Crime sujeito e sujeição criminal. Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido (Resenha): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
(Criou página com ' <h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Referência</h1> <p class="mwt-paragraph">MISSE, Miche...')
 
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= Referência =
<p>MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.</p>
= Breve contextualização =
<p>Michel Misse é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição. O autor é um dos pioneiros no estudo da violência no Brasil, suas pesquisas iniciam-se na década de 1970, e o desenvolvimento de sua carreira e de suas pesquisas confundem-se com a consolidação desse campo de estudos nas ciências sociais do país. Misse foi orientado por Luiz Antônio Machado da Silva (1941-2020), no antigo IUPERJ. A relação teórica entre os dois, com concordâncias e divergências, guiou o debate sobre violência e criminalidade na sociologia brasileira. Junto com Machado da Silva (2004) e Maria Stela Porto (2006), Misse (1999) é um dos autores que contribuem para pensar a violência como uma representação social. Assim, para esse conjunto de autores, em vez de um substantivo, a violência é um adjetivo para ações assim classificadas (Werneck, 2012).&nbsp;</p>


 
= Principais argumentos =
 
<p>À princípio, Misse (2010) reflete sobre a emergência do sujeito e a forma como a sociologia o discute. O sujeito, através da subjugação e da agência, estaria relacionado com a estrutura. Ao mesmo tempo, poderia estar associado com o poder advindo dela (de cima para baixo) e seria moldado à contrapelo dessa estrutura, de forma reflexiva, como potência. O autor, no entanto, aponta que normalmente, quando pensamos na emergência de um sujeito social, o fazemos para notar aqueles revolucionários, que propõem novos valores. Raramente, nos atentaríamos para os sujeitos egoístas que também emergem de experiências de subjugação, mas que, ao contrário do revolucionário, também subjulga e assujeita os Outros à mercê de uma ação voltada para si ou para seu grupo, sendo esta ação egoísta, cínica e/ou cética. Enfim, por produzir subordinação, esse sujeito egoísta também produz outros sujeitos. Em relação à sociologia, o autor critica a relegação do processo de subjetivação a outras disciplinas e seu tratamento sociológico tangencial a partir de conceitos como ''self'', identidade social, ator social papéis e ''status'' sociais. Segundo Misse (2010), contribuindo ativamente para discussão ao redor da teoria dos rótulos, o sujeito é visto como uma “essência” do ''self'', mas não é encontrado quando sua busca é aprofundada nesse conceito.</p><p>Assim, Misse (2010), volta-se para a análise de uma série de processos de subjetivação que possibilitam a emergência de um sujeito egoísta, no Brasil, conhecido como “bandido”, um “sujeito criminal produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais” (17). Esse sujeito é alvo das reações morais mais contundentes e demandas de punição das mais severas. Haveria uma sintonia entre um tipo de atividade criminal, praticada por esses sujeitos e relacionada com signos de um perigo difuso que geram medo de se conviver em sociedade, e “tipos sociais” demarcados pela pobreza, cor e estilo de vida, previamente selecionados pela suspeição, ou seja, acusados de antemão. Por não serem criminosos comuns, a expectativa social é de incapacitação definitiva (morte) ou reconversão moral capaz de adequar à sociedade que acusa os sujeitos conhecidos como “marginais”, “violentos” e “bandidos”.</p><p>Essa posição social desprivilegiada dos “bandidos”, poderia ser analisada a partir da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a). Tal conceito estende à violência um caráter de representação social, passível de ser sedimentada historicamente. Haveria, assim, a causação circular acumulativa de uma série de fatores sociais que se alimentam mutuamente. Nesse sentido, tanto desvantagens são concentradas para uma parcela da população quanto estratégias aquisitivas são partilhadas por agentes criminais e agentes responsáveis pela repressão desses primeiros. Esses processos, somados a um outro de “sujeição criminal”, são parte constituinte da legitimação social mais ampla das expectativas de vida e morte desses sujeitos, e de associar a eles uma espécie de “cultura”.</p><p>A “sujeição criminal” seria responsável por uma mudança qualitativa na acusação social. Em vez do alvo da acusação ser a ação, ela passa a se direcionar ao sujeito. A noção de “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a) demonstra como em diferentes épocas, focando empiricamente no Rio de Janeiro, seria comum atitudes que permitiriam associar o crime com a essência de seu autor, legitimando, desse modo, o castigo ou a eliminação física desse sujeito criminal que carregaria em seu ser, em sua “essência”, a maldade. O processo social constituinte da “sujeição criminal” muda de dimensão quando a dinâmica criminal se altera com a chegada do varejo de drogas ilícitas, principalmente a cocaína. Ocorre uma territorialização da “sujeição criminal” quando o espaço da favela passa a ser mais um problema de segurança pública do que uma questão de infraestrutura urbana, devido a atuação do varejo da droga nesses lugares (Machado da Silva, 2008; 2010; Machado da Silva; Menezes, 2019). Segundo Misse (2010), não existiria uma relação direta entre a atuação desse mercado ilícito e a violência, mas sim em relação aos conflitos decorrentes de sua configuração, principalmente, a necessidade de defesa do território, seja da polícia ou de outros grupos criminosos rivais. A territorialização estende a expectativa social da “sujeição criminal” à crianças e adolescentes, que passam a serem acusados e selecionados previamente, isto é, um processo de criminação dos sujeitos e não de suas ações. No âmbito da “acumulação social da violência”, essa expectativa significa, à princípio, a latência de se tornarem “bandidos” e, em última instância, de serem mortos com um amplo respaldo da sociedade, mesmo que “ainda” não tenham cumprido a profecia, em consequência, a transformando em uma profecia autorrealizável. A “sujeição criminal” seria, assim, a um só tempo, um processo de subjetivação e o resultado desse processo representado socialmente pela sociedade. Enfim, “[n]o limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto” (Misse, 2010: 21).