Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Sem resumo de edição
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= Relatório | "Torneiras secas para enfrentar o novo Coronavírus no Rio de Janeiro", da Ouvidora da Defensoria Pública (RJ) =
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Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.
Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.


[http://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/[Coronavírus]_Onde_está_sem_água_no_RJ_-_Relatório_Ouvidoria_DPGERJ_-_parcial_23_03_2020.pdf '''ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)''']!
[http://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/Coronavírus_Onde_está_sem_água_no_RJ_-_Relatório_Ouvidoria_DPGERJ_-_parcial_23_03_2020.pdf '''ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)''']!


Bom Dia Rio: [https://globoplay.globo.com/v/8429366/programa/ Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água].
Bom Dia Rio: [https://globoplay.globo.com/v/8429366/programa/ Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água].

Edição das 12h51min de 27 de março de 2020

A equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta um compilado de textos, prontos e em processo de construção, sobre os efeitos do Novo Corona Vírus nas favelas do Brasil. Vamos reunir pesquisas, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus na vida das favelas

Veja também:

 

Artigo | Coronavírus: pelo direito de lavar as mãos nas favelas cariocas, por Gizele Martins

Texto originalmente publicado como artigo de opinião no Jornal Brasil de Fato, em 19 de março de 2020.

Parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde e pelos governantes brasileiros diante da pandemia do coronavírus (covid-19) não incluem a favela. No Rio de Janeiro, são inúmeras as favelas que nunca tiveram água, em outras a água vem duas ou três vezes na semana. Essa realidade é comum para quem mora do lado de cá. 

"Na falta da água, use álcool em gel", dizem as recomendações. Mas o álcool é artigo de luxo, que não é mais possível encontrar nas prateleiras dos supermercados e, quando se encontra, custa o triplo do preço.

Outra recomendação é evitar espaços aglomerados. Como? A favela é um grande aglomerado de casas, muitas sem janela, outras sem chance de ventilação alguma, com poucos cômodos, o que impossibilita seguir outra recomendação: manter a distância de um metro ou mais entre as pessoas. 

Mais uma recomendação é evitar transporte público, não ir para as ruas, ficar em casa. Mas somos nós os trabalhadores ditos informais, aqueles que não têm carteira assinada nem salário fixo.

Como implorar para que esse trabalhador, porteiro, faxineiro, ambulante, camelô, empregada doméstica, entregador, fique em casa, se a gente na favela come quando tem dinheiro, ou seja, quando trabalha?

Sem falar da atenção básica no que diz respeito à saúde pública, afinal, o Rio de Janeiro, desde o final do ano passado, vem passando por uma enorme crise na saúde. Tivemos muitos trabalhadores da saúde perdendo o emprego, outros que estão sem salários. Isso significa que temos menos profissionais para nos atender e mais postos de saúde e clínicas da família fechados. 

Fico pensando em como a favela vai escapar dessa.

Teremos que ter cuidados redobrados na forma de se comunicar e sempre pensar em alternativas e em soluções, que deveriam vir "de cima". Mas estamos aqui, nós favelados, pensando em como iremos vencer mais essa. 

Se você mora aí do outro lado do muro, olhe aqui para a favela também. Nós, que não temos atenção nenhuma do Estado, precisamos da solidariedade de cada um.

Olhe agora a cidade, veja que sem o favelado ela não funciona, pois somos nós que fazemos a economia funcionar com a nossa mão de obra. Sem nós, não tem cidade.

Então, por favor, governantes e sociedade, nos incluam nas políticas públicas, na atenção básica, nos projetos de lei, na informação, no saneamento básico.

Exijam que a gente não fique pelo menos sem água e sem energia nesse período de quarentena. Queremos ter o direito de lavar as mãos. 

*Gizele Martins é Moradora da Maré, jornalista, mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ) e integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro.

 

Artigo | Esboço de crítica do discurso de "Guerra Contra o Coronavírus", por Marcella Araújo

Texto gentilmente cedido pela autora, Marcella Araújo, e pela revista onde ele foi publicado originalmente, a Horizontes ao Sul. 

