Acesso da população LGBT moradora de favelas aos serviços de saúde (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Edição das 14h54min de 14 de junho de 2022

Autoria: Danielle Bittencourt, Vanessa Fonseca, Márcio Segundo

Publicado originalmente na revista Conexões Psi, da Unisuam. Para acessar o texto original, clique aqui.

Resumo

Este artigo debate o acesso da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) moradora de favelas aos serviços públicos de saúde, buscando entender algumas especificidades relacionadas ao atendimento em saúde desta população. Tal debate se baseia em um estudo das percepções de profissionais de saúde e da população LGBT sobre o tema, a fim de compreender as barreiras subjetivas ou sociais relacionadas ao acesso integral à saúde da população LGBT e indica questões vinculadas a desigualdades de acesso aos serviços. O artigo chama a atenção para as multiplicidades de características presentes na população LGBT e suas recomendações para a atenção integral à saúde no interior das favelas.

População LGBT e suas reivindicações para saúde

*Fragmento do artigo

Os debates promovidos nos grupos focais com moradores/as da Maré indicaram como condições de vulnerabilidade desse grupo fatores estruturantes que envolvem dificuldade de acesso, pouca confiabilidade no serviço oferecido devido a casos anteriores de falhas no sigilo do atendimento e/ou discriminação, além de fatores pessoais, como concepções de cuidado e proteção que dificultam o “sexo seguro”. Em se tratando de uma pesquisa com moradores/as de favelas, a discriminação em relação à classe social e ao local de moradia surgiu com intensidade. Enquanto que, no grupo das travestis, a marca corporal foi apontada como fator importante de discriminação, no grupo de gays (formado por jovens negros), ser jovem e morador de favela foi indicado como fonte de maior discriminação e de influência preponderante para o tipo de tratamento que recebem nas unidades de saúde e em outros serviços.

Na percepção e nas experiências relatadas pelo grupo de participantes ouvidos, muitos fatores se somam para produzir desigualdades e discriminações, embora não tenha havido da parte deles menção explícita à questão racial. Nas palavras de um interlocutor do grupo de jovens homossexuais, desde que o gay da Maré “não seja muito afetado”, o principal fator de discriminação em vários serviços é o fato de ser morador de favela:

Acham que só porque é morador de favela você não tem informação [...] Os moradores de comunidade ainda sofrem muito preconceito. O principal é em relação ao local em que vivem. (Participante do grupo focal com jovens gays).

Tal situação é apontada como causa da pior qualidade do serviço público oferecido (demora no atendimento e poucos recursos oferecidos nas unidades) e de um maior distanciamento na relação entre profissional de saúde (na maioria das vezes não morador da comunidade) e usuário/a. A faixa etária foi mencionada pelos dois grupos também como fator que influencia a distância sentida em relação ao profissional de saúde. Assumir sua orientação sexual ou identidade de gênero, saber de seus direitos ou exigir respeito são questões relacionadas à história de cada pessoa, segundo estes interlocutores, assim as dificuldades inerentes a este processo podem contribuir decisivamente para o aumento da vulnerabilidade da população LGBT jovem. Nesse sentido, é importante que as ações estejam atentas às violências e condições de desigualdade que sofrem pessoas dessa faixa etária:

As mais novas sofrem mais. São mais desrespeitadas. Elas são de menor, têm medo de ir sozinha [ao serviço de saúde]. (Participante do grupo focal com travestis). Para mim, já é um problema falar [com um profissional de saúde]. Mas uma pessoa mais nova, que não se assumiu, não iria. Ficaria retraída... O serviço não teria a procura necessária [se não houvesse atenção]. (Participante do grupo focal com travestis).

Em função de sua juventude e influenciados por um “padrão” baseado em concepções de gênero que associam o homem ao pouco cuidado com a saúde, os jovens homossexuais ouvidos na pesquisa, com idades próximas aos 20 anos, informaram buscar atendimento apenas em situações de maior gravidade. Foram comuns frases como “Geralmente vou ao posto em último caso, com um problema quando estou quase morrendo” ou “Não procuro. Só em caso de morte”. No caso deste grupo, devem ser levadas em conta também as condições de vulnerabilidade associadas aos padrões de masculinidade hegemônicos, em que a resistência, o risco e o pouco cuidado com a saúde estão presentes e são esperados dos homens.

