of drinking water dwindled. In the few existing taps in the Favela, the competition to get a twenty-liter can, in the morning or afternoon, when the water was distributed, was dramatic. So, at Mina, the line was long and, sometimes, to get a can of water, there was a line up until dawn.

At that time there was no public lighting in Santa Marta and the paths were very dark. Many haunting stories have become legends of the Favela: the brass woman, the woman in white, the werewolf and so many others.

Today times are different. The Favela has electricity and water reaches all the houses. Public lighting, although precarious, helps to illuminate the paths and the Mina has undergone transformations over time. A small reservoir, like a water tank, was built to hold more water, since the continuous flow of water does not stop. And, even with potable water reaching all the houses in the Favela, the Mine continues to serve the residents. The space remains the Praça das Lavadeiras. The trickle of water continues to run. And it continues to be a place where clothes and dishes are washed and bathed. That's why we want to preserve and share the importance of this place in the history of Santa Marta and in the lives of the residents. Residents reinforce the affective dimension of the place in the construction of our individual and collective identity.

From Mina gushes, non-stop, the good water to drink and the crystal clear water of our memory.”

Tradução:

“Esta Mina foi por muitos anos um ponto de encontro. As mulheres vinham lavar roupas, pratos e panelas. Os homens tomaram banho e toda a comunidade recolheu água para levar para casa. Era comum o barulho do canecão, feito de lata vazia de óleo ou de leite em pó, raspando o buraco da pedra em forma de cabaça para encher uma lata de vinte ou quinze litros que era levada para as casas.

Os mais velhos sabem que drama era a chegada do verão. A necessidade de água aumentou e as fontes de água potável diminuíram. Nas poucas torneiras existentes na Favela, a disputa para conseguir uma lata de vinte litros, pela manhã ou à tarde, quando a água era distribuída, era dramática. Então, na Mina, a fila era grande e, às vezes, para pegar uma lata de água, a fila ficava até de madrugada.

Naquela época não havia iluminação pública em Santa Marta e os caminhos eram muito escuros. Muitas histórias assustadoras viraram lendas da Favela: a mulher de latão, a mulher de branco, o lobisomem e tantas outras.

Hoje os tempos são diferentes. A Favela tem energia elétrica e a água chega a todas as casas. A iluminação pública, embora precária, ajuda a iluminar os caminhos e a Mina sofreu transformações ao longo do tempo. Um pequeno reservatório, como uma caixa d'água, foi construído para reter mais água, já que o fluxo contínuo de água não para. E, mesmo com a água potável chegando a todas as casas da Favela, a Mina continua atendendo os moradores. O espaço continua a ser a Praça das Lavadeiras. O fio d'água continua a correr. E continua a ser um local onde se lavam e se banham roupas e loiças. Por isso queremos preservar e compartilhar a importância desse local na história do Santa Marta e na vida dos moradores. Os moradores reforçam a dimensão afetiva do lugar na construção de nossa identidade individual e coletiva.

Da Mina brota, sem parar, a água boa de beber e a água cristalina da nossa memória.

Eventos e Atividades

O processo do Case Study começou com uma série de entrevistas com moradores da favela acerca do uso do espaço da favela para morar, lazer, trabalho, localização no bairro de Botafogo, um bairro de classe média na maioria de sua população; facilidades, aspectos positivos e seus desafios e aspectos negativos. Esta etapa da pesquisa foi interrompida no início de março de 2020 com o processo de pandemia.

Retomamos com reuniões virtuais, via zoom, em 2021 para planejarmos o futuro do projeto, naquele momento interrompido. Ao longo das reuniões, os debates sobre o espaço público, sobre os comuns e a necessidade de concretizarmos algum tipo de intervenção no espaço da favela nos orientou à proposta da construção de um Mapa Muro, experiência de uma arquiteta ex aluna da PUC-Rio e da UFRJ, hoje membro do Labit, sob a coordenação da professora Adriana Sansão. Gabrielle Rocha havia construído um Mapa Muro na favela onde habitou desde sempre, a favela de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Em 2022, quando retomamos a possibilidade de nos encontrarmos presencialmente – as universidades no Brasil ficaram fechadas presencialmente e só retomaram suas atividades nos campi a partir de março de 2022 – realizamos uma primeira visita guiada na favela para decidirmos o local a ser construído o mapa muro.

Lançamento do MAPA-MURO MINA Santa Marta

O evento do lançamento do MAPA-MURO MINA Santa Marta aconteceu no domingo do dia 10 de julho de 2022. Os trabalhos no local foram antecedidos de várias iniciativas e com a fundamental colaboração entre várias equipes das duas Universidades envolvidas – PUC-Rio e UFRJ – com a equipe do Grupo Eco e vários moradores e instituições da favela, destacando-se a parceria com o projeto Brazilidade.

As inúmeras reuniões e encontros do Grupo Eco com as equipes das Universidades tiveram como resultado um trabalho importante como registro da memória da favela Santa Marta e esteticamente aprovado por todas as pessoas envolvidas, mas principalmente pelas instituições e projetos da favela e alguns de seus moradores, que espontaneamente deram seus depoimentos.

Esta mobilização na favela começou com o ativismo do Grupo Eco no grupo de Facebook com a exposição de antigas fotos de moradores na Mina d´água em décadas passadas. Esta iniciativa levou a uma sequência de novas fotos e depoimentos sobre o passado da favela naquele local da primeira mina d´água.

A proposta da realização de um Mapa Muro partiu do Labit/UFRJ, especificamente um trabalho concebido pela arquiteta Gabriela Rocha. A participação dos moradores e das instituições da favela e seu registro com as respectivas pinturas ao lado do mapa aconteceu no domingo 10 de julho, segundo proposta do Grupo Eco, que realizou a mobilização no local para que as principais lideranças da favela comparecessem no local. Estudantes de graduação da PUC-Rio também participaram da mobilização com a distribuição de panfletos/flyer na Praça que dá acesso à favela, acompanhada de mini-entrevistas sobre a avaliação da qualidade de vida na favela após este período de mais de um ano de pandemia pela Covid 19.

No mesmo local, estudantes de graduação de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, participantes do Laboratório de Observação do Espaço Habitacional, criaram sobre o espaço uma estrutura provisória de madeira com tecidos brancos, de onde pendiam cubos de madeira onde os moradores e participantes do evento deixavam registrados frases e/ou palavras sobre aquele espaço e sobre aquele momento.

Este mesmo Laboratório construiu uma placa de madeira com um texto - gravado a laser - sobre a história da primeira Mina na favela Santa Marta, texto elaborado pelo Grupo Eco.

  1. [1] O déficit habitacional brasileiro é de 7,9 milhões de moradias em todo o país, correspondente a 14,9% do total de domicílios (2022).
  2. 58,7% da população brasileira, mais da metade da população total, convivem com alguma situação de insegurança alimentar - dados oficiais de 2022.