 

No dia 16 de março de 2020, Emmanuel Macron, presidente da França, disse em comunicado à nação que “nous sommes em guerre” [nós estamos em guerra][1]. No dia seguinte, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, tuitou “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN” [O mundo está em guerra contra um inimigo oculto. Nós vamos vencer][2]. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, por sua vez, disse, em coletiva de imprensa, que deveria agir como um “wartime government” [governo em tempos de guerra][3]. Na cobertura televisiva de várias emissoras brasileiras, as chamadas sobre a “guerra contra o coronavírus” foram igualmente recorrentes[4]. Mas nós não estamos em guerra.

Em uma proposição que ficou famosa[5], um general prussiano chamado Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. O tratado Da guerra, editado e publicado postumamente (1832) por sua esposa, Marie von Bruhl, difere de inúmeros outros escritos sobre a guerra que priorizavam oferecer manuais para os campos de batalha. Clausewitz, por sua vez, pretendia analisar as especificidades do fenômeno da guerra e educar as mentes dos comandantes. Sem mergulhar na discussão sobre a guerra como um instrumento da política de Estado[6], que colegas da Ciência Política poderão fazer com muito mais profundidade, gostaria de frisar este ponto: a guerra é um fenômeno social, um entre outros tipos de conflito.

Como Georg Simmel propôs: o conflito é uma forma de interação social. Só é possível marcar uma posição levando em consideração a existência do outro e manifestando contra ele argumentos ou o uso da força[7]. Conflitos, nesse sentido, envolvem alteridade e reciprocidade – ainda que para marcar antagonismos. Em situações em que os conflitos escalam para o uso da força, cabe lembrar que, em nossa vida coletiva, não aceitamos qualquer exercício de poder - ele precisa vir devidamente justificado. No Estado Democrático de Direito, é a lei que descreve as situações, os direitos e deveres, respaldando o emprego do aparato da força. Mas antes é a crença na legitimidade da lei que garante que ela seja cumprida e são as justificações dadas às formulações racionais contidas na lei que sustentam a própria legitimidade da legislação.

Minha crítica ao discurso da guerra nesta conjuntura pretende apontar os riscos da sua adoção. Sigo em duas frentes. A primeira é identificar as operações discursivas da declaração de guerra: ela circunscreve um coletivo que está sob ataque, ela identifica uma liderança com autoridade para levar adiante os confrontos em defesa desse coletivo e ela nomeia um inimigo agressor. Quando autoridades nacionais recentemente declararam “guerra contra o vírus”, esse “inimigo oculto”, a um só tempo, elas se posicionaram como as lideranças à frente da guerra, em nome de certos entes sociais – a pátria, a economia nacional, as famílias, as empresas, os trabalhadores.

No Brasil, no dia 18 de março, o Governo Federal solicitou o reconhecimento do estado de calamidade pública, dispositivo legal que permite o aumento dos gastos públicos sem violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde 2000. Parte da oposição defendeu que a pandemia põe em xeque a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos[8]. O temor de alguns parlamentares é que a vigência do estado de calamidade pública vá além da flexibilização fiscal e abra a brecha para que o presidente Jair Bolsonaro justifique decretar estado de sítio, dispositivo legal previsto no artigo 137 da Constituição Federal de 1988, para situações de guerra[9]. Nesse caso, liberdade de imprensa e liberdade de reunião seriam suprimidas, apreensões em domicílio e intervenções em empresas de serviços públicos seriam permitidas, entre outras medidas. O estado de calamidade pública está vigente no Brasil desde 20 de março[10].

A segunda frente da crítica se detém sobre a discussão da procedência do vírus. Donald Trump não é o único a falar insistentemente que o vírus é chinês[11]. Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) acusou o governo da China de ter escondido informações sobre o coronavírus e comparou a pandemia ao acidente nuclear de Tchernobil (1986), criando uma crise diplomática cujos desdobramentos ainda estão por ser sentidos[12]. Se para muitos o “inimigo” tem uma natureza espectral – ele é invisível a olho nu, oculto, difuso, paira no ar, penetra, adoece e mata corpos humanos –, o racismo contra nacionais e descendentes do primeiro país acometido pela doença procura torná-lo apreensível. A tentativa de atribuição de nacionalidade ao vírus o qualifica, demarca as fronteiras do lugar onde ele teria nascido (ou sido criado, segundo algumas teorias conspiratórias, as quais me poupo de discutir), mas também transforma o fantasma em sujeito. O portador “original” do vírus deveria ter sido tratado e, se a China supostamente não foi transparente na divulgação de informações, ela seria o sujeito inimigo.