</p><p>Com a intenção de demarcar que a “sujeição criminal” não é rótulo arbitrário, Misse (2010) discute brevemente os processos sociais responsáveis pela construção social do crime (Misse, 2008b), dando particular ênfase para o fato de que isso evidencia um tipo de incriminação do sujeito, que não é um simples encaixe desse agente nos parâmetros legais legitimados, mas um complexo de interpretações capaz de mobilizar também os poderes envolvidos nas definições de situação. Nesse sentido, o autor faz uma composição entre as dimensões estrutural e interacionista, levando em consideração uma sociedade com profunda desigualdade como a brasileira (Misse, 2010; Werneck, 2014). De acordo com Werneck (2014), a noção de “sujeição criminal” é uma forma de atentar para o conteúdo de sentido do atributo desacreditador, de modo que é possível notar como o adjetivo é reificado e torna-se um substantivo, algo que a teoria dos rótulos não conseguia capturar, ou seja, o conceito é uma contribuição original para a discussão sobre a construção da identidade social a partir da caracterização como criminoso, neste caso, “bandido”. Para Misse (2010), a “sujeição criminal” é “um processo social que condensa determinadas práticas com seus agentes sob uma classificação social relativamente estável, recorrente e, enquanto tal, legítima” (24). Então, apesar de ter uma estrutura social de referência, somente ocorre “sujeição criminal” se, no evento em que for definida situacionalmente, ela fizer sentido para os envolvidos, inclusive o acusado.</p><p>O conceito da “sujeição criminal”, desse modo, tem como objetivo determinar três dimensões incorporadas na representação social do “bandido” e de todos aqueles que se encaixariam em seu tipo social: a trajetória criminável; a “experiência social” específica; e a subjetividade relacionada com sua autoidentidade. Assim, a “sujeição criminal”, em uma determinada categoria social de indivíduos, é produto de um processo social responsável por constituir subjetividades, identidades e subculturas, que necessariamente implica em: agentes acusados e incriminados com base em representações sociais; expectativa de que esses agentes tenham uma trajetória criminal contínua; autorrepresentação no agente ou representações em seu núcleo próximo de convívio, que ora justifiquem suas escolhas, ora atestem sua singularidade ou a impossibilidade de justificação. Sem uma dessas dimensões, não há “sujeição criminal”, mas não quer dizer que não haja incriminação, já que nem todas as práticas criminais produzem esse tipo de sujeição.</p><p>Em seu artigo, Misse (2010) diz que o mais importante não é nem a entrada nem a justificação da carreira criminal, mas sua reiteração, tornando o crime passível de ser incorporado em uma identidade social negativa e acomodado em um tipo social. Isso ajuda a diferir uma simples incriminação da “sujeição criminal”, esta última necessita da primeira, mas o contrário não é verdade. Na “sujeição criminal” há um foco no sujeito, na sua maldade, irrecuperabilidade, no seu nexo subjetivo com a própria transgressão. Nesse caso, para mudar sua condição de “bandido”, normalmente, ocorre algo similar à uma depossessão, que implica alterar o âmago do seu ser, ou até uma conversão religiosa. Na incriminação, o alvo da acusação é a ação classificada como transgressora, não o sujeito que a cometeu. No caso da “sujeição criminal”, sendo esse sujeito consciente, ele tem, na maioria dos casos, noção de que ao estar realizando um curso de ação específico, ele pode ser caracterizado dentro de uma classificação social incriminadora, impondo a si uma autoavaliação do quanto ele está ou não subjetivamente ligado com esse curso de ação e como interpreta essa situação. Para Misse (2010), o interesse e a capacidade do agente em fazer a relação entre tal curso de ação e a essência de seu ser, interpretando sua condição perante essa associação, configura a principal dimensão da “sujeição criminal” no processo de subjetivação. As tensões entre acusadores e acusados permitem evidenciar distintas possibilidades em que os poderes de definição de situação são mobilizados, seja para neutralizar, assimilar, incorporar ou agravar a “sujeição criminal”.</p><p>Por fim, Misse (2010) aborda a questão da representação social da “sujeição criminal”, isto é, sua capacidade de formalizar uma subcultura e generalizar alguns de seus códigos e símbolos, mesmo se tratando de processos individualizados e distintos entre os tipos de sujeitos que formam tal sujeição. Por conta disso, trata das especificidades de um sujeito-limite, como é o sujeito criminal, na sua relação com a sociedade. Para o autor, esses sujeitos não estão totalmente fora da sociedade, apesar de, em muitas circunstâncias, a comunicação entre quem partilha dessa subcultura e quem está fora dela, seja complexa. Uma forma de aproximação seria justamente a emulação de uma linguagem antes restrita ao submundo da sujeição criminal para camadas mais abrangentes da sociedade. Inclusive para os consumidores dos mercados ilícitos das drogas. Enfim, segundo Misse (2010), “o processo social que constrói a sujeição criminal cria também os próprios dispositivos de sua reprodução ampliada” (36).</p>
<h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Referência</h1>
= Apreciação crítica =
<p class="mwt-paragraph">MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, no 3, pp. 371-385, 2008a.</p>
