Doutrina evangélica sobe a favela e chega ao tráfico
Este verbete é fruto de uma resenha feita por Aline Salgado, a partir da leitura do livro Oração de traficante, cuja autora é Christina Vital da Cunha.
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, por meio de fontes oficiais[1].
Doutrina evangélica sobe a favela e chega ao tráfico[editar | editar código-fonte]
Por Aline Salgado
As diretrizes acadêmicas de uma tese de doutorado quase não se notam na narrativa ritmada e com pitadas de suspense, contada pela pesquisadora e professora adjunta do Departamento de Sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Christina Vital da Cunha em seu recém-lançado livro Oração de traficante (Editora Garamond Universitária, 431p.).
Objeto de 13 anos de estudo e observação nas favelas de Acari e Santa Marta, localizadas respectivamente nas zonas Norte e Sul da cidade, a obra relata como se deram o aparecimento das igrejas evangélicas de linha pentecostal e neopentecostal nas comunidades carentes e o fortalecimento da doutrina cristã junto aos traficantes locais.
Defendida em 2009, a tese de doutorado ganhou a versão de livro por meio do Auxílio à Editoração (APQ 3), da FAPERJ, obtido ainda em 2014. Na publicação, Christina relata como costurou uma extensa rede de proteção, que a permitiu ser vista por moradores e, principalmente, por traficantes como uma pessoa de confiança, abrindo, assim, os caminhos para a sua etnografia. Mas nem mesmo as amizades cultivadas nas favelas foram capazes de imunizá-la dos riscos.
"A paranoia e a fofoca compõem e, ao mesmo tempo, estabelecem um limite à sociabilidade local. Embora eu integrasse redes de confiança baseadas em laços afetivos densos, me vi em situações delicadas", afirma Christina. Segundo a pesquisadora, a foto tirada da imagem de um puma – símbolo dos traficantes locais do Terceiro Comando Puro (TCP) – desenhada em um muro da favela a colocou em uma situação extrema. Após uma fofoca, olheiros do tráfico interrogaram a professora com receio dos usos que faria das imagens tiradas. Mais uma vez, a rede de proteção que Christina construiu em anos de pesquisa nas comunidades a ajudaram a sair ilesa.
Essas e outras situações de risco não foram capazes, no entanto, de mudar os rumos dos trabalhos da pesquisadora. Pelo contrário, lhe garantiram um embasamento maior para tratar de um tema que desafia a compreensão de muitos cientistas sociais e formadores de políticas públicas: a aparentemente conflitante aproximação entre traficantes e evangélicos em favelas cariocas.
Consequências do vazio deixado pela igreja católica e o Estado[editar | editar código-fonte]
No vazio deixado pela igreja católica e o Estado, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais cresceram e ainda crescem nos subúrbios e comunidades do Rio de Janeiro. Carentes de serviços básicos, perspectivas e proteção, os moradores rapidamente se identificam com a doutrina. Entre eles, estão também traficantes, que seguem e ajudam a disseminar as palavras religiosas. Salmos e passagens da Bíblia passaram a dominar os muros das favelas, especialmente em Acari. Ao mesmo tempo, pedidos de orações aos evangélicos por parte de traficantes e até mesmo sua participação em cultos aumentaram.
"No momento em que eu cheguei à necessidade absoluta de falar com os traficantes, para entender essa dinâmica social e conversar sobre sua religiosidade, ninguém quis fazer essa ponte. O fato de eu estar nas comunidades há alguns anos me ajudou. No início da minha pesquisa, há mais de 10 anos, fiz fotos com jovens de quatro anos de idade que, hoje, aos 17, tornaram-se traficantes. Esse convívio facilitou a abordagem, sem mediação prévia", afirma Christina.
"Cheguei até eles e disse como eu gostaria de falar sobre as pinturas na favela e sobre a sua religiosidade", acrescenta a pesquisadora. "Falar sobre religião me abria portas. Já nos dias de hoje, em função da intolerância religiosa e dos ataques a umbandistas, talvez não fosse tão fácil assim falar sobre os evangélicos nas favelas", salienta.
Segundo Christina, a evangelização liberta o traficante do mal, mas não totalmente. "As conversas informais com moradores e traficantes mostraram que a atuação no crime tem, acima de tudo, um peso financeiro difícil de se desvencilhar", conta a pesquisadora. Em uma das passagens do livro, chama a atenção a soma de dinheiro que o tráfico gera: "As favelas do Complexo de Acari – Acari/Coroado, Amarelinho e Vila Esperança – chegavam a movimentar mais de R$ 90 mil em um mês."
Um dos relatos obtidos pela pesquisadora mostra a dificuldade que traficantes evangelizados têm para deixar a vida do crime. "(...) Uma pessoa que fica dos 13 aos 30 anos dentro do tráfico precisa de um psicólogo para ajudar porque é uma mudança muito brusca pra uma pessoa que ganha, vamos dizer aí, R$ 2.500 por semana para depois passar a ganhar R$ 250 por semana, quando ganha. (...) Você tem que ter o pastor ali falando, mas você tem que ter uma ajuda psicológica. Um cara desses se converte, aí você vê a dificuldade dele, a família dele aceitar isso." (sic – depoimento extraído da p.406)
De acordo com a pesquisadora, a não 'culpalização' do indivíduo pode ser um dos fatores que fazem com que os evangélicos, com destaque para os pentecostais, cheguem e continuem chegando às franjas da sociedade através de intensas ações sociais e de evangelização que fornecem meios para que esses sujeitos – traficantes, ex-bandidos e ex-prostitutas etc. – estabeleçam uma relação com a sociedade.