Um estudo comparativo (The International Men and Gender Equality Survey – IMAGES) realizado com 750 homens e 448 mulheres no Brasil, coordenado pelo Instituto Promundo e International Center for Research on Women (ICRW), apontou que, enquanto 65% das mulheres já haviam realizado o teste de HIV, este percentual era de 35% para os homens. Este fato é atribuído a normativas relacionadas às masculinidades, que não estimulam o cuidado preventivo por parte dos homens. As unidades de saúde, geralmente percebidas como espaços de cuidado de mulheres e crianças, são consideradas pouco atraentes para os homens (BARKER; AGUAYO, 2011, p. 91-95).

No caso das travestis, apesar da discriminação apontada, como será visto mais adiante, a busca por serviços mostrouse mais frequente pelo medo do HIV ou de doenças sexualmente transmissíveis, gerado pelos estigmas e ações de prevenção direcionadas a um ofício que costumam desenvolver, o de profissionais do sexo. Deste modo, é preciso reconhecer que a população LGBT é formada por uma multiplicidade de orientações e identidades de gênero, que influenciarão a busca ou demanda pelo serviço. As barreiras também serão percebidas de modo diferente pelos diferentes grupos que compõem o segmento estudado.

A não frequência nos serviços também foi justificada pelos jovens pela descrença no funcionamento dos serviços que, além de estar baseada na experiência da baixa qualidade, foi interpretada como um fator cultural: “É cultural. A gente acaba desacreditando”, disse um dos rapazes. Atribuídas a esta descrença algumas questões se sobressaíram: a percepção de má qualidade dos serviços oferecidos pelo SUS (principalmente em uma comunidade), a demora no atendimento, a incredulidade quanto à possibilidade de confidencialidade em um serviço prestado (e frequentado) por pessoas conhecidas da comunidade.

Os dados referentes à pesquisa realizada durante a Parada LGBT da Maré revelam também avaliações positivas dos serviços locais de saúde, embora mais da metade do número de entrevistados/as entre lésbicas (60%), bissexuais (67%) e travestis (67%) tenha declarado não ter procurado uma unidade de saúde na Maré para atendimento nos últimos 12 meses (como dissemos, a Parada LGBT da Maré aconteceu em setembro de 2013), com exceção dos homens gays (47%), que compuseram o maior grupo de pessoas entrevistadas.

Entre os/as que procuraram alguma unidade de saúde, os motivos mais apontados foram “fazer exames” (para variadas questões) ou procurar tratamento odontológico, o que revela uma concepção amplamente compartilhada que vincula cuidado com a saúde apenas com ações curativas, por vezes apenas em casos mais urgentes.

Quanto à qualidade do atendimento, das/os 23 respondentes para esta questão, apenas cinco apontaram que foram mal atendidos pelos/as profissionais de saúde (1 bissexual e 4 gays). Neste aspecto, a avaliação dos/as entrevistados foi bastante positiva, enquanto nos grupos focais houve mais problematizações acerca da qualidade dos serviços, com destaque para o tema da confidencialidade.

A desconfiança quanto ao respeito à confidencialidade do resultado dos exames ou do tratamento médico merece ser analisada com mais cuidado, sobretudo quando um motivo fundamental apontado tanto no grupo de jovens homossexuais quanto no das travestis para o distanciamento do serviço de saúde foi o medo de um resultado positivo para o teste de HIV. Ficou aparente que o medo pelo “vazamento” do resultado da testagem ou mesmo de procurar pelo exame nas unidades se deve menos à possibilidade de infecção pelo HIV, mas a uma possível discriminação decorrente de um resultado positivo que poderia ser revelado, segundo os interlocutores, tanto por profissionais de saúde (entendidos/as aqui não apenas como os/as que prestam assistência e cuidado), quanto por moradores que frequentam as unidades:

Para mim, duas coisas [facilitam o atendimento]: a postura do profissional e do não profissional, com respeito ao sigilo e à vizinhança. Não é porque é o profissional que fura o sigilo, mas quem está lá: segurança, recepcionista. [...] As pessoas daqui, principalmente LGBT, não frequentam aqui... A proximidade, a relação de intimidade dificulta... Não vou porque meu vizinho que tá ali. (Participante do grupo focal com travestis).