<p>O conceito de “sujeição criminal”, dentro do arcabouço teórico-analítico da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a), que também pressupõe as “mercadorias políticas” (Misse, 1999; 2014), permanece atual e frutífero para interpretação da dinâmica criminal brasileira e latino-americana. Em dado momento, o autor “preocupa-se” que a generalização de códigos e símbolos da “sujeição criminal” e de sua subcultura implicasse um enfraquecimento dela, uma restrição a um núcleo duro. Talvez, fosse também interessante atentar, como o próprio autor faz, ao fato de que essa ampliação da representação social dos sujeitos criminais demonstre sua solidez, sua continuidade, sua influência no tecido social, assim como, suas metamorfoses e rupturas. Nesse caso, seria relevante, em estudos futuros, pensar como a “sujeição criminal” é representada socialmente, assim como Werneck e Talone (2019) fizeram com o conceito da “sociabilidade violenta” de Machado da Silva (2004), o interpretando como um tipo-ideal. A ideia seria notar como a noção de “sujeição criminal” está sendo utilizada na “gramática da violência” (Machado da Silva, 2010).</p>
<h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Breve contextualização</h1>
= Outras referências =
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">Michel Misse é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição. O autor é um dos pioneiros no estudo da violência no Brasil, suas pesquisas iniciam-se na década de 1970, e o desenvolvimento de sua carreira e de suas pesquisas confundem-se com a consolidação desse campo de estudos nas ciências sociais do país. Misse foi orientado por Luiz Antônio Machado da Silva (1941-2020), no antigo IUPERJ. A relação teórica entre os dois, com concordâncias e divergências, guiou o debate sobre violência e criminalidade na sociologia brasileira. Junto com Machado da Silva (2004) e Maria Stela Porto (2006), Misse (1999) é um dos autores que contribuem para pensar a violência como uma representação social. Assim, para esse conjunto de autores, em vez de um substantivo, a violência é um adjetivo para ações assim classificadas (Werneck, 2012). O texto resenhado é uma conferência na Academia Brasileira de Letras, proferida no dia 3 de julho de 2008 e está baseado nas ideias desenvolvidas em sua tese de doutorado “Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”, defendida em 1999.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Principais argumentos</h1>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">De início, há uma provocação às caracterizações, de senso comum e acadêmicas, sobre a cordialidade do povo brasileiro. Como um país que aboliu a escravidão recentemente, em termos históricos, não considera esse passado, e suas consequências no presente, uma mazela social ultrajante? Poderíamos pensar, a partir de Alexander (2012), que a falta da construção social de um trauma coletivo cujas violências explícitas do período escravocrata, e as simbólicas que se seguiram desde então, inibe a empatia cultural e a sensibilidade com a dores de pessoas de cores e etnias específicas, pretos e indígenas. Misse remete às noções de cordialidade a demora com que as ciências sociais se apoderaram da violência como um objeto de estudo. Somente na década de 1970 passa-se a problematizar a violência sociologicamente, antes ela era discutida prioritariamente na área médica e legal (Zaluar, 1999; Kant; Misse; Miranda, 2000). O início da segunda metade do século XX, entre 1950 e 1970, marcou a urbanização massiva do Brasil e, consequentemente, o aprofundamento da marginalização de uma parcela da população. Esse processo também ocorreu em outros países latino-americanos (Briceño-León, 2007). Não houve integração dessas massas à cidade, o controle deu-se pela criminalização da marginalidade (Coelho, 1978), em vez do exercício pleno da cidadania. O que o autor quer pensar, portanto, são os motivos que, nos últimos 50 anos, fizeram retomar a consciência, antes oculta pela produção de esquecimento, silêncios e memórias subterrâneas (Pollak, 1989), de nossa formação social violenta.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">Em seguida, o autor faz uma crítica ao uso, corriqueiro entre os sociólogos, da violência como um conceito, um operador analítico. Misse aponta o caráter polissêmico da categoria, que, quando invocada parece ser externa ao analista e, assim, possível de se adequar aos valores que o orienta. Desse modo, quando utilizada, a violência é performática, normativa e acusatorial. Nesse sentido, violência, assim como crime e corrupção, de acordo com o autor, não deveriam ser vistos como conceitos, pois seriam antes “categorias nativas, representações de práticas muito variadas, interações e conflitos sociais muito complexos” (Misse, 2008a: 373). É necessário, desse modo, saber que ao utilizarmos o termo “violência”, estamos o utilizando de forma descritiva, quase sempre, sobre o uso ilegítimo da força desmedida e exagerada em uma relação social. Isso implica sua indissociabilidade com os processos sociais de criminalização do uso da força física, como o processo civilizador (Elias, 2011) e a normalização (Foucault, 1999). Nesse caso, segundo Misse, a categoria “violência” pressupõe a pacificação das relações, monopólio legítimo do uso da violência, relegado ao Estado, e, em consequência disso, uma judicialização dos conflitos. O autor desenvolve mais essa questão e a relação da violência com a teoria social em Misse (2016).<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">No caso brasileiro, assim como em outros países latino-americanos, haveria uma disjunção entre sociedade e Estado (Misse, 2019a). Não há sucesso no monopólio legítimo da violência e nem no processamento legal de crimes e conflitos no sistema de justiça. Segundo o PNUD (2013), cerca de 24% dos cidadãos da América Latina apoiam “fazer justiça com as próprias mãos”. Assim, Misse apresenta uma forma de resolução de conflitos, que emerge especificamente no Rio de Janeiro e depois generaliza-se, chamada “Esquadrão da Morte”. Segundo o autor, essa inovação, ocorrida durante a década de 1950, marca o início da violência urbana no Brasil. O Rio de Janeiro serve como uma vitrine, sua centralidade midiática contribuiu para o desenvolvimento das dinâmicas criminais cariocas em ambientes onde existiam condições propícias.