A vitória do sincretismo: o desfile da Grande Rio no carnaval carioca de 2022 (artigo)

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"A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para 'balançar' nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para 'bagunçar a casa', quebrar a seriedade bem-comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da 'celebração' do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do canal Paz e Bem.

Autoria: Faustino Teixeira, publicado originalmente no blog do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A foto mostra a Sapucaí lotada ao som da Grande Rio, Campeã 2022
Grande Rio é campeã, pela primeira vez, do carnaval do Rio. Foto Agência Brasil

Eis o artigo[editar | editar código-fonte]

A linda vitória da Acadêmicos do Grande Rio é, na verdade, a vitória contra a intolerância religiosa sofrida pelas religiões africanas e de matriz afro-brasileira em nosso país.

Num tempo difícil em que cresce a repressão contratais tradições, uma vitória assim é motivo de grande alegria: é a vitória do “som Brasil”[1], para expressar uma noção bonita do antropólogo Pierre Sanchis, que sempre celebrou o “toque” do sincretismo e da diversidade brasileira, que continuam fazendo vibrar uma modulação essencial da cultura brasileira.

Vejo também como um grito que pede respeito, desmistificando uma das figuras tão mal-vistas por segmentos da população brasileira e em particular de grandes camadas do mundo evangélico e pentecostal, bem como do catolicismo carismático.

O enredo e o samba da Escola empolgaram a avenida e trouxeram as chaves de Exu para abrirem os corações e mentes dos brasileiros preconceituosos, oferecendo uma possibilidade lírica e festiva para quebrar tabus que reafirmam o passo da exclusão do outro.

O Orixá vem celebrando e convidando a falar de si para a multidão na Marques de Sapucaí. Foi uma vitória dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que tiveram essa ousadia de apresentar de forma brincalhona e lúdica essa figura do panteão afro. Em passagem do samba enredo celebramos:

Letra do Samba Enredo[editar | editar código-fonte]

“Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba

É no toque da macumba, saravá, Alafiá

Seu Zé, malandro da encruzilhada

Padilha da saia rodada, ê Mojubá

Sou Capa Preta, Tiriri

Sou Tranca Rua, amei o Sol

Amei a Lua, Marabô, Alafiá

Eu sou do carteado e da quebrada

Sou do fogo e gargalhada, ê Mojubá”

Assista aqui: O vídeo do Samba Enredo[editar | editar código-fonte]

Temos por exemplo no Candomblé, o maravilhoso rito onde os participantes cedem seu corpo para a dança dos deuses, como mostrou tão bem Roger Bastide:

“Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[2].

Pierre Verger lembra em texto semelhante que naquele momento do ritual o participante se transforma em rei e rainha, superando ritualmente os embates do cotidiano doloroso. Esse grande estudioso e iniciado no candomblé sublinha:

“O Candomblé é para mim muito interessante por ser uma religião de exaltação à personalidade das pessoas. Onde se pode ser verdadeiramente como se é, e não o que a sociedade pretende que o cidadão seja. Para pessoas que têm algo a expressar através do inconsciente, o transe é a possibilidade do inconsciente se mostrar"[3].

Nos trabalhos preciosos de Reginaldo Prandi, podemos captar com clareza esse manancial das religiões de matriz afro-brasileira, quando o “eu” se torna sagrado e poderoso, podendo romper grilhões de opressão e revelar segredos desconhecidos[4]. O orixá se desdobra em orixá da pessoa.

Exu[editar | editar código-fonte]

Exu exerce um papel fundamental para abrir chaves, abrir trabalhos. Como indica Reginaldo Prandi, os filhos de Exu são gente que traduzem a “ambiguidade” que marca o povo brasileiro: eles são agitados, irônicos, manhosos, como os malandros brasileiros, no seu sentido mais nobre[5].

Exu é alguém que se solta, de fala fácil, com a sexualidade à flor da pele. A rua é o seu lugar predileto, a avenida é o seu lugar predileto. Os exus e as pomba giras são ágeis, sedutores: adoram o espaço aberto e a cachaça. Não se caracterizam pela maldade, como certa visão preconceituosa buscou apresentar na opinião pública. Exu é gente matreira, ardilosa, que entende bem de artimanhas, mas não guarda rancor. É gente brincalhona, pautada pela alegria, e amante das comidas e bebidas.

A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para “balançar” nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para “bagunçar a casa”, quebrar a seriedade bem-comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da “celebração” do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor.