Os dois pilares dessa crítica que proponho aqui – a metáfora da guerra para o enquadramento da situação indeterminada presente, por um lado, e o “inimigo oculto”, espécie de fantasma que vai sendo subjetivado, por outro – são tomados de empréstimos de dois sociólogos urbanos e da violência urbana cariocas: Marcia Leite e Michel Misse, respectivamente. Meu propósito ao trazer esses autores é apontar algumas consequências que podemos antever, caso a crise sanitária seja tratada como uma “guerra ao vírus”.

Como o fantasma da violência se tornou um sujeito social no Rio de Janeiro e quais foram os efeitos do emprego da “metáfora da guerra” para combatê-lo? No início dos anos 1980, a “violência urbana” começou a rondar as grandes cidades brasileiras. Em texto intitulado “Violência: o que foi que aconteceu?”, Michel Misse (2002) destaca que a representação da violência nas reportagens e nas falas cotidianas dos moradores do Rio parecia tratá-la como um vírus, no movimento inverso que fiz neste texto. Em suas palavras: “A tal da violência, que parece agir como um espectro ou fantasma, esconde-se ou dissemina-se, é tratada como uma epidemia, um vírus, um micróbio, ou como um Sujeito onipresente, onisciente, onipotente”[13]. Entre os anos 1980, como analisa Misse em inúmeros artigos acadêmicos e em sua tese de doutorado, o que houve foi uma transformação do fantasma social da violência em um sujeito social da violência[14]. Por meio de criminalizações e incriminações das práticas de venda no varejo de drogas, eis que os traficantes de droga se tornaram portadores privilegiados da violência – ainda que ela não se esgotasse neles[15].

Uma das consequências desse processo foi a propagação da “metáfora da guerra”[16], uma guerra contra o “Estado paralelo” dos traficantes de drogas, nas falas de moradores do asfalto carioca e nos discursos das autoridades públicas, como Marcia Leite analisou em sua tese. Artigo mais recente da autora[17], retraça o percurso da “metáfora da guerra” até a “pacificação de favelas”, destrinchando efeitos políticos e cotidianos do emprego da força contra o “inimigo interno” sobre as vidas de moradores de favelas, durante quase trinta anos. Basta lembrarmos os tantos símbolos empregados[18] durante os processos de ocupação militar recente de favelas cariocas, como parte do programa de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): “caveirões” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), incursões de policiais militares pesadamente armados, apagamento de pichações de siglas de facções do tráfico, hasteamento da bandeira nacional no cume dos morros, toques de recolher e revistas indiscriminadas de moradores. Um desenrolar de cenas de “reconquista dos territórios”[19]. Entre muitas outras, a tese de Juliana Farias “Governo de Mortes” descreve densamente as consequências da lógica da guerra e do estado de exceção nas favelas cariocas[20]

Retomar a discussão da sociologia do conflito e as pesquisas de Michel Misse e Marcia Leite, neste texto sobre a pandemia de Covid-19, pretende pinçar elementos e tendências dos processos em curso e abrir perspectivas de inteligibilidade e contestação. É pela “guerra” e as brechas legais que ela permite o caminho que queremos seguir para enfrentar a pandemia?

Na contramão desse discurso de guerra, vemos um outro discurso em gestação: o da solidariedade. Foge às possibilidades deste texto explorá-lo em sua multiplicidade. Restrinjo-me a destacar as cooperações transnacionais em busca da contenção e cura da nova doença. No dia 13 de março, uma equipe da Cruz Vermelha da China com nove médicos, toneladas de equipamentos hospitalares e máscaras chegaram à Itália[21], um dos países europeus em que a crise sanitária está mais aguda, com número de casos e mortes superiores aos da própria China. Cuba[22], por sua vez, enviou 65 médicos para a cidade de Milão, epicentro dos adoecimentos e óbitos. O próprio ministro da Saúde brasileiro, Luiz Mandetta, mais de um ano após encerrar a participação de cubanos no Programa Mais Médicos, pretende reconvocar dois mil deles para fortalecer a rede de saúde pública e o atendimento aos doentes no país[23].