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">Os Esquadrões da Morte não são o motivo principal de uma percepção do aumento da violência, eles são um ponto de inflexão responsável por demarcar o início de um processo social distinto. Antes de 1950, os crimes mais comuns não eram violentos, tratavam-se de ações que relacionavam a malandragem de uns com a ingenuidade de outros. A maioria das ocorrências com violência eram ligadas à honra e paixão. Ainda nessa década, o padrão de criminalidade começa a se alterar vagarosamente. A mídia passa a noticiar mais crimes armados contra propriedade e fazer comparações do Rio com a Chicago dos anos 1920, apontando a existência de crime organizado a partir da figura do jogo do bicho e do contrabando. Para dar uma resposta, o Estado cria o “Grupo de Diligências Especiais”, comandado por um policial chamado LeCocq, que já havia sido da Polícia Especial da ditadura do Estado Novo (1930-1945). LeCoqc montou sua equipe a partir do antigo Esquadrão Motorizado dessa Polícia Especial de Vargas. Simbolicamente, voltaram a utilizar a sigla E. M. acompanhada de uma caveira com duas tíbias cruzadas, uma por cima da outra. A imprensa caracterizava suas ações como “caçadas” e, por elas frequentemente terminarem na morte de seus alvos, a sigla E. M. ganhou outro significado popular: Esquadrão da Morte. Depois da morte de LeCoqc, durante uma dessas ações, em 1964, seus companheiros fundam a “Scuderie LeCoqc”, um grupo para-policial com o objetivo explícito de matar “bandidos”. Esse foi o Esquadrão da Morte mais conhecido, porém o modelo de resolução de conflitos, que tensionava a relação entre a progressiva modernização do Estado e uma sociedade enraizada em valores tradicionais, se popularizou pela cidade e pela baixada fluminense. A popular frase, dita por quem apoia e positiva as ações de “justiceiros”, “Bandido bom é bandido morto” foi proferida por um membro da Scuderie LeCoqc, que posteriormente seguiu carreira política no Rio de Janeiro. Essa configuração é intensificada pela sintonia com os valores da ditadura militar (1964-1985).<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">No período da redemocratização, acentua-se a percepção de que a criminalidade está aumentando. Alguns teóricos chegam a afirmar que, ao contrário do que se imaginava, no contexto latino-americano, a democracia “democratizou” o uso da violência – antes concentrada nos regimes militares ditatoriais – no cotidiano (Kruijt; Koonings, 2002). A tese de Misse, na verdade, mostra que essa banalização da violência é um processo histórico longo e anterior à ditadura, no caso brasileiro. Assim, diante da polissemia do termo “violência”, o autor prefere designar esse fenômeno como “acumulação social da violência”. O conceito faz referência a um “complexo de fatores, uma síndrome, que envolve circularidade causal acumulativa” (Misse, 2008a: 379). Por conta desse carácter, Misse propõe uma série de conceitos que compõem o arcabouço analítico da “acumulação social da violência”.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">Nesse sentido, é preciso repensar a construção social do crime. Misse propõe quatro níveis analíticos para avançar na construção social do crime, que normalmente estaciona na criminalização. De início, teríamos a própria “criminalização”, que nada mais é do que a classificação de um curso de ação como crime e o encaixe dele em um código penal. Uma ação passa a ser crime, segundo Becker (2008), por conta de um empreendimento moral bem-sucedido, por exemplo. Mas também pode ser resultado da tradição, segundo Misse. Quando se acusa publicamente um curso de ação, por meio de interpretações que o associam às classificações criminalizadoras previstas nos códigos penais, isto constitui um “processo de criminação”. Nesse caso, a necessidade da “incriminação”, ou seja, de identificar o sujeito que comete o ato criminoso e puni-lo. No âmbito do Estado moderno, a “incriminação” ocorre por meio do processamento legal das ações criminalizadas do sujeito no sistema de justiça. Contudo, quando a “incriminação” acontece antes da “criminação” ou mesmo da “criminalização”, o sujeito passa a ser o alvo da acusação social e não suas ações. Esse último estágio é intitulado “sujeição criminal” (Misse, 2010). Nela, desconfia-se da essência do ser com base na condensação e reprodução de imaginários sociais sobre a “maldade” de alguns sujeitos. Esses atores sociais são vistos como “propensos a cometer um crime” e, portanto, selecionados preventivamente (Misse, 2008b). A “sujeição criminal”, portanto, caracteriza um processo social de incriminação extra-legal, diferente do racional-legal. Esse processo social não seria apenas um estigma, e só estaria completo quando atua na própria subjetivação do sujeito criminal, internalizando o crime no sujeito, os fundindo como um “espírito”. Isso explica, segundo o autor, porque no Brasil é tão comum a “ressocialização de sujeitos criminais por meio da conversão religiosa (Teixeira, 2011).<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">Além disso, nos mercados ilegais, assim como em outros âmbitos da sociedade brasileira, subtraiu-se a culpa sobre o uso da corrupção como uma troca legítima. Misse usa, para analisar essa situação, o conceito de “mercadorias políticas”. Estas últimas seriam relações de troca, não se resumindo apenas à corrupção, envolvendo custos (políticos e econômicos) e negociações estratégicas, realizadas somente a partir de uma assimetria de poder; suas transações afetariam mais o âmbito estatal do que o individual (Misse, 1999; 2008b; 2010; 2014). Seu aspecto político está assentado na possibilidade de um ato “criminalizado” ser ou não “criminado”, a depender da tolerância nos processos de “incriminação”, que tendem a ter preferências sociais. Assim, abre-se margem para ambivalências entre o legal e o ilegal nessas negociações que discutem a efetivação da sanção. Esse caráter dúbio é responsável por fomentar trocas (às vezes compulsórias) dos mais variados interesses e níveis (do Estado ao crime), criando as “mercadorias políticas”.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span><span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">No processo da “acumulação social da violência”, os sujeitos criminais são aqueles que, em última instância, são passíveis de serem mortos, segundo a expectativa social, ou de terem suas vidas negociadas por agentes do Estado. Assim, há circularidade cumulativa desde a positivação moral encontrada no apoio aos Esquadrões da Morte e a contínua legitimidade da já consagrada frase “bandido bom é bandido morto”.</p>