Discriminação religiosa no estado do Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

A história da discriminação religiosa no estado do Rio de Janeiro foi objeto de um estudo cuidadoso de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giacomini[6]. Em seu artigo sobre intolerância religiosa Sônia divulga dados que já são mais antigos, mas que impressionam: “Das 840 casas que responderam à questão específica sobre discriminação, mais da metade informou ter sido alvo de alguma ação qualificada como 'discriminação ou agressão por motivo religioso'”[7].

Um dos grandes estudiosos brasileiros das religiões afro é Reginaldo Prandi. Tive a alegria de contar com um artigo seu no livro que organizei junto com Renata Menezes sobre as religiões e o Censo de 2010[8]. Com base nos dados do Censo de 2010, Prandi indicou que em 2010 as religiões afro-brasileiras contavam com cerca de 0,3% de adeptos declarados. É verdade que nem sempre os dados apresentados são representativos pois escamoteiam a dupla ou tripla pertença religiosa que ocorre no Brasil. Mesmo assim, a declaração de crença é baixa. Os dados do Censo mostram ainda que na ocasião a Umbanda estava em decréscimo, enquanto o Candomblé apresentou leve crescimento. O Censo mostrou que a presença destas tradições no país “reduziu-se a um patamar estagnado abaixo do nível do crescimento vegetativo”[9].

Em recente artigo no Jornal O Globo, de 22/04/2022[10], Reginaldo Prandi comenta a presença das tradições afro-brasileiras no carnaval carioca em 2022. Dizia que “os orixás estão em peso na avenida”. De fato, isto ocorreu, para o maravilhamento das pessoas que assistiram o espetáculo, seja ao vivo ou pela televisão. Só no Rio, comenta Prandi, seis das doze escolas de samba do grupo especial honraram a cultura afro-brasileira.

Buscando interpretar esta popularidade, Prandi sublinha que “à medida que aumenta a intolerância religiosa, a fé afro-brasileira é acolhida no campo cultural”[11]. Estou plenamente de acordo com o pesquisador e amigo paulista. O carnaval brasileiro sempre esteve ligado ao universo afro-brasileiro, com suas cores, energia e religiosidade empolgantes. A vitória exemplar da Grande Rio proporcionou visibilidade única ao que vem considerando o núcleo basilar das religiões de matriz afro-brasileira: os Exus.

No livro Mitologia dos Orixás[12], Reginaldo Prandi assinala que Exu é o orixá que sempre está presente, e o culto dos demais orixás sempre “depende de seu papel de mensageiro”. Sem o exu nem os orixás ou os humanos podem se comunicar. É a sua presença que traduz a “porta de entrada” dos rituais, e sem a sua participação não pode acontecer nem movimento, reprodução ou qualquer outra dinâmica de presença criativa nos rituais[13].

Infelizmente, guardamos uma imagem negativa de Exu, que é resíduo da identificação feita pelos europeus entre exu e o diabo. Nada mais grosseiro ou falso. Exu é mensageiro, esse é o melhor modo de identificá-lo[14]. É o mensageiro que das terras africanas e povos iorubas, perambulava pelas aldeias em busca de solução para os problemas mais aflitivos dos seres humanos. É o mensageiro e alvissareiro que traz a boa notícia em favor da manutenção da saúde e do bem-viver, sem desconhecer ou abordar igualmente as desventuras que marcam a trajetória dos humanos.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Racismo Religioso

Racismo Eclesiástico (depoimento)

Racismo, motor da violência (relatório)

  1. Pierre Sanchis. Religião, cultura e identidade. Petrópolis: Vozes, 2018.
  2. Roger Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
  3. Disponível aqui (acesso em 27/04/2022).
  4. Reginaldo Prandi. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991, p. 123.
  5. Ibidem, p. 133-134.
  6. Sônia Maria Giacomini. “Intolerância religiosa”: discriminação e cerceamento do exercício da liberdade religioso. In: Denise P. R. Da Fonseca & Sônia Maria Giacomini. Presença do Axé. Mapeando terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Pallas, 2013, p. 133-157.
  7. Ibidem, p. 139.
  8. Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 203-218.
  9. Ibidem, p. 208-209.
  10. Ruan de Souza Gabriel. Do candomblé para o romance policial. O Globo, 22/04/2022 – Segundo Caderno, p. 6.
  11. Ibidem, p. 6.
  12. Reginaldo Prandi. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  13. Ibidem, p. 20-21.
  14. Ibidem, p. 17.