"Um dos meus desafios na pesquisa, e falo dele logo no primeiro capítulo do livro, tem a ver com a própria revelação das intensas, em alguns casos, relações entre traficantes e evangélicos em favelas. Isso porque a identidade religiosa cristã era comumente ativada por moradores de favelas como um salvo-conduto, como uma limpeza moral no contato com a sociedade mais ampla. Vários entrevistados falaram como a apresentação dessa identidade religiosa era importante, por exemplo, no mercado de trabalho", conta Christina. "Procuro mostrar a complexidade, as tensões envolvidas nas aproximações, relações e tentativas de afastamento entre esses extremos que pareciam não se tocar: os evangélicos e os criminosos", acrescenta.
Primeiro trabalho acadêmico a investigar a questão do traficante e sua aproximação com a religião evangélica[editar | editar código-fonte]
A professora ressalta que este foi o primeiro trabalho acadêmico a investigar a questão do traficante e sua aproximação com a religião evangélica. Por muitos anos, segundo Christina, a sociedade, o meio acadêmico e a literatura pensaram a relação dos traficantes apenas com as religiões de matrizes africanas. Mas o quadro atual é outro.
"Por mais reflexiva que seja, a Academia, por vezes, absorveu a moralidade cristã no recorte dos seus objetos, no modo de olhar para eles. Nesse sentido, a moralidade existente e a falta de pesquisas de campo dificultavam pensar essa relação", diz Christina, acrescentando que seu estudo estabeleceu um debate com a bibliografia especializada sobre o tema da religião e suas interfaces com a violência na cidade.
Outra instigante reflexão levantada pela pesquisadora em sua tese são os resultados práticos que o trabalho espiritual dos evangélicos gera. Na missão de recompor socialmente determinados atores sociais, como gays, prostitutas e criminosos, a igreja evangélica acolhe os traficantes, dando a eles não só a proteção para as ações de crime por meio de rezas, como também o controle de suas ações e instintos violentos e a dimensão de programação para o futuro.
"A aproximação com os evangélicos torna factível a transitoriedade da vida no tráfico, a transição para um outro caminho. Esse contato aponta uma perspectiva, um novo rumo. É assim que os traficantes fazem investimentos paulatinos para a sua vida fora do crime. De fato, alguns traficantes seguiram nova vida, como donos de postos de gasolina, lojas de hortifrúti. Já outros tantos ficaram", enfatiza Christina.
A pesquisadora enfatiza que essa aproximação dos traficantes com as igrejas evangélicas, sua participação em cultos e campanhas das igrejas locais, não deve ser questionada como verdadeira ou falsa. "O que seria uma real adesão às igrejas? Há gradações nessa vinculação? Isso seria particular aos traficantes ou poderíamos pensar que esses níveis de engajamento estão postos para qualquer um?", questiona.
Christina ressalta que as pessoas se identificam como de uma determinada religião por motivos culturais, afetivos, de tradição ou parentesco. Mas diferentes tipos de escolhas religiosas, de adesões, envolvem cálculos e isso não as invalida, não as torna uma vinculação de segundo escalão. "Nesse sentido, vale destacar, é verdade, que a figura do 'traficante evangélico' causa polêmica no interior do próprio grupo religioso, visto que se para uns esse estreitamento de relações é uma estratégia importante para evangelização dos criminosos, para outros, isso produz o que chamam de 'mau testemunho'. É uma fronteira de tensão, tal como diria o pesquisador Gabriel Feltran", conclui a pesquisadora.
Sobre Christina Vital da Cunha[2][editar | editar código-fonte]
Professora Associada vinculada ao Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense. É bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Antropologia e Sociologia pela Universidade Federal do Rio (PPGSA/IFCS) e doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro PPCIS/UERJ com estágio de doutoramento no Centre de Recherche sur le Brèsil Contemporain na École de Hautes Études en Sciences Sociales.
É bolsista de produtividade do CNPq. Coordena o LePar Laboratório de estudos sócio antropológicos em política, arte e religião, integra a coordenação do grupo de pesquisa EXTREMOS, uma iniciativa de Michel Gherman (UFRJ), e a Rede de Pesquisadores Luso-Brasileiros de Artes e Intervenções Urbanas, esta coordenada por Glória Diógenes (UFC) e Ricardo Campos (Universidade Nova de Lisboa).
Ao lado de Ronaldo Almeida (UNICAMP) deu início e coordenou o Comitê Laicidade e Democracia da Associação Brasileira de Antropologia entre 2019 e 2022 e atualmente é membro regular.
É autora do livro ORAÇÃO DE TRAFICANTE: UMA ETNOGRAFIA (Ed. Garamond; FAPERJ, 2015) e co-autora de RELIGIÃO E POLÍTICA: MEDOS SOCIAIS, EXTREMISMO RELIGIOSO E AS ELEIÇÕES 2014 (2017), RELIGIÃO E CONFLITO (Ed. Prismas, 2016), RELIGIÃO E POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DE PARLAMENTARES EVANGÉLICOS SOBRE O DIREITO DE MULHERES E DE LGBTS NO BRASIL (2012), entre outros livros e artigos acadêmicos e em jornais e revistas nacionais e internacionais.
É editora do periódico científico Religião Sociedade Qualis Capes A - e é colaboradora ad hoc do Instituto de Estudos da Religião - ISER desde 2002. Tem experiência em Sociologia e Antropologia da Religião e Urbana com ênfase nos seguintes temas: religião, política e demanda por direitos; religiões no judiciário; arte urbana e religião; religião e criminalidade violenta em favelas e periferias.