<h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Apreciação crítica</h1>
<p class="mwt-paragraph">O arcabouço teórico implicado no conceito da “acumulação social da violência” é uma poderosa possibilidade de análise da realidade latino-americana. O conjunto analítico tem sido frequentemente utilizado para pensar outros contextos fora do Rio de Janeiro, nacionais e internacionais (Misse, 2019b). Tem se mostrado frutífero também para refletir sobre novas configurações criminais pós anos 2000, como as “milícias” e possíveis novos tipos de agentes da sujeição criminal.</p>
<h1 class="mwt-heading" data-mwt-headingspacesbefore=" " data-mwt-headingspacesafter=" " data-mwt-headingnewlines="0">Outras referências</h1>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">ALEXANDER, Jeffrey, “Introduction”; “Holocaust and Trauma: Moral Universalism in the West”; “Holocaust and Trauma: Moral Restriction in Israel”. In: Trauma: A Social Theory, Cambridge: John Wiley &amp; Sons, 2012.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">BECKER, Howard. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">BRICEÑO-LEÓN, Roberto. Violencia Urbana en América Latina: Un modelo sociológico de explicación. Espacio Abierto, v. 16, n. 3, p. 541-574, 2007.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">COELHO, Edmundo. A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade. Revista de Administração pública. Rio de Janeiro: p. 139-161, Abr. – Jun, 1978.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">ELIAS, Norbert. “Mudanças na Agressividade”. In: O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632814447307" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. “Do controle social ao autocontrole” e “Conclusão”. In: O Processo Civilizador. Formação do Estado e Civilização Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento das prisões.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span>Trad. Ramalhete, R. Petrópolis: Vozes, 1999.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">KANT DE LIMA, Roberto; MISSE, Michel; MIRANDA, Ana Paula. Violência, criminalidade, segurança pública e justiça criminal no Brasil: uma bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 50, p. 45-124, 2000.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">KRUIJT, Dirk; KOONINGS, Kees. “Introducción: la violencia y el miedo en América Latina”. In:<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span>Las Sociedades del Miedo: el legado de la guerra civil, la violencia y el terror en américa latina. Salamanca: Universidad de Salamanca, p. 21-49, 2002.</p>
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<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces="">MISSE, Michel. “Introdução”; “Violência, crime, corrupção: conceitos exíguos, objeto pleno”; “A acumulação social da violência”; “Metamorfoses do fantasma”. In: Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de doutorado: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1999.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632822664657" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, no 3, pp. 371-385, 2008a.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632838050163" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span><span id="SWITCH:1632845251854" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="__. “Sobre a construção social do crime no Brasil”. In: __" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="__. “Sobre a construção social do crime no Brasil”. In: __"> </span><span id="SWITCH:1632767231228" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>. (org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008b.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632752032565" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. “Mercadorias políticas” in: Renato Sérgio de Lima; José Luiz Ratton; Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. (Orgs). Crime Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, p.198-203, 2014.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632754262188" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span>Lua Nova: Revista de Cultura e Política, [S.L.], n. 79, p. 15-38, 2010.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632833038842" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. Violência e teoria social. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 9, n. 1, p. 45-63, 2016.</p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632810967950" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. Alguns aspectos analíticos nas pesquisas da violência na América Latina.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span>Estudos Avançados, [S.L.], v. 33, n. 96, p. 23-38, ago. 2019a.<span class="mwt-placeHolder  mwt-nonBreakingSpace mwt-hidePlaceholder" title="&amp;nbsp;" contenteditable="false" draggable="true"> </span></p>
<p class="mwt-preserveHtml" data-mwt-sameline="false" data-mwt-spaces=""><span id="SWITCH:1632844911704" class="mwt-mwt-placeHolder mwt-switch mwt-hidePlaceholder mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-placeholder" title="____" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="switch" data-mwt-wikitext="____"> </span>__. The puzzle of social accumulation of violence in Brazil: some remarks. Journal of Illicit Economies and Development, v. 1, n. 2, p. 177-182, 2019b.</p>
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<p class="mwt-paragraph"><span id="INTERNALLINK:1632849079225" class="mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-internallink" title="[[Category:Violência]]" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="internallink" data-mwt-wikitext="[[Category:Violência]]" href="#"> </span> <span id="INTERNALLINK:1632759007116" class="mwt-nonEditable mwt-wikiMagic mwt-internallink" title="[[Category:Segurança Pública]]" contenteditable="false" draggable="true" data-mwt-type="internallink" data-mwt-wikitext="[[Category:Segurança Pública]]" href="#"> </span></p>