O relato aponta ainda a presença do estigma relacionado ao HIV/Aids, principalmente quando serve para “confirmar” a associação entre a epidemia de Aids e a homossexualidade ou a travestilidade. Neste aspecto, cabe mencionar a estigmatização da população LGBT reproduzida por alguns profissionais de saúde. Tanto os jovens homossexuais quanto as travestis ouvidas nos grupos focais mencionaram a falta de cuidado dos/as profissionais de saúde e diagnósticos precipitados sobre infecção pelo vírus HIV. “Achar que é doença ruim”, como expresso nas palavras de uma travesti, se transforma em olhares de descaso e reprovação. Seu relato chamou a atenção para a dimensão dos equívocos – tanto no que diz respeito à elaboração de diagnósticos, à abordagem e ao acolhimento dos/as usuários/as – que ainda podem ser cometidos em unidades e serviços de saúde do país. O comentário fazia referência a um atendimento ocorrido em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na cidade do Rio de Janeiro no início de 2013:

Fui para UPA porque estava com febre. O médico mal me examinou e disse: “Das duas uma: HIV ou dengue”. Me senti horrível, minha pressão baixou. Ele tinha perguntado se eu trabalhava na rua. Preconceito! Fui procurar o médico justamente por medo, porque preservativo estoura, fui casada... Saí pior do que entrei. (Participante do grupo focal com travestis).

Como este depoimento evidencia, o preconceito contra a orientação sexual homossexual e a travestilidade (somada muitas vezes aos estigmas relacionados à profissão quando se tratam de travestis profissionais do sexo) podem se refletir, por vezes violentamente, no atendimento em saúde, fato confirmado pelo relato de outra travesti:

Tenho uma amiga que tomou chumbinho por problemas com a família. Ela tomou o frasco todo e só passou mal. O médico que atendeu disse que ela teria que tomar só três para conseguir [se matar]. (Participante do grupo focal com travestis).

Os debates em torno do sigilo quanto ao resultado da testagem anti-HIV e dos “diagnósticos” que “confirmam” a associação entre infecção pelo HIV/Aids e a população LGBT ainda são cruciais e, como visto, há pontos importantes para serem resolvidos. Embora, como dissemos anteriormente, o tema da saúde da população LGBT não possa ser reduzido às questões de vulnerabilidade ao HIV/Aids. O relato aponta para elementos que também demandam respostas urgentes e aprofundamento no que tange à saúde da população LGBT: situações de estigma, preconceito e discriminação e seus reflexos na saúde mental dos/as que as vivenciam e o despreparo de alguns profissionais para lidar com estes temas.

No caso das pessoas ouvidas nos grupos focais realizados neste estudo, os serviços de saúde que existem fora da comunidade da Maré foram identificados como de melhor qualidade, especialmente pelo grupo de jovens homossexuais. Para eles, ser morador de favela tem um peso maior sobre o precário atendimento oferecido. As desigualdades foram apontadas também com relação à diferença no oferecimento dos serviços nas diferentes áreas da cidade. Em ambos os grupos houve a percepção da necessidade de equidade no tratamento e melhorias nos serviços para toda a população moradora de favela.

As demandas por respeito e tratamento igualitário envolveram reivindicações acerca de informações sobre direitos de uma forma geral. O maior desafio apontado pelos grupos diz respeito ao conhecimento de seus direitos e as possibilidades de vê-los efetivamente garantidos. “Sobre Aids somos bem informadas, não sabemos sobre direitos”, disse uma participante do grupo focal das travestis. Neste grupo, outra importante discussão tratou sobre o tema do nome social em escolas, unidades de saúde e outras instituições:

Eu não sei, por exemplo, se um policial ou profissional de saúde pode me exigir o nome masculino. Eu quero ser identificada com o nome feminino e não sei se posso ser tratada com o nome feminino [...] Também não sei se tenho direito a ir a um banheiro feminino. (Participante do grupo focal com travestis).

As discussões em ambos os grupos indicaram hierarquias de poder socialmente construídas. Desta vez, a respeito de como os homossexuais “podem ser”, isto é “menos afetados” e “mais afetados”, e como os julgamentos sobre essas “formas de ser” podem influenciar os tipos de tratamento a eles conferidos. Tal fato joga luz para a força das normas de gênero e para as pressões sofridas por jovens gays e lésbicas quando desafiam de forma mais radical as concepções que atribuem papéis e modos de se comportar ou vestir considerados mais “adequados” para homens e mulheres.