Espero com estas linhas tê-los/as chamado a atenção para os perigos do discurso da guerra. Essa metáfora, a nível mundial, pode nos levar ao acirramento de tensões, racismos e autoritarismos. Temos, em paralelo à exacerbação de conflitos, testemunhado também esforços humanos impressionantes de profissionais de saúde em todo o globo e uma inflexão muito significativa nos debates sobre macroeconomia e política econômica, com a (re)emergência de debates sobre as vidas, a subsistência e o bem estar social[24].

Não estamos em guerra. O que vivemos é uma crise sanitária e econômica, cheia de imprevisibilidade, mas também com grandes aberturas a novos tempos de cooperação.

 

Estudo | Coronavírus nas favelas (DataFavela)

O estudo realizado em março de 2020 reúne algumas informações preliminares sobre a situação do Coronavírus nas favelas, a partir de 1142 entrevistas em 262 favelas de todo o Brasil.  O estudo é conduzido pelo Data Favela, que surge da parceria entre Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas – CUFA e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. As pesquisas do Data Favela são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do Instituto Locomotiva.

Sobre a pesquisa

"O corona atinge a população de forma desigual. Existem aqueles que, ainda bem, conseguem ficar no conforto do seu lar, com a geladeira cheia, fazendo home office. No entanto, a pesquisa deixa claro que existe milhões de brasileiros, autônomos, e com a geladeira vazia", avalia Celso Athayd e, Fundador da CUFA e do Data Favela e coordenador do movimento #FavelaContraOVirus “Criamos o movimento “Favela Contra o Vírus” com o objetivo de impedir que essas desigualdades provoquem ainda mais mortes nas favelas brasileiras, esse território com mais de 13,6 milhões de pessoas que não tem as mesmas condições de quarentena que os moradores do asfalto” - 'Celso Athayde, fundador da CUFA. 

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Acesse o Material

Para ter acesso aos resultados completos da pesquisa, clique aqui.

 

Estudo | Infográficos da Desigualdade - Casa Fluminense | Série COVID-19

A ONG Casa Fluminense (RJ) deu início à série especial dos Infográficos da Desigualdade. A cada semana serão compartilhados dados, propostas e reflexões sobre a realidade de desigualdades na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com o olhar atento para a precarização e a falta de acesso a direitos básicos que marcam historicamente o cotidiano das periferias.

O contexto da pandemia do COVID-19 evidenciou ainda mais o papel das políticas públicas de garantir segurança para a população, principalmente para os economicamente mais vulneráveis. Começando o papo falando sobre habitação. As principais estratégias para conter o avanço da disseminação da COVID-19 têm sido o distanciamento social e o isolamento domiciliar, para além das práticas recorrentes de higiene. Seguimos defendendo o #FiqueEmCasa, entretanto essas medidas acendem um alerta para parte da população nas periferias da RMRJ que vivem a realidade do adensamento populacional excessivo.


Quartos com mais de 3 pessoas é a realidade de 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio, segundo o Censo 2010 e o IPS 2018. Japeri é o município que possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. Jacarezinho lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, CDD, Zona Portuária e Santa Cruz.

Em um cenário no qual muitas destas casas sequer possuem ventilação adequada, é necessário que o poder público garanta subsídio para compra de material de construção e assistência técnica para essas populações. A adaptação emergencial sobre arejamento não deve ser responsabilidade dessas famílias. Em casos mais graves, é preciso garantir moradias adequadas ou improvisadas em outro espaço, como hotéis, escolas e universidades.

 

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InfográficosDaDesigualdade
#CoronaNasPeriferias
#COVID19NasFavelas

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A série "Infográficos da Desigualdade" faz parte da pesquisa da nova publicação Mapa da Desigualdade | Região Metropolitana do Rio de Janeiro 2020, que será lançada pela Casa Fluminense em abril. Em breve, mais infos!

 

Artigo | Periferias e Pandemia: Plano de Emergência, já!, por Sonia Fleury e Paulo M. Buss

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, em 25 de março de 2020.

Comunidades onde mora a maior parte dos brasileiros requerem ações especiais contra a Covid-19. Enfrentam a precariedade. São solidárias e potentes. Ação do Estado precisa respeitar autonomia local. Eis algumas propostas:

A pandemia do Covid-19 chegou às favelas. Embora o vírus não discrimine por classe social ou raça, as condições socio-sanitárias serão determinantes para dizer quais estarão em melhores condições de sobreviver e quais estarão destinados a morrer.