Edição das 11h00min de 27 de setembro de 2021

Referência

MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.

Breve contextualização

Michel Misse é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição. O autor é um dos pioneiros no estudo da violência no Brasil, suas pesquisas iniciam-se na década de 1970, e o desenvolvimento de sua carreira e de suas pesquisas confundem-se com a consolidação desse campo de estudos nas ciências sociais do país. Misse foi orientado por Luiz Antônio Machado da Silva (1941-2020), no antigo IUPERJ. A relação teórica entre os dois, com concordâncias e divergências, guiou o debate sobre violência e criminalidade na sociologia brasileira. Junto com Machado da Silva (2004) e Maria Stela Porto (2006), Misse (1999) é um dos autores que contribuem para pensar a violência como uma representação social. Assim, para esse conjunto de autores, em vez de um substantivo, a violência é um adjetivo para ações assim classificadas (Werneck, 2012). 

Principais argumentos

À princípio, Misse (2010) reflete sobre a emergência do sujeito e a forma como a sociologia o discute. O sujeito, através da subjugação e da agência, estaria relacionado com a estrutura. Ao mesmo tempo, poderia estar associado com o poder advindo dela (de cima para baixo) e seria moldado à contrapelo dessa estrutura, de forma reflexiva, como potência. O autor, no entanto, aponta que normalmente, quando pensamos na emergência de um sujeito social, o fazemos para notar aqueles revolucionários, que propõem novos valores. Raramente, nos atentaríamos para os sujeitos egoístas que também emergem de experiências de subjugação, mas que, ao contrário do revolucionário, também subjulga e assujeita os Outros à mercê de uma ação voltada para si ou para seu grupo, sendo esta ação egoísta, cínica e/ou cética. Enfim, por produzir subordinação, esse sujeito egoísta também produz outros sujeitos. Em relação à sociologia, o autor critica a relegação do processo de subjetivação a outras disciplinas e seu tratamento sociológico tangencial a partir de conceitos como self, identidade social, ator social papéis e status sociais. Segundo Misse (2010), contribuindo ativamente para discussão ao redor da teoria dos rótulos, o sujeito é visto como uma “essência” do self, mas não é encontrado quando sua busca é aprofundada nesse conceito.