Igualmente, as travestis recebem diferentes tratamentos em sua busca pelos serviços e unidades de saúde. Peres (2010, p. 876) notou a desigualdade de tratamento dado às travestis “mais pobres, negras, velhas e encrenqueiras” e às travestis jovens, bonitas, “glamourosas” e, por vezes, militantes de movimentos por direitos e cidadania LGBT.

Se a travestilidade aponta diretamente a precariedade da compreensão da maioria das pessoas sobre as identidades de gênero, em muitos casos isso é respondido com violência e desconforto pelas pessoas que estão em contato direto com as travestis. Assim, chamar o nome masculino no atendimento em saúde, diante de uma sala lotada de outros pacientes, é marcar o “desvio” e a “inadequação” que o/a profissional de saúde está atribuindo àquela pessoa – situação claramente percebida pelas travestis. Desta forma, no grupo focal com travestis realizado neste estudo, a necessidade de ter informações sobre o nome social e de reivindicar mais e melhores condições de emprego foi tema surgido na discussão sobre saúde e direitos. A recusa de médicos e demais profissionais em chamá-las pelo nome social é um fator que contribui para o constrangimento gerado nos serviços, dentro ou fora da comunidade, e para o consequente afastamento.

O desconhecimento sobre direitos aparece nos relatos em que necessidades de serviços de saúde específicos para travestis e transgêneros não são reconhecidas como reivindicações legítimas para políticas públicas. Embora tenham sido relatados fatos graves relacionados ao não acesso a hormônios ou a cirurgias de adequação corporal, as travestis pareceram se conformar ou atribuir à falta de dinheiro os obstáculos que as levam a buscar cirurgiões não capacitados:

Eu coloquei no açougueiro mesmo. Me senti um porco. Me deitou na maca gelada, deu anestesia local, colocou pano na cara. Eu sentia dor, mandava eu calar a boca, porque eu era homem, tinha que aguentar. (Participante do grupo focal com travestis).

Outros relatos de violência e maus-tratos em mesas cirúrgicas de muitos serviços clandestinos revelam a necessidade que as políticas públicas de saúde priorizem a questão hormonal e de adequação corporal. Os riscos de infecção para o HIV são evidentes em tratamentos deste tipo, além de ser uma violação no direito a um tratamento digno e de qualidade.

Ainda a discriminação e a violência sofridas pela população LGBT, além de serem questões de saúde, revelam-se fatores de vulnerabilidade para uma série de doenças. A discriminação por si traz prejuízos graves à saúde que devem ser considerados pelos serviços do setor: pressão alta e ansiedade pelo medo de doenças e violência, alcoolismo, efeitos colaterais de hormônios, complicações cirúrgicas e, até mesmo, complicações relacionadas à tentativa de suicídio.

Apesar das dificuldades e das discriminações que sofrem, os dois grupos reivindicam apenas o oferecimento de condições iguais para todos/as os/as usuários dos serviços de saúde e não um serviço voltado apenas para a população LGBT. Como disse uma participante do estudo, “todo mundo tem comportamento de risco” e ainda outra: “Somos como todos. Eles [os profissionais de saúde] precisam ser mais informados sobre os travestis, como querem ser tratados. Queremos ser tratados como iguais”.

Na pesquisa na Parada LGBT da Maré, quando perguntadas sobre recomendações para melhorar os serviços de saúde para a população LGBT na comunidade, as pessoas combinaram em suas respostas tanto o apontamento de problemas percebidos quanto recomendações para uma ação mais abrangente do setor saúde. Chamaram a atenção tanto as constatações de falta de respeito, gentileza e cuidado no atendimento quanto os pedidos para mais ações de promoção da saúde e mais proximidade entre o setor saúde e a vida cotidiana da comunidade. Para serviços e profissionais, a indicação foi: “Ir mais pra rua, saber abordar. Tem gay que não é assumido”. Também foram apontadas demandas por mais investimentos em saúde e educação, divulgação dos serviços, produção de materiais educativos e ações de orientação e apoio social.

As recomendações, no geral, demonstraram uma compreensão bastante clara por parte dos/as entrevistados/ as que relaciona a saúde não apenas como resultado de práticas curativas, mas de ações mais amplas, ligadas ao que foi denominado como “apoio social”, por meio de ações educativas e de promoção à saúde.

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