Favelas e periferias enfrentarão a pandemia em condições mais adversas, decorrentes do descaso dos governos em prover condições adequadas de abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, habitação e urbanização, transporte público, atenção à saúde. Não se trata mais de falar na ausência de políticas públicas para esses territórios, mas de uma necropolítica, que condena ao extermínio pobres, negros e mestiços nas favelas.

Com a pandemia, torna-se imperioso que o poder público passe a coordenar ações estruturais e emergenciais que impeçam o extermínio massivo dessas populações. No entanto, autoridade não se confunde com autoritarismo e arbítrio, já que em situações de crises como essa, governantes são tentados a exacerbar o poder coercitivo, desrespeitando direitos humanos e sociais. Em uma pandemia o poder de coerção é fundamental, desde que a autoridade legítima atue em defesa da cidadania, compartilhando de forma transparente informações, mobilizando os recursos públicos e privados emergenciais e coordenando, de forma democrática e participativa, os esforços conjuntos para o enfrentamento da situação.

As favelas sofrem com um conjunto de carências, mas possuem enorme potência, no sentido de uma cultura de solidariedade, bem como um conjunto de organizações e atores: comunicadores, igrejas, templos e centros, associações de moradores, empresas locais e serviços, grupos musicais, coletivos de artistas e poetas.

Até recentemente o plano de contingência proposto para o combate à pandemia desconsiderou a realidade das favelas, com propostas voltadas à classe média, como isolamento social, trabalho em casa e medidas de higiene, circulação de ar, etc. impraticáveis em situações de falta de água, espaços insalubres e transporte coletivo em condições insuportáveis de aglomeração.

Agora que a mídia e as autoridades deram-se conta que a direção do contágio pode ser revertida, que medidas concretas precisam ser tomadas?

Renda básica de cidadania – Imediata aplicação da Lei nº 10.835, que institui a renda básica de cidadania, com um valor emergencial de 70% do salário mínimo. Sendo de caráter universal, evitará demoras na sua aplicação, ou a exclusão dos informais e autônomos não relacionados no Cadastro Único do governo e que serão duramente afetados. Aqueles que quiserem renunciar à renda básica poderão destinar os recursos ao Fundo Nacional de Saúde.

Teto de gastos sociais – Revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016, o que já acarretou perda de mais de R$ 10 bilhões para o orçamento da saúde. O teto de gastos e o contingenciamento de despesas não produziram melhorias econômicas e têm levado à deterioração dos serviços públicos hospitalares e da atenção primária.

Comissão nacional – Criação de uma comissão nacional, envolvendo governos e cientistas, visando propor soluções de enfrentamento da pandemia e suas consequências, em suas múltiplas dimensões: saúde pública, investimentos em produtos essenciais ao combate, frentes de trabalho e emprego nas cidades, favelas e periferias, plano habitacional nacional, estadual e local, obras de saneamento básico, transporte, logística etc.

Plano de contingência em favelas e periferias – Apesar das semelhanças em termos de carências de infraestrutura, cada território é singular e possui uma sociedade local diferenciada. Portanto, não se deve falar de favela como um genérico, mas de favelas, com suas capacidades e necessidades. O plano de contingência deve envolver aspectos sanitários, urbanísticos, habitacionais, logísticos e de infraestrutura, dentre outros.

Abastecimento de água, luz e coleta de lixo – Governos estaduais e locais devem usar seu poder legal para obrigar que as empresas concessionárias adequem o fornecimento de seus serviços imediatamente.

Preço do gás – Redução imediata do preço em 60%.

Fundo emergencial – Criação de fundos emergenciais estaduais e municipais, com recursos próprios, transferências da União, recursos do Sistema S e doações de empresários e da população, para serem usados em ações prioritárias definidas pelos comitês sanitários. Usar também os recursos destinados à merenda escolar e de outros serviços públicos que se encontrem paralisados.

Comitês sanitários – Em cada favela deve ser criado um comitê formado por técnicos do governo e da sociedade, como engenheiros, arquitetos, agentes de saúde, assistentes sociais e lideranças comunitárias, visando identificar as situações de maior vulnerabilidade em termos de moradias sem água, luz ou coleta de lixo, cômodos sem ventilação e com apenas um ponto de água para uso, pessoas com doenças e deficiências que exijam cuidados especiais, famílias em situação de fome e insegurança nutricional, dentre outras.