Assim, Misse (2010), volta-se para a análise de uma série de processos de subjetivação que possibilitam a emergência de um sujeito egoísta, no Brasil, conhecido como “bandido”, um “sujeito criminal produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais” (17). Esse sujeito é alvo das reações morais mais contundentes e demandas de punição das mais severas. Haveria uma sintonia entre um tipo de atividade criminal, praticada por esses sujeitos e relacionada com signos de um perigo difuso que geram medo de se conviver em sociedade, e “tipos sociais” demarcados pela pobreza, cor e estilo de vida, previamente selecionados pela suspeição, ou seja, acusados de antemão. Por não serem criminosos comuns, a expectativa social é de incapacitação definitiva (morte) ou reconversão moral capaz de adequar à sociedade que acusa os sujeitos conhecidos como “marginais”, “violentos” e “bandidos”.

Essa posição social desprivilegiada dos “bandidos”, poderia ser analisada a partir da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a). Tal conceito estende à violência um caráter de representação social, passível de ser sedimentada historicamente. Haveria, assim, a causação circular acumulativa de uma série de fatores sociais que se alimentam mutuamente. Nesse sentido, tanto desvantagens são concentradas para uma parcela da população quanto estratégias aquisitivas são partilhadas por agentes criminais e agentes responsáveis pela repressão desses primeiros. Esses processos, somados a um outro de “sujeição criminal”, são parte constituinte da legitimação social mais ampla das expectativas de vida e morte desses sujeitos, e de associar a eles uma espécie de “cultura”.

A “sujeição criminal” seria responsável por uma mudança qualitativa na acusação social. Em vez do alvo da acusação ser a ação, ela passa a se direcionar ao sujeito. A noção de “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a) demonstra como em diferentes épocas, focando empiricamente no Rio de Janeiro, seria comum atitudes que permitiriam associar o crime com a essência de seu autor, legitimando, desse modo, o castigo ou a eliminação física desse sujeito criminal que carregaria em seu ser, em sua “essência”, a maldade. O processo social constituinte da “sujeição criminal” muda de dimensão quando a dinâmica criminal se altera com a chegada do varejo de drogas ilícitas, principalmente a cocaína. Ocorre uma territorialização da “sujeição criminal” quando o espaço da favela passa a ser mais um problema de segurança pública do que uma questão de infraestrutura urbana, devido a atuação do varejo da droga nesses lugares (Machado da Silva, 2008; 2010; Machado da Silva; Menezes, 2019). Segundo Misse (2010), não existiria uma relação direta entre a atuação desse mercado ilícito e a violência, mas sim em relação aos conflitos decorrentes de sua configuração, principalmente, a necessidade de defesa do território, seja da polícia ou de outros grupos criminosos rivais. A territorialização estende a expectativa social da “sujeição criminal” à crianças e adolescentes, que passam a serem acusados e selecionados previamente, isto é, um processo de criminação dos sujeitos e não de suas ações. No âmbito da “acumulação social da violência”, essa expectativa significa, à princípio, a latência de se tornarem “bandidos” e, em última instância, de serem mortos com um amplo respaldo da sociedade, mesmo que “ainda” não tenham cumprido a profecia, em consequência, a transformando em uma profecia autorrealizável. A “sujeição criminal” seria, assim, a um só tempo, um processo de subjetivação e o resultado desse processo representado socialmente pela sociedade. Enfim, “[n]o limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto” (Misse, 2010: 21).

Com a intenção de demarcar que a “sujeição criminal” não é rótulo arbitrário, Misse (2010) discute brevemente os processos sociais responsáveis pela construção social do crime (Misse, 2008b), dando particular ênfase para o fato de que isso evidencia um tipo de incriminação do sujeito, que não é um simples encaixe desse agente nos parâmetros legais legitimados, mas um complexo de interpretações capaz de mobilizar também os poderes envolvidos nas definições de situação. Nesse sentido, o autor faz uma composição entre as dimensões estrutural e interacionista, levando em consideração uma sociedade com profunda desigualdade como a brasileira (Misse, 2010; Werneck, 2014). De acordo com Werneck (2014), a noção de “sujeição criminal” é uma forma de atentar para o conteúdo de sentido do atributo desacreditador, de modo que é possível notar como o adjetivo é reificado e torna-se um substantivo, algo que a teoria dos rótulos não conseguia capturar, ou seja, o conceito é uma contribuição original para a discussão sobre a construção da identidade social a partir da caracterização como criminoso, neste caso, “bandido”. Para Misse (2010), a “sujeição criminal” é “um processo social que condensa determinadas práticas com seus agentes sob uma classificação social relativamente estável, recorrente e, enquanto tal, legítima” (24). Então, apesar de ter uma estrutura social de referência, somente ocorre “sujeição criminal” se, no evento em que for definida situacionalmente, ela fizer sentido para os envolvidos, inclusive o acusado.

O conceito da “sujeição criminal”, desse modo, tem como objetivo determinar três dimensões incorporadas na representação social do “bandido” e de todos aqueles que se encaixariam em seu tipo social: a trajetória criminável; a “experiência social” específica; e a subjetividade relacionada com sua autoidentidade. Assim, a “sujeição criminal”, em uma determinada categoria social de indivíduos, é produto de um processo social responsável por constituir subjetividades, identidades e subculturas, que necessariamente implica em: agentes acusados e incriminados com base em representações sociais; expectativa de que esses agentes tenham uma trajetória criminal contínua; autorrepresentação no agente ou representações em seu núcleo próximo de convívio, que ora justifiquem suas escolhas, ora atestem sua singularidade ou a impossibilidade de justificação. Sem uma dessas dimensões, não há “sujeição criminal”, mas não quer dizer que não haja incriminação, já que nem todas as práticas criminais produzem esse tipo de sujeição.

Em seu artigo, Misse (2010) diz que o mais importante não é nem a entrada nem a justificação da carreira criminal, mas sua reiteração, tornando o crime passível de ser incorporado em uma identidade social negativa e acomodado em um tipo social. Isso ajuda a diferir uma simples incriminação da “sujeição criminal”, esta última necessita da primeira, mas o contrário não é verdade. Na “sujeição criminal” há um foco no sujeito, na sua maldade, irrecuperabilidade, no seu nexo subjetivo com a própria transgressão. Nesse caso, para mudar sua condição de “bandido”, normalmente, ocorre algo similar à uma depossessão, que implica alterar o âmago do seu ser, ou até uma conversão religiosa. Na incriminação, o alvo da acusação é a ação classificada como transgressora, não o sujeito que a cometeu. No caso da “sujeição criminal”, sendo esse sujeito consciente, ele tem, na maioria dos casos, noção de que ao estar realizando um curso de ação específico, ele pode ser caracterizado dentro de uma classificação social incriminadora, impondo a si uma autoavaliação do quanto ele está ou não subjetivamente ligado com esse curso de ação e como interpreta essa situação. Para Misse (2010), o interesse e a capacidade do agente em fazer a relação entre tal curso de ação e a essência de seu ser, interpretando sua condição perante essa associação, configura a principal dimensão da “sujeição criminal” no processo de subjetivação. As tensões entre acusadores e acusados permitem evidenciar distintas possibilidades em que os poderes de definição de situação são mobilizados, seja para neutralizar, assimilar, incorporar ou agravar a “sujeição criminal”.

Por fim, Misse (2010) aborda a questão da representação social da “sujeição criminal”, isto é, sua capacidade de formalizar uma subcultura e generalizar alguns de seus códigos e símbolos, mesmo se tratando de processos individualizados e distintos entre os tipos de sujeitos que formam tal sujeição. Por conta disso, trata das especificidades de um sujeito-limite, como é o sujeito criminal, na sua relação com a sociedade. Para o autor, esses sujeitos não estão totalmente fora da sociedade, apesar de, em muitas circunstâncias, a comunicação entre quem partilha dessa subcultura e quem está fora dela, seja complexa. Uma forma de aproximação seria justamente a emulação de uma linguagem antes restrita ao submundo da sujeição criminal para camadas mais abrangentes da sociedade. Inclusive para os consumidores dos mercados ilícitos das drogas. Enfim, segundo Misse (2010), “o processo social que constrói a sujeição criminal cria também os próprios dispositivos de sua reprodução ampliada” (36).

Apreciação crítica

O conceito de “sujeição criminal”, dentro do arcabouço teórico-analítico da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a), que também pressupõe as “mercadorias políticas” (Misse, 1999; 2014), permanece atual e frutífero para interpretação da dinâmica criminal brasileira e latino-americana. Em dado momento, o autor “preocupa-se” que a generalização de códigos e símbolos da “sujeição criminal” e de sua subcultura implicasse um enfraquecimento dela, uma restrição a um núcleo duro. Talvez, fosse também interessante atentar, como o próprio autor faz, ao fato de que essa ampliação da representação social dos sujeitos criminais demonstre sua solidez, sua continuidade, sua influência no tecido social, assim como, suas metamorfoses e rupturas. Nesse caso, seria relevante, em estudos futuros, pensar como a “sujeição criminal” é representada socialmente, assim como Werneck e Talone (2019) fizeram com o conceito da “sociabilidade violenta” de Machado da Silva (2004), o interpretando como um tipo-ideal. A ideia seria notar como a noção de “sujeição criminal” está sendo utilizada na “gramática da violência” (Machado da Silva, 2010).

Outras referências