Levantamento dos recursos que a comunidade possui, como comunicadores comunitários, serviços de saúde e assistência social, escolas públicas e privadas, empreendimentos fabris e comerciais, coletivos e grupos de jovens etc. Definição de plano imediato de ação, com abertura de janelas, pontos de água, retirada de pessoas em situação de maior risco e sua alocação em hotéis, distribuição gratuita de cestas básicas e materiais de higiene e remédios, logística para transportar pacientes, dentre outros.

Testes em favelas – Priorizar em favelas a aplicação de testes para detecção de pessoas contaminadas e definição de estratégia de isolamento.

Comunicação – Utilizar os recursos da comunicação comunitária, de músicos e artistas locais, para mobilizar jovens, crianças e adultos para as medidas de prevenção, em especial a higiene e manutenção do isolamento.

Mobilização de recursos públicos e privados, com a requisição do uso de propriedades como hotéis e pousadas, espaços desocupados, empresas de transporte, distribuidoras de gás e outras, para atender às demandas locais.

Internet livre – Só será possível manter em isolamento os jovens e adultos se eles puderem ter acesso livre à internet, o que deve ser decretado, obrigando as empresas provedoras a liberação dos serviços nessas áreas.

Atividades escolares, culturais, religiosas e de exercícios físicos – Mobilização de professores, artistas, produtores culturais, religiosos e fisioterapeutas para desenvolverem programas de atividades para diferentes faixas etárias, disponibilizados pelo poder público com uso de meios privados e comunitários.

Fortalecer a atenção à saúde e à assistência – Reforço do SUS, com contratação de profissionais, treinamento e distribuição imediata de equipamentos de proteção para os profissionais, envolvendo agentes comunitários, profissionais do programa de saúde da família, assistentes dos CRAS e CREAS, unidades básicas e postos de saúde. Fortalecer a gestão do sistema de saúde, visando maior efetividade na transferência de pacientes para os hospitais e reduzindo a peregrinação e os riscos de contágio.

Enfim, a pandemia só pode ser enfrentada com mais SUS e mais democracia, ou seja, governo eficiente, transparente, respeitador da cidadania e dos direitos humanos, mobilizador da sociedade e distribuidor de recursos públicos para os que mais necessitam!

Sonia Fleury é Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ (wikifavelas.com.br).
Paulo M. Buss é Professor Emérito da FIOCRUZ; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

 

 


Relatório | "Torneiras secas para enfrentar o novo Coronavírus no Rio de Janeiro", da Ouvidora da Defensoria Pública (RJ)

Na última semana, a Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro fez um comunicado à população pelas redes sociais pedindo informações sobre onde está sem água no Rio de Janeiro. O objetivo era indicar à Defensoria onde atuar com urgência para que todas as pessoas tenham condições de seguir as orientações das autoridades sanitárias e, assim, colaborar para a contenção da pandemia de Covid-19, o novo Coronavírus.

Em apenas 5 dias (de 18 a 23/3), foram recebidas 475 denúncias de problemas de abastecimento em 140 lugares diferentes. São majoritariamente favelas e periferias de 14 municípios do estado, localizados principalmente na região metropolitana.

O relatório parcial com as informações desses primeiros 5 dias  já foi repassado aos núcleos especializados da Defensoria Pública. O Núcleo de Defesa do Consumidor já está buscando, com apoio do Ministério Público, uma solução emergencial extrajudicial junto à CEDAE.

Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.

ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)!

Bom Dia Rio: Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água.

O formulário de envio das informações sobre onde está sem água no RJ continua aberto para novas respostas: acesse aqui.

Às favelas e periferias, desejamos força! Saudamos as entidades da sociedade civil que também estão lutando. Contem com a Ouvidoria.

Equipe da Ouvidoria da Defensoria do RJ.

 

  1. [1]MACRON, Emmanuel. (2020), “Adresse aux Français”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  2. [2]TRUMP, Donald. “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN!” Tweet, 17 março 2020, 4:31 p.m. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  3. [3]RAWLISON, Kevin. “’This enemy can be deadly’: Boris Johnson invokes wartime language”. The Guardian, 17 março 2020, 19:38 GMT. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/17/enemy-deadly-boris-johnson-invokes-wartime-language-coronavirus
  4. [4]Macron, Johnson e Trump não foram os únicos a falar de “guerra”. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/lideres-adotam-discursos-de-guerra-contra-pandemia.shtml
  5. [5]VON CLAUSEWITZ, Carl. (2007), On War. Oxford World’s Classics, Oxford University Press
  6. [6]Ler, por exemplo, MAQUIAVEL, Nicolau (2010), O Príncipe. Rio de Janeiro: Penguin.
  7. [7]Ver: SIMMEL, Georg. (1992), On individuality and social forms. The University of Chicago Press
  8. [8]SENADO NOTICIAS. “Pandemia põe em xeque teto constitucional de gastos públicos”. 18 março 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/18/pandemia-poe-em-xeque-teto-constitucional-de-gastos-publicos
  9. [9]MOTA, Erick. “Congresso está atento pra Bolsonaro não decretar estado de sítio, diz Molon”. Congresso em Foco, 21 março 2020, 9:42 a.m. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretar-estado-de-sitio-diz-molon/
  10. [10]MAGNOLI, Demétrio. “Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média”. Folha de São Paulo, 21 março 2020, 1 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/03/nos-esclarecidos-precisamos-pensar-fora-da-bolha-da-alta-classe-media.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR38pMgYrZbe15NCaPIjK56Zo7TjNTK5ks-d0C6X40c4tSv6uqOOws_N5XY
  11. [11]VAZQUEZ, Maegan; KLEIN, Betsy. “Trump again defends use of the term ‘China vírus’”. CNN Politics, 19 março 2020 08:05 GTM. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/17/politics/trump-china-coronavirus/index.html
  12. [12]JORNAL NACIONAL.
  13. [13]MISSE, Michel. “Violência: o que foi que aconteceu?”. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Violência%20o%20que%20foi%20que%20aconteceu.pdf
  14. [14]MISSE, Michel (1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio de Janeiro.
  15. [15]Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo e professor do Iesp-Uerj, levou mais adiante a proposição de Márcia Leite. Segundo ele, teria se consolidado mesmo uma linguagem da violência urbana, que confere intelegibilidade e prospecções sobre os conflitos urbanos. O “núcleo duro” da violência urbana radicaria no uso desenfreado da força sem justificação, desenvolvido em decorrência da “ausência do Estado” e em relação ao qual se disseminaria um medo generalizado. Ver: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), “’Violência urbana’
  16. [16]LEITE, Marcia. “Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2001.
  17. [17] Ver LEITE, Marcia. (2012), “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n.2, p. 374-389.
  18. [18]Ver: ARAUJO, Marcella. (2012), “Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação no Rio de Janeiro”. In: Misse, Michel; Werneck, Alexandre. (Org). Conflitos de (grande) interesse. Rio de Janeiro: Garamond. Disponível em: https://www.academia.edu/12759030/Rio_em_forma_ol%C3%ADmpica_a_constru%C3%A7%C3%A3o_social_da_pacifica%C3%A7%C3%A3o_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
  19. [19]Sobre as “figurações da ‘guerra urbana’”, ver dossiê organizado por , Vera Telles,
  20. [20].FARIAS, Juliana. (2014), “Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA. Disponível em: https://www.academia.edu/12412103/Governo_de_Mortes_Uma_etnografia_da_gest%C3%A3o_de_popula%C3%A7%C3%B5es_de_favelas_no_Rio_de_Janeiro
  21. [21]ALJAZEERA. “China sends essential coronavirus supplies to Italy”. 13 março 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/china-sends-essential-coronavirus-supplies-italy-200313195241031.html
  22. [22]Friso aqui que não emito qualquer juízo de valor sobre os regimes políticos chinês e cubano
  23. [23]VARGAS, Mateus. “Governo quer cubanos de volta ao Mais Médicos para enfrentar novo coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 março 2020, 13:23 GTM. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-contratar-medicos-cubanos-para-enfrentar-novo-coronavirus,70003235029
  24. [24]CUCOLO, Eduardo. “Coronavírus reacende discussão sobre papel do Estado na economia”. Folha de São Paulo, 15 março 2020, 1:00 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-reacende-discussao-sobre-papel-do-estado-na-economia.shtml